Esse texto foi publicado na Gazeta do Povo em 14.5.2018. O original encontra-se
disponível aqui.
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200 ANOS DE MARX: HÁ ALGO A COMEMORAR?
“A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que
comprime o cérebro dos vivos”
(Karl Marx)
“Os verdadeiros partidários do progresso social não tardarão em
reconhecer que a insurreição dos vivos contra o conjunto dos mortos é
contraditória com a digna preparação de um futuro que supõe o passado”
“A ordem permanecerá retrógrada enquanto o progresso permanecer
anárquico”
(Augusto Comte).
O dia 5 de maio marcou o bicentenário de nascimento de Karl Marx
(1818-1883), o fundador do comunismo e, bem ou mal, pai espiritual de centenas
de milhões de seguidores. Não há dúvida de que essa data incita à reflexão –
especialmente quando os próprios marxistas celebram-na e afirmam que Marx teria
contribuído decisivamente para o progresso da humanidade, em termos
intelectuais e também práticos; nesse sentido, aliás, nas redes sociais houve
marxistas que propuseram que os não marxistas e os antimarxistas tivessem
“honestidade intelectual” para reconhecer essas contribuições. Ora, isso é
altamente problemático: tanto a exigência de “honestidade intelectual” quanto a
afirmação de que Marx teria sido um dos maiores pensadores da humanidade são
largamente exageros, profundamente chocantes e, no fundo, ao contrário da
honestidade intelectual exigida, essas afirmações são desonestas. No conjunto,
essas afirmações integram um verdadeiro “mito Marx”, constituído por seus
discípulos ao longo de pelo menos os últimos 170 anos.
Antes de mais nada: as virtudes habituais, ou seja, os
comportamentos e as disposições de espírito que habitualmente se chamam de
“virtudes” sempre foram chamadas por Marx de “preconceitos burgueses”; nesse
sentido, a honestidade seria um dos mais claros desses preconceitos. Ocorre
que, sendo um herdeiro do hegelianismo e, mais amplamente, da metafísica alemã,
para Marx as opiniões mais incoerentes eram “resolvidas” por meio de pelo menos
três expedientes complementares: (1) uma escrita rocambolesca; (2) o apelo às
ideias de “contradição” e “lógica dialética”; (3) uma retórica violenta,
agressiva e altamente irônica.
A escrita rocambolesca é um recurso bastante conhecido e fácil
de entender: qualquer pessoa que deseje afetar profundidade pode escrever de
maneira confusa, de modo a confundir os leitores e produzir com facilidade
sofismas. Já a “contradição” é uma forma mais sutil, mas também mais desonesta,
de iludir: quando um autor vê-se face a incoerências manifestas, basta afirmar
que as incoerências referem-se a aspectos da própria realidade e que a
realidade é “contraditoriamente” incoerente; ou, então, afirma-se que os
aspectos díspares e incoerentes das “contradições” são “integrados” e
“superados” na “lógica dialética”, que, por sua vez, é uma forma “superior” de
racionalidade. Por fim, a retórica carregada, violenta e irônica é o recurso
final para evitar qualquer forma de argumentação racional explícita; a ironia
evita o confronto argumentativo, assim como a violência retórica evita a
racionalidade e ainda dá permite ataques pessoais, ad hominem, aos adversários.
(Esses traços, próprios do pensamento e da retórica de Marx, foram copiados em
diferentes medidas por seus discípulos.)
Tudo isso para observar que Marx desprezava as virtudes
habituais como sendo preconceitos, mas ao mesmo tempo aceitava – pelo menos em
princípio – a argumentação racional e científica a respeito de suas obras, ou
seja, a argumentação feita com honestidade “intelectual”. Entretanto, a
aceitação da honestidade “intelectual” era feita apenas em princípio, de
maneira retórica: Marx repudiava seus adversários apelando sistematicamente
para os três aspectos acima (apelo às “contradições” e retórica violenta,
irônica e confusa). Assim, da parte de Marx não havia nem respeito à
honestidade em geral (“preconceito burguês”) nem respeito à honestidade
“intelectual” em particular (rejeitada na prática).
