Sobre a liberdade absoluta de consciência
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Há um tema importante ao Positivismo que, por
vezes, como infelizmente acontece também com outros temas, há incompreensões e
interpretações equivocadas: a “liberdade ilimitada de consciência” é um deles
o Augusto
Comte tratou desse tema desde o início de sua carreira – por exemplo, no “Sumária
apreciação do conjunto do passado moderno” (de 1820) e no “Considerações sobre
o poder espiritual” (de 1826) há referências diretas e explícitas a ele
o Augusto Comte usava a expressão “liberdade
ilimitada de consciência”; mas como essa expressão pode gerar confusão, eu
prefiro usar às vezes “liberdade absoluta
de consciência” – pois, além de evitar confusões desnecessárias, essa fórmula
descreve mais acuradamente o problema
§ Em
todo caso, a leitura direta das observações de Augusto Comte basta para
esclarecer a expressão e evitar qualquer confusão a respeito
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O tema da “liberdade absoluta de consciência”
envolve aspectos morais, intelectuais, políticos e históricos de maneira muito
direta; ele tem conseqüências (ou reflexões) muito importantes no Positivismo
o Neste
sermão, adotaremos inicialmente uma exposição histórica para, a partir dela,
tratarmos filosoficamente do tema
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A primeira observação que temos que fazer é a
seguinte: todo ser humano tem capacidade de reflexão autônoma e procura
entender o mundo ao seu redor; isso é um esforço que se faz para cada um
localizar-se no mundo, entender como é que as coisas funcionam e, a partir
disso, agir
o Assim,
cada um de nós e todos temos liberdade de pensamento, que também podemos chamar
de “autonomia” (alguns sociólogos contemporâneos chamam-na de “agência”)
o É
claro que ao longo do tempo e conforme as sociedades varia essa autonomia
individual: algumas sociedades são mais restritivas, outras menos
o Mas
a autonomia individual não é uma questão puramente individual, no sentido de
que não se trata apenas da “liberdade de consciência”, que é algo que com
freqüência é reduzido à oposição simples e binária entre “indivíduo” e
“sociedade”
§ A
concepção individualista entende que cada ser humano existe por si só no
universo, que se torna adulto sozinho, que suas idéias e seus valores são os
mesmos em qualquer parte do mundo – e, coroando essas tolices, o individualismo
entende que o indivíduo está sempre ameaçado por agrupamentos de outros
indivíduos (sejam eles meras coalizões passageiras, sejam eles a temível
“sociedade”)
o Na
verdade, em outras palavras, é necessário adotarmos uma perspectiva sociológica – que, aliás, é a que o Positivismo adota
§ Adotar
uma perspectiva individual (e individualista) para entender essa questão produz
apenas concepções irracionais e imorais, ou seja, não se entende a questão,
surgem problemas insolúveis e suas conseqüências sociais e políticas são
desastrosas (e injustas)
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Adotando-se a correta perspectiva sociológica, temos
que ter muito em mente que ninguém nasce sabendo nada e acreditando em nada; só
conhecemos e acreditamos em coisas porque aprendemos ao longo do tempo, ou
seja, com a sociedade
o Além
disso, no processo de aprender está sempre implícita – às vezes, implícita demais – a confiança nos demais e, em
particular, naqueles que nos ensinam e transmitem conhecimentos e valores
o Da
mesma forma, seja porque nossas concepções quaisquer seguem aquelas que
aprendemos de outrem (e, novamente, entra aí a confiança), seja porque
precisamos de estabilidade nas concepções, o fato é que é necessário que haja
interpretações e concepções socialmente estabelecidas, compartilhadas e
estáveis
§ Essa necessidade vale para toda e qualquer
sociedade; isso não tem nada a ver com “autoritarismo”, “intolerância” e/ou
“falta de progresso”
o De
qualquer maneira, uma das conseqüências dessa necessidade de concepções
compartilhadas é a constituição do poder
Espiritual
§ O
poder Espiritual tem funções ao mesmo tempo sociais e políticas, filosóficas e
didáticas, além de funções morais: em outras palavras, ele é o responsável por
elaborar, sistematizar e transmitir idéias e valores
§ A
importância da separação entre os dois poderes (o Temporal e o Espiritual) fica
bastante evidente aí: se há união entre os dois poderes, as idéias e os valores
serão impostos ao público com o peso da lei
o De
um modo geral, podemos dizer que quanto maior a confiança do público no poder
Espiritual, maior a liberdade de que goza esse público; ou, dito de outra
