14 abril 2025

Monitor Mercantil: A validade do "Ordem e Progresso"

No dia 14.4.2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo "A validade do 'Ordem e Progresso'".

A versão eletrônica do texto encontra-se disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/a-validade-do-ordem-e-progresso/.

A versão original do texto está reproduzida abaixo.

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A validade do “Ordem e Progresso”

 

A ninguém escapa o aspecto profundamente dividido da sociedade e da política atuais; essa divisão por vezes é afirmada na oposição “direita-esquerda”, mas ela também pode ser estabelecida como “reacionários vs. revolucionários”. Esses vários termos descrevem clivagens profundas, sem oferecerem soluções para o problema de fundo. Ora, é nesse quadro que se justifica e ganha renovada relevância a fórmula positivista “Ordem e Progresso”.

Quando Augusto Comte (1798-1857) – o fundador da Sociologia, da História das Ciências e do Positivismo – propôs a fórmula “Ordem e Progresso”, no início do século XIX, o quadro que ele tinha à sua frente era muito parecido com o que vivemos atualmente. Por um lado, ocorriam profundas e necessárias mudanças sociais, que eram tanto uma questão de fato (as mudanças ocorriam de qualquer maneira) quanto uma questão de valores (as mudanças eram desejadas): esses processos foram resumidos nos debates e nos choques da Revolução Francesa (1789-1798). Por outro lado, havia resistências às mudanças – e essas resistências aconteciam também como realidades sociopolíticas e como valores. Os defensores das mudanças eram revolucionários; os resistentes às mudanças eram reacionários.

Para o liberalismo político, a disputa entre revolucionários e reacionários era, e é, apenas a disputa entre “situação” e “oposição”, que devem alternar-se no poder do Estado e na direção geral da sociedade. A idéia da alternância entre situação e oposição tem um aspecto central e importantíssimo de civilizar a disputa, impedir a violência e estimular a tolerância; mas essa idéia serve apenas para isso: ela não explica a origem do problema nem propõe nenhuma solução efetiva de longo prazo.

Em face da dramática disputa política, social e moral entre revolucionários e reacionários, Comte percebeu que ela é devido a uma dinâmica histórica mais ampla e mais profunda, decorrente de processos contados em séculos e vinculada a necessidades humanas efetivas. Com um orgulho estranho e chocante, muito da sociologia atual afirma que despreza as teorias gerais da sociedade e as concepções históricas amplas. À parte a irracionalidade radical desse desprezo, isso impede que se entenda de maneira profunda e cuidadosa o ser humano em geral e o Ocidente em particular. Ora, as investigações de Comte (1) evidenciaram que toda sociedade conjuga instituições que mantêm a unidade social ao longo do tempo e que permitem que ocorram mudanças ao longo do tempo (são a Estática e a Dinâmica sociais); (2) Comte descobriu que ao longo do tempo o Ocidente desenvolveu a filosofia, a política e a afetividade mas que, desde a Idade Média, desenvolvem-se processos intensos opondo a ordem ao progresso (incluindo aí a ciência, a tecnologia, o “capitalismo” etc.).

Esse entendimento conduziu o fundador da Sociologia a reconhecer de uma única vez vários aspectos importantes:

(1) a mera justaposição liberal entre revolucionários e reacionários não resolve nada e, considerando as possibilidades de choques, violências etc., com freqüência essa justaposição serve apenas para estimular as disputas;

(2) embora os termos empregados pelos próprios grupos revolucionários e reacionários para exprimir suas concepções políticas, morais e filosóficas sejam com freqüência equivocados, essas concepções apresentam aspectos importantes e verdadeiros;

(3) sem ignorar que as sociedades têm sempre aspectos de disputas políticas e sociais, o fato é que a oposição entre revolucionários e reacionários é mais profunda que as disputas políticas habituais e sua solução envolve a ultrapassagem simultânea das pressões contraditórias entre revolucionários e reacionários, por meio do reconhecimento dos aspectos legítimos de seus programas e da rejeição de seus extremismos e seus erros.

Em outras palavras, o “Ordem e Progresso”, então, surge como um programa múltiplo: ao mesmo tempo ele é a afirmação de aspectos sociológicos (as condições de ordem, as exigências do progresso), o reconhecimento da legitimidade de perspectivas divergentes (reacionários e revolucionários) e a afirmação de que a solução do problema exige a ultrapassagem conjunta das perspectivas opostas, reconhecendo-se o que elas têm de real, útil, relativista e orgânico.