“Um dos maiores pensadores da humanidade”: um título desses
exige não apenas uma grande capacidade intelectual, como também contribuições
efetivas e de vulto para o progresso da humanidade. Deixando de lado o fato de
que o “progresso” conforme entendido por Marx é uma concepção altamente
problemática (como também era a concepção-irmã de “ordem” – ambas definidas de
maneira rasa) e que, após a atuação de Marx e dos marxistas a concepção do
“progresso” sofreu danos gigantescos, ocorre que a atuação específica de Marx
no que se refere a esses dois quesitos mínimos (grande capacidade intelectual e
grandes contribuições efetivas para o progresso) não justificam sua inscrição
no panteão intelectual e político da humanidade.
É necessário admitirmos que as inúmeras obras de Marx são de
fato interessantes e estimulantes; a leitura de seus livros sugere muitas
ideias, das quais muitas são úteis e realmente proveitosas. As chamadas “obras
históricas” (como o 18 Brumário de Luís Bonaparte) são particularmente
interessantes, ao sugerirem perspectivas para a Sociologia Política e para a
História Social e Política. Entrementes, convenhamos: obras “interessantes”,
“estimulantes” e “sugestivas” não é o mesmo que obras “geniais” ou “marcos
inescapáveis da reflexão científica”. As obras “históricas” de Marx são
interessantes – assim como o são, por exemplo, os livros de Alexis de
Tocqueville (como A democracia na América): não há nada de “genial” aí.
Observações similares podem ser feitas a respeito das obras “filosóficas” e das
“econômicas” de Marx, bem como a respeito de sua atuação prática (no movimento
dos trabalhadores).
Podem contra-argumentar que Marx teria sido genial na crítica ao
capitalismo. Mas teria mesmo? A análise dos mecanismos sociais, políticos e
econômicos da produção econômica não são e não foram exclusividade de Marx;
propor um esquema geral para explicar diversos elementos da vida social também
não foram exclusividade marxista. Exemplos de esquemas explicativos gerais e
abrangente da realidade social do século XIX, em termos históricos? Basta
ler-se as obras de Augusto Comte, de Tocqueville, de Herbert Spencer, de
Bakunin, ou de muitos outros: não é que esses autores não tenham desenvolvido
análises profundas, originais e muitas vezes brilhantes; ocorre que, não por
acaso, o “mito Marx” obscurece-as.
Em sua explicação do “capitalismo”, Marx usou um conceito moral
(a maldade do “capital”) para iniciar sua “crítica”. Além disso, “inverteu”
Hegel e afirmou que os elementos econômicos (ou materiais, ou infra-estrutura,
ou qualquer que seja o termo que o exegeta marxista de plantão deseje)
determinam os elementos não-econômicos (a “super-estrutura” – a política, a
filosofia, as artes, as religiões, a cultura). O que significa “determinar” aí
é um problema epistemológico insolúvel desde a época de Marx; mas o sentido
geral é claro: são as relações econômicas que devem ser levadas em consideração
para explicar-se ou entender-se a política, as artes, a cultura, as religiões
etc.; além disso, é necessário mudar as relações econômicas para que se “mude”
a sociedade.
Há nessa crítica uma forte ambiguidade moral a respeito da
própria moralidade; na verdade, duas ambiguidades. Por um lado, Marx reconhecia
que o ser humano tem elementos altruístas e que pode agir altruisticamente: o
problema é que tal ação altruísta só pode ocorrer quando o “capitalismo” (e, de
maneira mais ampla, a luta de classes) deixar de existir; até lá, o ser humano
será sempre egoísta, com a possível exceção daqueles que “lutam” pelo fim do
capitalismo. Por outro lado, embora a crítica ao capitalismo baseie-se em uma
avaliação moral, essa própria moralidade de fundo é escondida sob o rótulo de
“análise objetiva”, ao mesmo tempo em que a moralidade comum, como vimos, é
condenada como “preconceito burguês”: em outras palavras, “dialeticamente”,
“contraditoriamente”, a moralidade é afirmada-negada.
