O trecho abaixo, de autoria de Raimundo Teixeira Mendes, apresenta com sua excepcional capacidade de síntese o papel intermediário e extremamente equívoco da metafísica. Por um lado, ela dissolve a teologia; ao mesmo tempo, prepara a ciência (e, daí, a positividade). Quando a metafísica limita-se às ciências inferiores (isto é, às chamadas “ciências naturais”), a transição da teologia para a ciência passando pela metafísica ocorre sem maiores problemas; mas no caso das ciências superiores (as chamadas “ciências humanas”, englobadas na classificação das ciências de Augusto Comte pela Sociologia e ciência da Moral) a metafísica na verdade atravanca o desenvolvimento, sendo um empecilho muito maior à positividade que originalmente o fora a teologia.
Essa descrição do aspecto equívoco (e equivocado) da metafísica foi redigida em 1900, a partir das reflexões que desde 1822 Augusto Comte fazia: ora, neste início do século XXI, as observações de Teixeira Mendes são desgraçada e lamentavelmente atuais. De fato, a metafísica reina altaneira na Sociologia (chamada – aliás, conforme os hábitos da metafísica academicista, de “ciências sociais”) e na Moral (chamada – conforme a dupla metafísica academicista e espiritualista – de “Psicologia”). Essa metafísica pode ser verificada das mais variadas maneiras, das quais citamos apenas algumas, mas sem a pretensão de esgotar as possibilidades:
- na concepção de que as ciências superiores têm que ser sempre, necessária e unicamente “críticas”, isto é, corrosivas e destrutivas
- na concepção de que toda ordem rejeita o progresso e, inversamente, que todo progresso rejeita a ordem
- nas concepções teóricas indemonstráveis
- nas pesquisas do absoluto
- na antropomorfização das abstrações
- na reiteração de abstrações criptoteológicas, como a “alma” e o “povo”
- na manutenção de oposições teológicas como “livre arbítrio versus determinismo” ou “cultura versus natureza”
- no desprezo do altruísmo natural e na valorização única do egoísmo
- nos hábitos cientificistas, que desprezam a visão de conjunto, valorizam a visão de detalhe e rejeitam a moralização da ciência.
O trecho abaixo foi extraído da seguinte obra: Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 662.
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"[...] Essa filosofia bastarda [a metafísica] constitui um simples dissolvente da primeira [a teologia], preparando o ascendente da ciência, mediante uma combinação empírica e inconsciente dos dois métodos antagônicos [a teologia e a ciência]. Dessa quimérica tentativa resultaram a dissolução da teologia e uma anarquia mental e social favorável ao surto [i. e., desenvolvimento] inicial do gênio positivo. Semelhante utilidade limita-se, porém, ao estudo dos fenômenos mais grosseiros. Desde que a suficiente exploração destes permite e exige que o espírito positivo penetre nos domínios supremos da Política e da Moral, o espírito metafísico torna-se-lhe mais antipático do que o espírito teológico. Com efeito, ele tende então a manter indefinidamente a união híbrida entre a teologia e a ciência, impedindo, ao mesmo tempo, a ordem e o progresso, pela fomentação simultânea da anarquia e da retrogradação".
(Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 662.)
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