No dia 3 de Carlos Magno de 169 (20.6.2023) realizamos nossa habitual prédica positiva. Após darmos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista (em sua sétima conferência, dedicada à filosofia das ciências naturais), realizamos nosso sermão, que abordou os vícios intelectuais opostos do materialismo e do espiritualismo/idealismo.
As anotações que serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo.
Antes das atividades da prédica, lamentamos e criticamos dois acontecimentos recentes: (1) a tramitação acelerada do projeto de "Lei da Carteirada", que consolida os ocupantes de cargos públicos como uma casta no Brasil e degrada totalmente o caráter de responsabilização próprio à República, ao criminalizar as críticas feitas contra eles; (2) o mais recente episódio de assassinato perpretado por adolescentes ou jovens adultos em escolas públicas, agora ocorrido no interior do Paraná (em Cambé), no dia 19.6.2023.
A prédica foi transmitida, como de hábito, nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/Itn9w) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://l1nk.dev/fLXgY). O sermão está disponível a partir de 54' 27".
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Sobre o materialismo e o espiritualismo/idealismo
o Entre essas supostas características gerais apresentam-se com freqüência duas, que têm conteúdos opostos: o materialismo e o espiritualismo/idealismo
o Além de serem características que, mais que descrever o Positivismo, degradam-no e reduzem-no ao que ele não é, devemos também indicar que o Positivismo por si só tem muito o que dizer a respeito delas, no sentido de que o Positivismo define com clareza esses conceitos
- Antes de mais nada, então, vale a pena sabermos como é que se pode atribuir ao Positivismo cada um desses conceitos
- Atribui-se (erroneamente!) o materialismo à Religião da Humanidade, por um lado, devido à importância que a ciência tem no Positivismo, com os vários atributos reais ou imputados, bem ou mal, à ciência: empirismo, naturalismo etc.; por outro lado, devido à rejeição do sobrenaturalismo
o A ultrapassagem da teologia, em particular, com a conseqüente rejeição do sobrenaturalismo, conduz com freqüência à concepção de que o Positivismo seria materialista – e, às vezes, seria materialista porque seria ateu
§ Claramente, os que afirmam que o Positivismo é “materialista” e/ou “ateu” são pensadores teológicos
§ Às vezes, autores materialistas atribuem ao Positivismo o caráter de materialismo - e, nesse caso, essa atribuição, ainda que errrada, é elogiosa
o Se adotarmos uma concepção rasa e genérica de “materialismo” como consistindo na rejeição do sobrenaturalismo e na concomitante afirmação do naturalismo, então, de fato, o Positivismo seria “materialista”
o No que se refere ao suposto ateísmo, a Religião da Humanidade pura e simplesmente não é atéia, podendo ser denominada, nesse sentido, de “agnóstica”
§ O ateísmo encontra-se no âmbito da metafísica, com seu caráter crítico, corrosivo, destruidor e sua ambição absolutista
§ Com enorme freqüência, devido à lógica interna do ateísmo, muitos ateus acabam rejeitando o humanismo e/ou adotando o individualismo egoístico
§ Como dizia Augusto Comte – criticando o ateísmo –, os ateus mantêm a pergunta ("quem criou o universo?") mas rejeitam a única resposta possível (a(s) divindade(s))
§ O Positivismo considera que o ateísmo, como a metafísica de modo geral, foi uma etapa histórica necessária, mas estritamente passageira e destinada a ser ultrapassada
§ O Positivismo afirma a Humanidade e o humanismo, a partir do estudo da realidade; assumimos como pressuposto que as concepções teológicas são, em si mesmas, fictícias e seguimos adiante com a já indicada afirmação do ser humano, do humanismo e da Humanidade