Dito isso, a submissão da super-estrutura à infra-estrutura é
moralmente degradante, politicamente irresponsável e intelectualmente errada.
Uma coisa é dizer que há relações mais ou menos fortes entre a classe social
que a pessoa integra e algumas de suas preferências morais, políticas e
filosóficas; outra coisa é dizer que basta saber em que classe social a pessoa
nasceu para deduzir daí o seu comportamento – e, mais importante ainda, para
(des)valorizar as ações dessa pessoa. O sentido disso é este: para Marx, o fato
de uma pessoa ter nascido na classe média torna-a uma “burguesa” e todos os
seus atos, conscientes ou não, serão favoráveis à burguesia; há a possibilidade
de essa pessoa “trair” a classe (ajudando os proletários, por exemplo), mas,
exceto no caso da traição em favor do proletariado, todas as ações desse
burguês serão pela exploração dos trabalhadores, da sua dominação política, da
enganação sistemática a respeito de sua condição etc. Se, inversamente, um
proletário age “contra” a sua classe social, esse comportamento ocorre porque
ele ou é um traidor da classe ou, o que supostamente seria mais “correto” para
o marxismo, esse proletário não teria “consciência de classe”: em outras
palavras, ele seria um iludido. Aliás, mesmo a expressão “capitalismo”, cunhada
por Marx, implica sempre, necessariamente, a exploração objetiva do
proletariado pela burguesia: expressão marxista, ela junta uma suposta
descrição (relações entre proletariado e burguesia) com uma forte mas escondida
condenação moral (“o capitalismo é mal porque as relações são sempre de
exploração”).
Dois aspectos centrais que se evidenciam dos comentários acima
são a luta de classes e a utopia igualitarista. A luta de classes, para Marx,
não era uma figura de expressão, ao menos para o “capitalismo”: as duas classes
sociais do capitalismo (proletariado e burguesia) estão sempre,
necessariamente, em conflito, seja ele às claras, seja ele encoberto. O
conflito às claras não são meramente as greves; por si sós, elas apenas podem
constituir o início do conflito franco: o conflito às claras é a revolução
social, o enfrentamento armado dos proletários contra a burguesia; em outras
palavras, é a guerra civil em bases de classe. O conflito encoberto são as
outras relações sociais – que, dessa forma, são sempre ruins, negativas: um
tratamento digno que porventura um burguês dispense a um proletário (como
cidadão, como trabalhador, como ser humano) é apenas um fingimento, ou uma
ilusão autoinduzida. As relações sociais entre as classes sociais só não são
ruins quando são alianças (sempre temporárias) que possam conduzir à revolução
social. A revolução, por seu turno, é rompimento com a história, é tabula rasa:
há uma forte ambiguidade também aqui, em que a história e a historicidade
são-e-não-são valorizadas. (Mas, se considerarmos a famosa frase segundo a qual
“as gerações passadas oprimem os cérebros dos vivos”, veremos que, no fim das
contas, a história não é valorizada.)
Nesses termos, não foi por acaso que há alguns anos uma
professora de Filosofia da Universidade de São Paulo falou que “a classe média
é uma merda”: Marilena Chauí evidenciou de maneira cristalina todo o seu
marxismo e a moralidade a ele vinculada – mesmo que ela mesma, como intelectual
e servidora pública, e pelo conjunto de sua situação social objetiva, seja uma
burguesa, integrante da classe média.
Se o capitalismo é sempre, por definição, mal; se ele define-se
pelo conflito inexpiável entre proletários e burgueses, como é que esse
conflito pode, talvez, ter um fim? Por meio do fim das classes sociais.