maneira, quanto mais frágil o poder Espiritual absoluto, mais ele tenderá a
buscar o apoio do poder Temporal para ser imposto
§ Como
observava Augusto Comte, as crenças absolutas tendem a procurar governos
autoritários
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As crenças teológicas (em particular as
monoteístas) são ao mesmo tempo absolutas e fictícias, de tal sorte que elas
não são passíveis de comprovação e lidam muito mal com a discussão – embora,
por outro lado, de maneira contraditória, na medida em que não são passíveis de
comprovação, elas estimulam muito as discussões, que não têm fim
o Essas
características intelectuais da teologia (monoteísta) por si só exigem a
constituição de um poder Espiritual organizado, para regular e disciplinar as
crenças
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Durante a Idade Média, as crenças teológicas
foram reguladas pela igreja católica, que, por sua vez, gozava de ampla
confiança
o A
igreja regulava as concepções, estabelecendo as linhas gerais do que era ou não
aceitável
o Devido
às características de ficção e de absolutismo da crença teológica, nos séculos
iniciais da igreja houve muitas disputas filosóficas; embora muitas concepções
afirmadas baseassem-se no bom senso, na medida em que atrapalhavam a
racionalidade do dogma (e o dogma cristão é profunda e necessariamente
irracional e confuso), elas foram proscritas – eram as heresias
o Também
há que se notar que os próprios doutores da igreja com freqüência percebiam as
dificuldades intelectuais e morais do próprio dogma; por isso, essas dificuldades
tinham que ser atenuadas ou simplesmente postas de lado, em particular quando
se tratava das aplicações práticas
§ Assim,
tinha lugar a “sabedoria prática” de muitos sacerdotes, muitas vezes dos
próprios papas
o Mas,
estabelecidas as diretrizes gerais do dogma, ou seja, identificadas e
suprimidas as heresias, estabeleceu-se um amplo terreno para discussão e
especulação
§ É
nesse sentido que Santo Agostinho (354-430) propôs esta bela frase: “No
essencial, a unidade; na dúvida, a liberdade; em tudo, a caridade”
o O
governo espiritual da igreja dava-se, então, por meio da educação; as
interpretações individuais subordinavam-se à interpretação da igreja
§ Nesse
sentido também devia ser entendido a fórmula “Extra ecclesiam nulla salus”
(“fora da igreja não há salvação”)
o Por
fim, vale notar que o governo espiritual da igreja dava-se também pelo
princípio – mais ou menos implícito, mais ou menos explícito – da
infalibilidade papal
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A decadência da ordem católico-feudal conduziu à
desmoralização progressiva das concepções teológicas
o Essa
desmoralização foi estimulada por diversos motivos: relativismo intelectual,
moral e prático derivado das cruzadas; reintrodução no Ocidente, por intermédio
dos árabes, da cultura grego-romana; desenvolvimento das ciências
o Tudo
isso conduziu a uma emancipação mental cada vez mais acentuada
§ A
emancipação mental significa deixar de acreditar na divindade e/ou de
raciocinar em termos sobrenaturais e extra-humanos
o A
liberdade mental evidentemente aumentou muito nesse sentido
§ Vale
notar que apenas a partir daí – da sua decadência – a igreja católica
constituiu de verdade o tribunal do santo ofício, isto é, a inquisição
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O processo de destruição do governo espiritual
da igreja foi espontâneo nos
primeiros dois séculos da idade moderna, ou seja, nos séculos XIV e XV; a
partir do século XVI, ele tornou-se sistemático
o O
processo espontâneo correspondeu diretamente à emancipação mental, ou seja, o
ser humano tendeu cada vez mais à “secularização”, à “laicização” mental
o O
processo sistemático assumiu um caráter propriamente destruidor, em que a
emancipação tornou-se secundária em relação à destruição
§ Isso
fica evidente no protestantismo, cuja preocupação é ser anticatólico em vez de
emancipar mentalmente os seres humanos; a liberdade por ele promovido é
claramente anárquica
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Nos dois trechos abaixo Augusto Comte resume
esse processo:
o Citação
de “Sumária apreciação do conjunto do passado moderno”:
“Preparada, ou, para melhor dizer, reclamada
como indispensável, por esse estado de coisas, a revolução francesa explodiu, e
tomou, desde a sua origem, uma falsa direção, havendo destruído a realeza. Não tardou,
entretanto, esta última a reconstituir-se, porque, sendo, em França, a cabeça e
o coração do antigo sistema, só com ele pode extinguir-se, assim como um
sistema não pode ser extinto senão quando outro já existe completamente formado
e pronto para substituí-lo.