- Atribui-se (erroneamente!) o espiritualismo ao Positivismo, por um lado, devido à afirmação do valor das idéias, das concepções morais, da subjetividade, da vida subjetiva e, por outro lado, devido à afirmação da Religião da Humanidade
o Um sinônimo – na verdade, de uso até mais comum no que se refere ao Positivismo – para esse espiritualismo é “idealismo”
o Quando afirmam que o Positivismo seria “idealista” ou “espiritualista” devido à Religião da Humanidade, o que está implícito é a afirmação (na verdade, acusação) de que no final das contas o Positivismo teria retrogradado para a teologia
o Claramente, os que afirmam que o Positivismo é “espiritualista” ou “idealista” são pensadores cientificistas, sejam eles meramente cientistas, sejam eles marxistas, sejam ainda ateus militantes
- Passemos, então, para os conceitos positivos de “materialismo” e “espiritualismo”:
o Para o Positivismo, o materialismo e espiritualismo basicamente são vícios intelectuais – e são vícios simétricos
o Embora basicamente sejam vícios intelectuais, eles apresentam conseqüências morais
- Para entender-se o caráter vicioso desses conceitos e seu aspecto simétrico, é necessário termos em mente a escala enciclopédica:
o A escala enciclopédica estabelece que existem sete níveis de estudo da realidade; cada nível constitui-se de fenômenos irredutíveis aos graus anteriores e que servem de base para os graus subseqüentes; além disso, partindo do nível mais simples, mais geral (em termos objetivos) e mais grosseiro, a cada nível que se sobe há um aumento na complicação, há um decréscimo da generalidade (objetiva) e um aumento na nobreza do fenômeno estudado
o Os sete níveis podem ser ajustados de diversas maneiras, reduzindo-se a escala para seis, cinco, quatro, três ou no mínimo dois graus
§ Esses dois graus correspondem à Cosmologia e à Moral
§ Essa oposição, por sua vez, corresponde à dualidade fundamental entre o mundo e o ser humano
§ Essa dualidade, por sua vez, pode ser entendida como os âmbitos da objetividade e da subjetividade (ou, ainda, do método objetivo e do método subjetivo)
o Em relação aos sete degraus da escala enciclopédica, o Positivismo afirma a dignidade de cada nível de fenômenos
§ É importante repetirmos: a dignidade de cada degrau consiste no reconhecimento simultâneo de que cada nível congrega categorias gerais de fenômenos sui generis, que são irredutíveis aos fenômenos dos degraus inferiores; além disso, cada degrau constitui a base para o desenvolvimento dos fenômenos superiores
o Assim, em outras palavras, a dignidade de cada nível é diferente:
§ (1) da subordinação dos fenômenos mais nobres aos mais grosseiros (estabelecida pelo método objetivo) e
§ (2) da avaliação teórica, metodológica e moral dos fenômenos mais grosseiros pelos mais nobres (realizada pelo método subjetivo)
- Estabelecidos os degraus da escala enciclopédica, a dignidade de cada um deles e as relações que eles necessariamente mantêm entre si, podemos afinal passar diretamente para os conceitos de materialismo e espiritualismo:
o O materialismo consiste na explicação de fenômenos superiores pelos inferiores, via redução
§ Os exemplos são numerosos: são os vícios do matematicismo (redução da realidade aos números, como ocorre com freqüência com a Estatística), do astronomismo (com a astrologia), do fisicalismo (com o mecanicismo), do biologicismo (em que a sociedade e os indivíduos são reduzidos a animais e/ou a genes), do economicismo (em que a sociedade e os indivíduos são reduzidos aos interesses de classe) etc.