Novamente: o “fim das classes sociais” deve ser entendido de modo literal; em
particular, deve-se acabar com a classe burguesa. Para Marx, o fim das classes
sociais permitirá que o ser humano deixe de ser “proletário” ou “burguês”,
sendo somente um “ser humano”. Com o fim das classes, as pessoas deixarão de
ser definidas, entendidas e explicadas a partir de suas classes sociais,
passando a ser puramente “indivíduos”. Com isso, os indivíduos perderão as
limitações que as classes sociais impõe-lhes: aí surge a imagem idílica, mas
irreal e completamente fantasiosa, de que o fim das classes (e do capitalismo)
permitiria que cada pessoa trabalhasse pela manhã em uma fábrica, fosse à tarde
pescar e à noite discutisse filosofia e que no dia seguinte fosse passear pelos
campos pela manhã, fizesse esculturas à tarde e redigisse poemas épicos à noite
– e assim sucessivamente.
Essa imagem pode parecer bonita e atraente, mas na verdade ela é
profundamente falsa e errada. São pelo menos três os problemas relacionados a
ela. Em primeiro lugar, ela despreza o trabalho e é irresponsável: a recompensa
para os trabalhadores seria uma vida livre de qualquer responsabilidade, em
particular sem a necessidade de trabalhar para sobreviver; o mundo ideal que o
marxismo propõe para os trabalhadores é uma existência desvinculada de relações
duradouras e de esforços constantes, que, “dialeticamente”, lembra os relatos
dos aristocratas mais inúteis das monarquias. Deveria ser chocante esse
contraste; mas o fato é que os marxistas (a começar pelo próprio Marx) nunca
examina(ra)m atentamente o fato “contraditório” de que o ideal de vida para os
trabalhadores consiste na negação radical do trabalho e, inversamente, na
afirmação mais desbragada da inutilidade, da futilidade, da irresponsabilidade.
Talvez os marxistas examinem, ou tenham examinado, essa incoerência: mas, por
outro lado, não se vê nenhum marxista criticando a sua utopia, cujo papel
político e intelectual é tão central; da mesma forma, a Sociologia do Trabalho,
que é uma área acadêmica dominada pelo marxismo, a despeito de afirmar
valorizar abstratamente o trabalho, sempre vê o trabalho concreto – por
definição “capitalista” – como algo ruim e negativo, como fonte de alienação e
nunca de realização pessoal e coletiva.
Em segundo lugar, a “utopia” marxista é falsa pelo simples fato
de que o ser humano tem que trabalhar muito e continuamente para poder sobreviver.
Como o Positivismo de Augusto Comte nota e ao contrário do que afirmam o
marxismo e inúmeras filosofias da história que, na verdade, são
anti-históricas, ao longo da história é possível que a carga de trabalho
diminua, que a produtividade aumente, que as condições de trabalho melhorem
e/ou tornem-se menos degradantes; ao contrário do que o marxismo afirma, a
melhoria das condições de vida e de trabalho dependem do acúmulo histórico, não
de revoluções (que, por seu turno, destroem os frutos acumulados do trabalho):
mas, de qualquer maneira, o trabalho contínuo permanecerá sendo uma das
características centrais de todas as sociedades. Assim, a utopia marxista é na
verdade uma quimera, que nega a realidade, a permanência e a necessidade do
trabalho e, no final das contas, degrada os próprios trabalhadores.
Em terceiro lugar, há um aspecto por assim dizer técnico
referente ao trabalho. Um trabalhador qualquer só se torna habilidoso em suas
atividades se realizar cotidiana e continuamente suas tarefas, ao longo de
bastante tempo. Aliás, não importa que seja um trabalhador; um burguês, um
intelectual, um artista têm que desenvolver suas habilidades da mesma forma.