O resultado final de todo esse grande abalo
foi a abolição dos privilégios, a proclamação do princípio da liberdade
ilimitada de consciência e, por fim, o estabelecimento da constituição inglesa
outorgada pelo próprio poder real.
A abolição dos privilégios não fez senão
completar a ruína do feudalismo e reduzir inteiramente o poder temporal apenas
ao do rei.
A proclamação do princípio da liberdade
ilimitada de consciência aniquilou completa e irrevogavelmente o poder
espiritual”.
o Citação
de “Considerações sobre o poder espiritual”:
“Em todo o curso desse período [séculos XVI
a XVIII], que se pode, com todo direito, qualificar de revolucionário, todas as
idéias anti-sociais foram agitadas e transformadas em dogmas, a fim de serem
empregadas, de maneira contínua, na demolição do sistema católico e feudal, e
reunir, contra ele, todas as paixões anárquicas que fermentam no coração
humano, e são, nos tempos normais, comprimidas pela preponderância de um regime
social completo.
Por uma fatalidade irresistível, os diversos
dogmas de que se compõe a doutrina crítica não puderam adquirir toda a energia
que lhes era necessária para preencherem completamente seu destino natural, a
não ser tomando um caráter absoluto, que os tornou necessariamente hostis, não
apenas ao sistema que tinham de destruir, mas relativamente a qualquer sistema
social [...]”.
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A destruição direta da autoridade moral foi
necessária: o instrumento intelectual disso foi, justamente, o dogma da
liberdade ilimitada de consciência
o Ao
destruir o governo espiritual anteriormente vigente e proclamar a autossuficiência
individual, o dogma da liberdade absoluta de consciência estabelece
propriamente a anarquia mental, ou seja, a ausência de parâmetros
compartilhados e respeitados
§ Na
verdade, é pior do que pode parecer à primeira vista, pois esse dogma não apenas
estabelece a anarquia mental como postula que a anarquia é o estado normal do
ser humano
o Esse
dogma proclama que cada indivíduo é sempre e suficientemente capaz de avaliar
qualquer coisa por si só, independentemente de qualquer preparação específica e
prévia para isso
o Em
outras palavras, o dogma da consciência ilimitada (ou absoluta) de consciência
erige sistematicamente a arrogância em padrão de conduta mental
o Além
de violentamente arrogante e individualista, esse dogma conduz naturalmente à
rejeição da confiança mútua: afinal, não há porque os indivíduos confiarem nos
demais para afirmarem suas próprias idéias
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O agente concreto da destruição do antigo poder
Espiritual e da afirmação do dogma da liberdade absoluta de consciência foram
os protestantismos
o As
supostas inovações de Lutero foram basicamente destruições da autoridade
intelectual da igreja; as críticas que ele fez à igreja já tinham sido feitas
antes, por outros pensadores seculares ou teológicos, sem compartilharem o
caráter destruidor do monge alemão
o A
par do seu caráter destruidor, o protestantismo não afirmou a liberdade de
consciência nem a emancipação mental – nem mesmo a liberdade política, como os
exemplos de Lutero, Calvino e outros ilustram com clareza
§ Em
relação à liberdade política, basta lembrar que Lutero, Calvino e outros foram
autoritários, despóticos, tirânicos
o Ao
rejeitar a autoridade da igreja, o protestantismo afirmou o individualismo, a
arrogância e a anarquia mental
o Outra
conseqüência da rejeição da autoridade da igreja foi acabar com as
interpretações adaptadas à realidade humana, sugeridas pela “sabedoria prática”
do clero
§ Em
outras palavras, isso consistiu em rejeitar o relativismo prático em favor de
um absolutismo teórico (a partir de um literalismo interpetativo da Bíblia)
o Além
disso, ao erigir cada crente em juiz único e autossuficiente para julgar
qualquer coisa, o protestantismo substituiu a infalibilidade do papa pela infalibilidade
do próprio crente
§ Uma
das conseqüências práticas dessas disposições mentais e morais é a multiplicação
incessante de seitas protestantes, a olhos vistos mesmo hoje em dia
o Devemos
notar, entretanto, que em termos de apoio a governos despóticos, todavia, alguns
protestantes adotaram um comportamento diferente, ao defenderem e constituírem
a liberdade espiritual:
§ De
modo geral, foram ingleses ou originários da Inglaterra: os niveladores (levellers) de Oliver Cromwell, os
quacres, alguns batistas (como Roger Williams, fundador de Rhode Island)
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Pode parecer que tratar hoje da liberdade
absoluta de consciência seja somente uma curiosidade histórica, mas não é
o Por
um lado, a liberdade ilimitada de consciência infelizmente é uma realidade nos
dias atuais, seja na permanência fática
da anarquia moderna, seja na afirmação da anarquia moderna como um ideal moral e mental (!)
