No dia 24 de São Paulo de 169 (13.6.2023) realizamos nossa prédica positiva. Demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua sétima conferência, dedicada ao que podemos chamar de filosofia das ciências naturais. Na seqüência, expusemos algumas considerações sobre a noção positiva de fé, considerando, além disso, como se apresentam as dúvidas da fé na teologia, na metafísica e na positividade.
A prédica foi transmitida ao vivo nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/Zr9Z6) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://acesse.one/w1vK5). O sermão sobre a fé pode ser visto a partir de 45' 05".
* * *
Sobre a fé
o Embora muitas vezes seja até possível essa metonímia (a parte pelo todo), o fato é que a fé é apenas uma parte da religião – e nem ao menos é a principal
§ Assim, tomar a fé pela religião pode ser (1) metonímia (aceitável) ou (2) uma redução (inaceitável)
o Essa postura de equivaler a religião à fé, todavia, é própria dos protestantismos e, mais do que isso, dos protestantismos evangélicos do século XIX para cá
o O que interessa neste sermão é apresentar as características gerais da fé (em particular, claro, da fé positiva) e, como uma pequena aplicação prática, diferenciar a fé positiva do conceito cada vez mais absoluto e restrito que o monoteísmo faz da “fé”
- A chamada “fé” na verdade é o dogma, isto é, a parte da religião que trata das idéias e dos valores; em outras palavras, é a parte que trata da inteligência
o Como o dogma é a parte que trata da inteligência, ele sistematiza e organiza o entendimento da realidade (seja a cosmológica, seja a humana), para podermos relacionarmo-nos com ela
§ Da mesma forma, portanto, o dogma é a parte que sistematiza e explica o Grande Ser
o Nos monoteísmos, a explicação da divindade assume o lugar central e, na prática, transforma o dogma em sinônimo da religião
§ Isso curiosamente torna extremamente intelectualistas essas religiões
§ Além disso, como sabemos, essas religiões cada vez mais recuam e limitam-se a defesas da pura “fé”, da pura crença, em que a crença torna-se importante por si só, contra tudo e a despeito de tudo
- Antes de mais nada, devemos entender a fé do ponto de vista estático:
o A concepção sintética e simpática da unidade humana estabelece que o culto precede o dogma
§ O culto eleva-nos à perspectiva adequada da Humanidade e, assim, prepara-nos para o dogma
o A fé – ou melhor, o dogma – integra a religião de maneira complementar (e subordinada) com o amor
§ O amor compreende os sentimentos propriamente ditos e também as atividades práticas
§ A fé compreende a inteligência
§ Assim, ser religioso é antes de mais nada sentir e agir em benefício da Humanidade; as crenças, ou a “fé”, atuam apenas como intermediárias (ao esclarecer-nos sobre o mundo e sobre os meios de modificá-lo)
o Nas teologias a fé (o dogma) vem antes do amor (e do culto), pois, sendo imaginários os seus respectivos grandes seres, a sua definição, ou a sua busca, deve concentrar as maiores atenções
§ Na positividade o Grande Ser é real e, tomando-o como pressuposto, a atenção pode concentrar-se no que realmente importa, ou seja, no amor (e no culto)
o A religião busca estabelecer a mais completa unidade humana
§ “Religião” vem de religare: ligar internamente pelo amor e externamente pela fé
o A fé faz-nos reconhecer uma potência superior e exterior a nós a fim de regular nossos instintos individuais
o A fé positiva apresenta várias características:
§ “O dogma fundamental da religião universal consiste, portanto, na existência constatada de uma ordem imutável a que estão sujeitos os acontecimentos de todo gênero. Esta ordem é ao mesmo tempo objetiva e subjetiva: por outras palavras, diz igualmente respeito ao objeto contemplado e ao sujeito contemplador” (Catecismo, 1ª Conf.)
