É notável, e estarrecedor, como mesmo membros do poder Judiciário erigem-se em representantes de teologias e de igrejas, em vez de defenderem e valorizarem os princípios básicos da vida republicana.
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Defesa do Estado laico
Todos são livres para fazerem pregações e cultos, mas um arquivo público e um tribunal não se prestam a esta finalidade
por Sergio Gardenghi Suiama / Jaime Mitropoulos
Em artigo publicado neste espaço, o juiz federal William Douglas qualificou de “intolerante” ação de improbidade ajuizada pelo Ministério Público em face do diretor do Arquivo Nacional, acusado de promover cultos evangélicos no auditório da instituição.
Em benefício do direito à informação, achamos importante prestar alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, o diretor do Arquivo efetivamente promoveu reuniões em favor da sua religião, e não “encontros” nos quais múltiplas crenças estavam representadas, como afirmou o magistrado. Os cultos eram semanais e somente cessaram após o fato ter sido denunciado pela imprensa (O GLOBO, 17-7-2016). Portanto, a ação trata exatamente da preferência a uma religião em detrimento das demais.
Em segundo lugar, a liberdade constitucional de culto nada tem a ver com a proibição de que as dependências, equipamentos e servidores de uma instituição pública sejam usados para proselitismo religioso. Todos são livres para fazerem pregações e cultos, mas um arquivo público ou um tribunal não se prestam a esta finalidade, mas sim a outras, do interesse de cidadãos crentes e não crentes.
A esse respeito, é importante aprofundar a discussão para além do lugar-comum “o Estado é laico, e não ateu”. Não é demais lembrar as guerras e perseguições históricas contra os que não professam esta ou aquela crença. Talvez uma das principais lições que podemos extrair da História seja a da importância de se garantir a separação entre o interesse público, representado pelo Estado, e os interesses e valores das várias religiões. Tal princípio encontra-se previsto na Constituição, que proíbe o Estado de manter com representantes de igrejas relações de dependência ou aliança.
Assim, se o Estado não deve impedir o exercício da fé, tampouco pode permitir que grupos religiosos loteiem ou capturem o serviço público, utilizando as estruturas custeadas por todos para promover seus interesses particulares. Erro grosseiro comete quem afirma que os defensores da laicidade pregam a intolerância, pois é exatamente o contrário disso: em um mundo impregnado por fundamentalismos, deve-se assegurar o igual respeito a todas as crenças e impedir que os espaços das instituições públicas sejam transformados em púlpitos, como ocorreu no auditório do quase bicentenário Arquivo Nacional.
Perseguição religiosa haveria se a Justiça proibisse cultos em locais privados ou a ocupação de ruas ou praças para a realização de festas ou procissões, o que não é o caso. A comparação a Hitler, feita pelo magistrado, não poderia ser mais infeliz pois, em tempos como os atuais, nos quais vem se tornando comum prefeitos entregarem “a Deus” as chaves do município, não há nada mais contra a maioria do que defender a laicidade estatal como valor democrático necessário à convivência pacífica de múltiplas visões de mundo. Mais do que tolerância, a neutralidade exigida pelo Estado laico assegura o respeito à liberdade religiosa de todos.
Sergio Gardenghi Suiama e Jaime Mitropoulos são procuradores da República no Rio de Janeiro.
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