o Além
dos problemas intelectuais, morais e práticos, há ainda concepções que
pretendem – erradamente – aproximá-la da ciência
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Há algumas propostas que afirmam que a ciência
moderna baseia-se na liberdade absoluta de consciência
o Essas
propostas, com freqüência e não por acaso, também defendem que a ciência
ter-se-ia originado do protestantismo
§ Essas
propostas com freqüência são de origem anglossaxônica e/ou protestante; quando
não são diretamente anglossaxônicas, são influenciadas fortemente por elas e,
de qualquer maneira, são também (ou principalmente) influenciadas pelo
protestantismo
o A
ciência exige a confiança mútua, bem como a humildade intelectual; o preceito
moral geral do Positivismo, segundo o qual a “submissão é a base do
aperfeiçoamento”, é seguida à risca na ciência
§ Na
ciência – seja em sua prática cotidiana, seja em suas instituições – também se
exige o respeito ao seu caráter coletivo: a sua cumulatividade histórica, a sua
cumulatividade teórica, o longo processo de iniciação prática (iniciação
científica, graduação, mestrado, doutorado), a opinião compartilhada (bancas de
examinação, avaliação por pares)
§ Da
mesma forma, e como conseqüência das características acima, não tem lugar na ciência
a criticidade corrosiva e sistemática
o Concepções
da ciência que exaltam o individualismo, a criticidade corrosiva, o caráter não
cumulativo – concepções, mais uma vez não por acaso, profundamente
influenciadas pelo protestantismo – não entendem o que é, como funciona e para
que serve a ciência, como nos casos de Karl Popper e Alfred N. Whitehead
o Um
exemplo bastante simples, claro, atual e desastroso de o quanto a ciência repele
a liberdade absoluta de consciência são os negacionismos contemporâneos
§ Os
antivacinistas atuais, os terraplanistas, os negacionistas do clima e muitos
outros: todos eles são pessoas que não conhecem nem entendem a ciência, que no
fundo desprezam-na e que, armados apenas de preconceitos (políticos e também
teológicos) julgam-se capazes de avaliar todas as questões científicas, mesmo
que isso resulte na morte de milhões de concidadãos e de servidores da
Humanidade
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Em suma:
o A liberdade ilimitada (ou absoluta) de
consciência é a pretensão de que cada indivíduo possui condições totais de
avaliar tudo e qualquer coisa, independentemente de preparação específica
prévia
§ A necessária crítica à liberdade absoluta de
consciência não tem nada a ver com a autonomia moral e intelectual de cada um
§ A liberdade absoluta de consciência
baseia-se e resulta em graves defeitos morais, a começar pela arrogância e pelo
egoísmo, passando pelo absolutismo
§ Em termos sociológicos, a liberdade
ilimitada de consciência resulta no que Augusto Comte chamava de “anarquia
moderna” (a ausência de parâmetros morais e intelectuais compartilhados e
socialmente regulados); essa anarquia vige seja como realidade fática, seja
como ideal social e moral
o O protestantismo de modo geral é o grande
promotor dessa atitude
§ O protestantismo reforça a mentalidade
absoluta, anti-humana e estritamente individualista; estimula o espírito
destruidor; promove a crença da infalibilidade dos crentes: em suma, ele é um
dos agentes da anarquia moderna
o A ciência não se baseia na liberdade
absoluta de consciência; bem ao contrário, a ciência exige a humildade
intelectual e a confiança mútua
§ Embora, a par da permanência revolucionária
e anárquica dos hábitos críticos, o dogma da liberdade ilimitada de consciência
infelizmente ainda apresente grande relevância, nos últimos anos ela tem-se
reafirmado de maneira desastrosa, como se vê no caso dos chamados
“negacionistas”, isto é, de todos aqueles que se julgam capacitados a negar a
ciência sem nunca terem estudado nem conhecido de verdade a ciência
·
São os
antivacinistas contemporâneos, os negacionistas do clima, os terraplanistas etc.
etc.