Esse desenvolvimento das habilidades requer tanto o trabalho prático, nas
atividades laborais cotidianas, quanto o aprendizado de novas técnicas, novas
teorias etc., em cursos de aperfeiçoamento. Em outras palavras, para que o
trabalho seja bem feito é necessária a especialização dos trabalhadores (e dos
burgueses, e dos intelectuais, e dos artistas); ela ocorre não somente em
termos individuais, mas coletivos, e o resultado da especialização coletiva é a
constituição, e a permanência, das classes sociais. Uma outra forma de entender
a especialização é por meio da divisão social do trabalho – e, como os
sociólogos não marxistas sabem há muito tempo, uma das consequências da divisão
social do trabalho é a complementaridade das relações sociais: cada indivíduo e
cada classe fornece às demais o que produz e recebe das demais o que não
produz.
Esses erros intelectuais e defeitos morais perpassam as obras de
Marx e as de seus herdeiros teóricos e práticos: as dezenas ou centenas de
marxismos todas compartilham essas características. Elas não são erros menores
ou secundários; esses problemas são centrais, mesmo que não sejam explícitos.
Nesses termos, como é possível afirmar, com seriedade, que Marx teria sido um
dos maiores pensadores da humanidade? O período em que ele viveu (o século XIX)
já tinha elementos suficientes para que ele não incorresse em tais problemas:
tanto isso é verdade que muitos outros pensadores fizeram “críticas” da época
sem errarem como errou Marx.
Mas é necessário comentar as consequências práticas do marxismo.
Nesse aspecto, é necessário falar bem menos: não porque não haja o que dizer,
mas porque as suas consequências são desastrosas e elas são sobejamente
conhecidas, ainda que os próprios marxistas façam o possível (mas também o
imoral) para mudarem de assunto, para fingirem que não produziram desastres e
para imputarem aos outros os seus próprios defeitos. (Embora, como observamos
antes, um “defeito” seja uma categoria moral – e, para os marxistas, as
categorias morais são apenas “preconceitos burgueses”, portanto desprezíveis.)
Comecemos pelo mais conhecido: os crimes de Lênin e Stálin, as
invasões à Hungria em 1956 e à Tchecoslováquia em 1968, os grupos terroristas
na Alemanha e na Itália entre as décadas de 1960 e 1990, as violências em Cuba,
na Albânia, no Camboja, o apoio ao terrorismo árabe etc. Para tudo isso,
sugerimos somente duas referências gerais: O passado de uma ilusão, de François
Furet, e O livro negro do comunismo, de Jean-Louis Margolin e outros. Os
regimes políticos inspirados no marxismo foram, e são, sempre autoritários,
cerceadores das liberdades. A seu favor não é nem mesmo possível argumentar a
diminuição das mazelas do “capitalismo” – por exemplo, com o chamado Estado de
Bem-Estar Social: o Welfare State foi criado para preservar o capitalismo e
evitar o comunismo, não o inverso; os propositores do Estado de Bem-Estar eram
todos e sempre pessoas imbuídas de todos aqueles valores e preocupações que
Marx chamava de “preconceitos burgueses”: isso se torna mais nítido quando se
percebe que o Welfare consiste em larga medida em uma política de colaboração
de classes, em vez de uma luta de classes. Ao mesmo tempo, a ação direta dos
marxistas foi sempre no sentido de incentivar sublevações populares,
revoluções, golpes etc. As ocasiões em que os comunistas desenvolveram ações
realmente mais progressistas e construtivas foram aquelas em que eles
afastaram-se das ortodoxias marxistas: basta ver a Social-Democracia na
Alemanha, após a II Guerra Mundial.
De qualquer maneira, podemos reconhecer sem dificuldade que,
independentemente das suas ações concretas, a popularidade do marxismo pode
servir como uma espécie de “termômetro social” (uma proxy, como se diz nas
Ciências Sociais): quanto mais popular o marxismo, presumivelmente piores serão
as condições sociais. Evidentemente, disso não se segue que as soluções
propostas pelo marxismo devam ser postas em prática.