§ A fé positiva exige a harmonia entre o sujeito que conhece (subjetivamente) e o objeto conhecido (objetivamente)
§ O conjunto da ordem universal em si mesmo é constatado e não explicado; ele fornece a base para as explicações variadas
o Enquanto a fé teológica explica tudo por meio das vontades, a fé positiva explica os fenômenos particulares por meio das leis e reconhece para as vontades o seu âmbito específico, que é o da atividade intencional dos seres humanos
§ A submissão humana à regularidade das leis, permitindo a previsão e a intervenção, resulta em que a fé positiva pode efetivamente estender-se ao âmbito da atividade prática
§ Em contraposição, como a teologia pressupõe sempre as vontades arbitrárias, ela não indica regularidades nem permite, portanto, a atuação humana regular e racional
§ O máximo de previsibilidade que a teologia aceita são as “maldições” e/ou o destino cego, que representam respectivamente, por um lado, a vontade arbitrária e inflexível de uma pessoa concreta e, por outro lado, a vontade arbitrária e inflexível de um ser superior anônimo
- Do ponto de vista dinâmico, a fé deve ser entendida da seguinte maneira:
o O princípio fundamental que explica dinamicamente a fé é a lei intelectual dos três estados
§ As concepções teológicas são absolutas e necessariamente surgiram antes das concepções relativas
§ As explicações absolutas começaram fetíchicas, passaram para o politeísmo e então para o monoteísmo, degradando-se afinal na metafísica
o Os seres superiores fictícios inspiravam sentimentos mais ou menos fortes, apesar de sua irracionalidade e de suas vontades caprichosas
o Enquanto o dogma positivo limitou-se à cosmologia e até à biologia, ele foi incapaz de desenvolver qualquer concepção que estimulasse realmente os nossos sentimentos e regulasse nossas condutas, ao mesmo tempo em que se limitou à crítica (negativa e destruidora) dos seres supremos fictícios
o Mas com a criação da Sociologia e da Moral, estudando de maneira positiva a ordem humana, foi afinal possível constituir-se e sistematizar-se a noção positiva do ser supremo, a Humanidade
- As crenças absolutas – teológicas e metafísicas – são sempre incompatíveis entre si, especialmente no caso das teologias monoteístas
o Uma das consequências dessa incompatibilidade mútua é que essas crenças promovem a intolerância sistemática umas em relação às demais
- As crises de dúvidas que assomam todos os seres humanos, em vários momentos de suas vidas, são entendidas de diferentes maneiras para as religiões absolutistas – ou melhor, para os monoteísmos – e para a religião relativa e positiva
o No caso dos politeísmos e até dos fetichismos, as dúvidas na fé podem ser solucionadas por meio da mudança de panteão ou de sistema filosófico (um fetichista reafirma o fetichismo; um politeísta muda de panteão ou volta para o fetichismo ou até sobe para o monoteísmo)
o Para os monoteísmos, as dúvidas não apresentam alternativa: elas só podem ser solucionadas por meio da reafirmação das crenças (ocorrida mais ou menos em breve)
§ Às vezes, no monoteísmo considera-se que a dúvida faz parte da fé; entretanto, essa dúvida-que-integra-a-fé só pode integrar a fé quando a dúvida é solucionada, necessariamente, por meio da reafirmação da fé e pela rejeição das dúvidas
§ Na passagem do politeísmo para o monoteísmo, o dogma teológico torna-se cada vez mais concentrado, em princípios cada vez mais fechados e cada vez mais absolutos, do que resulta que a saída do monoteísmo é sempre entendida como heresia
§ Não apenas a simples dúvida como também a crítica é entendida como heresia, ou seja, como crime intelectual e social
o Na metafísica a dúvida é congênita e transformada sistematicamente em crítica
§ A “heresia” na metafísica consiste na crença e não na dúvida
o Na positividade, a dúvida é entendida como algo normal, isto é, como parte do processo de aprendizado
§ O relativismo próprio à positividade resulta em que a dúvida e o “erro” integram o processo de aprendizado
§ O entendimento positivo da realidade conduz a que as dúvidas sejam esclarecidas, explicadas e demonstradas; dessa forma, a fé é constituída pelo convencimento e não pela negação de toda racionalidade
- Os protestantismos, especialmente os evangélicos e cada vez mais a partir do século XIX, afirmam a centralidade da fé
o A centralidade da fé no protestantismo realça o seu caráter individualista, em que o crente individualmente se liga à divindade
§ A centralidade da fé – portanto, do dogma – ocorre às custas do amor
o O avanço da positividade (e mesmo da metafísica) acua cada vez mais a teologia, tornando cada vez mais irracional, imoral e por assim dizer inócua a crença na divindade
o Assim, cada vez mais a pura crença em algo torna-se um valor em si mesmo
§ Essa pura crença é cada vez mais um ato irracional, em que o conteúdo da crença acaba tornando-se secundário: “crer” é mais importante que “saber”, “conhecer” e até “amar”
o É importante insistir: essa pura crença é:
§ Irracional: pois rejeita a reflexão e o relativismo
§ Imoral: pois afirma o egoísmo individualista, afirma uma espécie de intelectualismo, afasta o ser humano do altruísmo, nega a Humanidade e estimula as vontades caprichosas
§ “Inócua”: pois rejeita o conhecimento efetivo da realidade, preferindo os caprichos voluntariosos
§ Resultando na intolerância e no fanatismo
- Para concluir, importa lembrarmos que: a verdadeira concepção da fé é aquela que (1) explica a realidade para o ser humano, (2) reconhece a submissão geral do dogma ao culto e ao regime, (3) permite a sábia e digna intervenção humana no mundo e (4) possibilita o desenvolvimento humano, principalmente moral, tendo por parâmetro a Humanidade
Nenhum comentário:
Postar um comentário