o O espiritualismo consiste na afirmação dos fenômenos superiores desconsiderando (isto é, rejeitando, ou fingindo que não existem) os fenômenos inferiores
§ As concepções idealistas geralmente são espiritualistas, no sentido indicado, em que o que move as sociedades são “espíritos” e/ou “idéias” abstratas e em que não há relação nenhuma do ser humano com a realidade cósmica
§ Em outras palavras, o espiritualismo/idealismo considera que o ser humano flutua no vazio
· Exemplo: a oposição de negação mútua, estabelecida pela metafísica idealista alemã, entre Kultur e Zivilitation
o Augusto Comte observa que, até a constituição definitiva do Positivismo e da Religião da Humanidade, o método objetivo e o método subjetivo estiveram em lados opostos; embora o método subjetivo afirme a perspectiva humana, ele só pôde ser reafirmado após o método objetivo alcançar as ciências superiores e, assim, regenerar as doutrinas específicas das ciências superiores
§ O choque multimilenar entre os métodos objetivo e subjetivo corresponde à disputa entre materialismo e espiritualismo/idealismo
§ Esse choque, essa disputa só pôde e só pode ser solucionada – e é temos que afirmar que é necessário ter uma solução para isso – com o Positivismo e a Religião da Humanidade
o Ambos os vícios são absolutos:
§ O materialismo é sempre metafísico
§ O espiritualismo pode ser teológico ou metafísico
- Do ponto de vista moral, os motivos que, supostamente, justificariam os defeitos de materialismo e espiritualismo/idealismo são os seguintes:
o No que se refere ao materialismo, ele justificar-se-ia pela importância histórica e pela eficiência explicativa do método objetivo – que, de fato, tendia a aplicar um procedimento materialista em cada degrau da escala enciclopédica antes de reconhecer a limitação desse procedimento e passar para o degrau seguinte
§ De um ponto de vista epistemológico, a eficiência do método objetivo baseia-se nos princípios (1) segundo o qual os fenômenos mais nobres subordinam-se aos mais grosseiros e (2) segundo o qual quanto mais grosseiro um fenômeno, mais geral ele é
o No que se refere ao espiritualismo/idealismo, ele justificar-se-ia pela importância universal e eterna da moralidade humana, presidindo, então, o método subjetivo
§ Entretanto, a afirmação da moralidade humana com freqüência foi confundida com a afirmação dos dogmas teológicos e, de qualquer maneira, com a negação da realidade cosmológica
§ A dignidade humana seria dada, então e de maneira altamente contraditória, pela afirmação da divindade e/ou por puras idéias desencarnadas
o É importante lembrarmos que há confusões reiteradas, intencionais ou ingênuas, de que o materialismo é isento de moralidade (portanto, seria “objetivo” e/ou amoral) e de que, inversamente, somente o espiritualismo/idealismo permitiria a avaliação moral
§ O “realismo” objetivista do materialismo despreza a moralidade ou redu-la sistematicamente aos egoísmos individual e/ou nacional; além disso, para essa concepção o ser humano não tem verdadeira liberdade nem é dotado de “agência”, isto é, de vontade própria: ele é apenas um títere de “forças externas” totalmente incontroláveis
§ Por outro lado, ao rejeitar a vinculação do ser humano ao mundo e, portanto, ao rejeitar a subordinação dos fenômenos mais nobres aos mais grosseiros, a concepção de moralidade do espiritualismo/idealismo consiste na liberdade das divindades, que não se submete a nada nem se preocupa com ninguém; portanto, é caprichosa, voluntariosa, irresponsável e incontrolável; daí se segue que a pretensa moralidade defendida pelo espiritualismo/idealismo é totalmente imoral
- Para concluir, vale a pena reafirmarmos algumas idéias expostas:
o Apesar de numerosos comentadores (ou melhor, numerosos críticos) atribuírem ao Positivismo o materialismo ou o espiritualismo/idealismo, isso é errado
o Os conceitos de materialismo e espiritualismo/idealismo devem ser (isto é, só podem ser) entendidos em função da escala enciclopédica
o O Positivismo afirma a dignidade de cada nível da escala enciclopédica
o O materialismo reduz os fenômenos superiores aos inferiores, o espiritualismo afirma os fenômenos superiores desprezando os inferiores
o Embora materialismo e espiritualismo/idealismo pareçam justificar-se em função de propriedades fundamentais do método objetivo e do método subjetivo, é bastante claro que materialismo e espiritualismo/idealismo são vícios intelectuais e morais:
§ São sistematicamente incapazes de entender a realidade e as relações entre o homem e o mundo
§ O materialismo degrada o ser humano ao negar a realidade da sociedade e da moral
§ O espiritualismo/idealismo degrada o ser humano ao negar a subordinação humana ao mundo e validar a concepção caprichosa, ultravoluntarista e baseada na teologia de “liberdade”
o A única solução possível para os vícios opostos de materialismo e espiritualismo/idealismo é aquela que respeita a dignidade humana e não nega a realidade; em outras palavras, a única solução possível é a combinação do método objetivo com o método subjetivo, realizado pela síntese positiva, a partir da simpatia altruísta, com vistas à sinergia prática, no âmbito da Religião da Humanidade
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