De qualquer maneira, há um traço intelectual originado com Marx
e transmitido pelo marxismo que se perpetuou ao longo do tempo e que se
difundiu mundo afora, sendo muito ativo hoje no Brasil; esse traço consiste na
combinação das “contradições dialéticas” com a atitude “crítica”. Já comentamos
como é que o marxismo lida com as “contradições”; a mera inclusão dessa palavra
em um discurso marxista basta para solucionar as maiores e mais gritantes
incoerências. Um exemplo é o conceito de “tolerância intolerante”; embora de
validade atual, ele foi elaborado no final dos anos 1960 pelo filósofo Herbert
Marcuse, de origem alemã mas convenientemente radicado nos Estados Unidos. A
tolerância intolerante consiste nisto: como a tolerância é uma virtude
burguesa, ela na verdade é mais um preconceito burguês que serve apenas para
beneficiar o capitalismo; dessa forma, os adeptos da tolerância intolerante
devem ser tolerantes com aqueles que compartilham suas opiniões, mas devem ser
intolerantes com quem discorda de suas opiniões; além disso, os adeptos da
tolerância intolerante são, por definição, “progressistas” e, inversamente,
aqueles que discordam são por definição “fascistas”. Evidentemente, a ideia de
“tolerância intolerante” é incoerente e sua aplicação é profundamente
autoritária; mas, para vestir uma roupagem “progressista”, basta dizer que ela
é contraditória – e aí fica tudo bem.
A atitude “crítica” geralmente é apresentada em um primeiro
momento como de “avaliação científica” de alguma realidade (geralmente, uma
realidade social); mas o específico do que estamos comentando é que essa avaliação
é sempre político-moral, com um viés negativo e um espírito destruidor. O
conceito de “capitalismo”, por exemplo, é essencialmente crítico no sentido que
estamos expondo: ele não consiste apenas em uma forma de descrever uma certa
realidade, mas, além de dizer que a sociedade organiza-se de uma determinada
forma, a palavra “capitalismo” também faz uma acusação de que o capitalismo é
mal e é sempre dominador-e-explorador. Assim, a atitude “crítica” é uma atitude
permanentemente contrária “a tudo que aí está”; ela serve para destruir, para
negar, não para avaliar e propor.
É claro que há muitas situações em que é necessário de fato
“criticar”: por exemplo, o trabalho escravo nos dias atuais deve ser
efetivamente criticado sem remissão. Isso é uma coisa. Mas outra coisa, bem
diversa, é sempre criticar, sempre destruir e, de qualquer maneira, sempre
reclamar. Além de chatos, os intelectuais críticos são incapazes de propor
soluções, de considerar que (de vez em quando!) há avanços, que situações antes
ruins tornaram-se melhores, que o que estava menos mal está agora melhor; da
mesma forma, os intelectuais críticos são incapazes de avaliar o que quer que
seja sem apelar para a quimera comunista, mesmo que implicitamente. Como
exemplos concretos de intelectuais marcadas por atitudes “críticas”, nesse
sentido, podemos desde já duas intelectuais brasileiras que fazem grande
sucesso: Marilena Chauí e Márcia Tiburi. A primeira é ortodoxamente marxista,
enquanto a segunda seria uma marxista “pós-moderna”; mas é fácil perceber nos
escritos e entrevistas de ambas a forte “criticidade”.
De maneira mais conspícua, podemos dar um outro exemplo de
atitude “crítica”: a corrente teórica dos chamados “estudos pós-coloniais”. De
acordo com os seus autores, a África, a Ásia e até a América Latina são
dominadas desde o século XV até hoje pela Europa e pelo seu sucedâneo, os
Estados Unidos – em uma palavra, pelo “Ocidente” –; como são dominadas
política, econômica e intelectualmente pelo “Ocidente”, essas regiões devem
sublevar-se contra a dominação e o status de “colônia”, desenvolvendo relações
sociais, políticas, econômicas e intelectuais “alternativas”. Pouco importa a
essa corrente que não há mais colônias ocidentais na Ásia, na África e na
América Latina; que muitos dos problemas (embora não todos) por que essas
regiões passam têm origem nelas mesmas; que muitos, quando não a totalidade,
dos intelectuais “pós-coloniais” estuda, estudou ou trabalha nos mesmos países
integrantes do Ocidente que criticam; que – e isto é o mais importante – as
condições sociais, políticas, econômicas e intelectuais que permitirão a
“emancipação” dessas regiões (liberdades de pensamento, de expressão, de
reunião; emancipação das mulheres; trabalho livre etc.) foram criadas e são
mantidas exatamente pelo mesmo Ocidente violentamente criticado. Aliás, embora
o “Ocidente” tenha sérias responsabilidades sobre diversos problemas atuais –
por exemplo, a interferência daninha da Europa em conflitos no Oriente Médio –,
os intelectuais do pós-colonialismo fazem um completo e obsequioso silêncio a
respeito do neocolonialismo exercido por países asiáticos sobre o resto do
mundo (exemplos banais: penetração da China na África, na Ásia e na América
Latina; imperialismo russo renovado na Europa, no Oriente Médio e na Ásia); ou
das violências que países “colônias” sofrem de seus próprios governantes (como
em Cuba e na Venezuela). Tudo isso apresentado sempre de maneira bastante
“crítica”.
O que vimos indicando corresponde a traços do pensamento e das
práticas do marxismo, mas também do próprio Marx; com a distância que 150 a 200
anos, é sem dúvida nenhuma fácil para nós fazermos essas críticas, mas convém
notar que desde o século XIX, ou seja, desde quando o próprio Marx vivia,
escrevia e atuava havia autores que indicavam que esses problemas poderiam
ocorrer. O mais interessante é que muitas de tais críticas provieram não da
“direita”, mas do próprio lado do marxismo – da esquerda anarquista. Tanto
Bakunin (Escritos contra Marx) quando Proudhon (Os anarquistas julgam Marx) já
denunciavam no século XIX que o marxismo conduziria ao autoritarismo, à
alienação dos trabalhadores etc. – sem deixar de notar que o próprio Marx agia
de maneira torpe, desonesta, de má-fé com seus adversários (mesmo os
adversários anarquistas) (afinal, as virtudes habituais são “preconceitos
burgueses”).
Todos esses problemas que indicamos são tanto de Marx quanto das
tradições nele inspiradas. Como se vê, não são problemas pequenos ou
secundários, mas são grandes e centrais. Fica assim a dúvida: o que há, de
fato, para comemorar nos 200 anos de nascimento de Marx? Aliás, como é possível
que marxistas exijam, com seriedade, que se tenha generosidade para com Marx no
momento de sua avaliação, se essa generosidade sempre foi “criticamente”
rejeitada por ele e pelos marxismos?
Embora longo, este artigo não pôde desenvolver outros temas, que
deveriam ser abordados. Queríamos antes de mais nada indicar que é difícil, ou
impossível, sustentar que Marx teria sido um gênio e um benemérito da
humanidade; assim, este artigo lamentavelmente assumiu um aspecto... “crítico”.
Mas é fato que uma avaliação minimamente completa de Marx teria que abordar
pelo menos dois outros aspectos: (1) quais propostas e meios positivos para
solucionar os problemas humanos e sociais? (2) Como entender o “progresso”,
considerando que desde o século XX essa concepção é monopolizada pela esquerda
e, em particular, pelos marxistas? Notamos antes que os danos causados pelos
marxismos ao “progresso” (e à sua idéia-irmã, a de “ordem”) foram imensos; aqui
só podemos sugerir a leitura de nosso artigo “Os conservadores à deriva no
Brasil” (Gazeta do Povo, 1.4.2018). Já sobre a primeira questão, teremos que
aguardar uma nova e mais propícia ocasião.
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