Basta um pouco de atenção e honestidade para perceber-se que o quadro descrito por A. Comte no início do século XIX é, infelizmente, ainda o nosso no início do século XXI. Por certo que muitas coisas mudaram, alguns problemas surgiram e outros agravaram-se: mas a dinâmica social fundamental, baseada em problemas profundos, ainda é exatamente a mesma indicada pelo fundador da Sociologia. Mais do que isso: não apenas o diagnóstico proposto por ele é o mesmo como, ainda mais importante, a solução proposta é a mesma. Frente a tal programa, os pares direita-esquerda, situação-oposição e até revolucionários-reacionários tornam-se banais, mesmo simplistas e esquemáticos. É claro que no dia a dia esses pares são operacionais: mas elas são úteis exatamente porque são superficiais.

Para concluir, dois comentários da política atual.

As explicações correntes que direita e esquerda dão do “Ordem e Progresso” ignoram totalmente as reflexões acima e evidenciam os seus próprios preconceitos. A direita costuma desprezar o progresso, visto como ateísmo ou revolucionarismo: o marxismo é o grande símbolo desses traços, mas isso nada tem a ver com A. Comte. Já a esquerda entende a ordem como capitalismo, paz de cemitério, violência autoritária: novamente o marxismo é o grande promotor dessas concepções, que, novamente, nada têm a ver com Augusto Comte. A direita quer a ordem, sacrificando o progresso; a esquerda quer o progresso, sacrificando a ordem: em ambos os casos, suas concepções são estreitas e enviesadas, suas propostas são contraditórias, parciais e desastrosas.

Além disso, vários artistas brasileiros, bem intencionados mas ignorantes, têm difundido nos últimos anos o mito de que o “Ordem e Progresso” sacrifica o “Amor”, afirmado por Augusto Comte na expressão “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”. Esperamos ter deixado claro que isso é um erro; são fórmulas distintas, com objetivos diferentes. Mas o amor não está ausente do “Ordem e Progresso”: a superação das perspectivas parciais e contraditórias só é possível com e pelo amor: a palavra “E”, que liga a ordem ao progresso, subentende o amor.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

08 abril 2025

Artigos e livros disponíveis na internet

Mais alguns livros e artigos de positivistas disponíveis no portal Internet Archive:

- Raimundo Teixeira Mendes: "Programas de ensino" (1897): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-programas-de-ensino

- Rodolpho Paula Lopes: "Social Problems and Legislation in Brazil" (1941): https://archive.org/details/rodolpho-paula-lopes-problemas-e-legislacao-social-no-brasil-1941

- Rodolpho Paula Lopes: "The Inter-American Conference on Problems of War and Peace" (1946): https://archive.org/details/rodolpho-paula-lopes-conferencia-inter-americana-sobre-guerra-e-paz-1945

- Rodolpho Paula Lopes: "Le Prolétariat dans la société moderne" (1946): https://archive.org/details/rodolfo-paula-lopes-o-proletariado-na-sociedade-moderna







Livros disponíveis na internet

Graças à gentil colaboração do correligionário Gabriel de Henrique, pudemos carregar no Internet Archive cinco livros digitalizados, todos de autoria de positivistas. São estes:

- A. Pereira Simões: Romance de Augusto Comte (1897), v. 1: https://archive.org/details/romance-de-augusto-comte-1

- A. Pereira Simões: Romance de Augusto Comte (1897), v. 2: https://archive.org/details/romance-de-augusto-comte-2

- Augusto Olímpio Gomes de Castro: A Lógica (1909): https://archive.org/details/gomes-de-castro-logica

- Manuel de Almeida Cavalcanti: Apontamentos de Geometria (1913): https://archive.org/details/manuel-de-almeida-cavalcanti-apontamentos-de-geometria-preliminar

- Manuel de Almeida Cavalcanti: Apontamentos de Álgebra (1930): https://archive.org/details/manuel-de-almeida-cavalcanti-apontamentos-de-algebra


07 abril 2025

Augusto Comte: relativismo do futuro exposto com a linguagem absoluta do passado

No trecho abaixo Augusto Comte evidencia – e, no fundo, lamenta – que a (1) filosofia relativa, (2) que deve orientar as nossas concepções no presente e, ainda mais, no futuro, tenha que ser elaborada, exposta e explicada na linguagem da filosofia absoluta própria ao passado. Isso gera dificuldades e equívocos enormes e constantes, para prejuízo de todos.

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“Nós estamos ainda submetidos à dupla obrigação de expor a filosofia relativa em uma linguagem construída sob a síntese absoluta e de descrever o estado normal a partir da existência preliminar. Deve-se espantar-se pouco que uma tal situação suscite equívocos e pareça mesmo oferecer contradições, que não podem desaparecer suficientemente sem um estudo aprofundadíssimo do conjunto do Positivismo” (Augusto Comte, “Conclusion”, in: Synthèse subjective, 2e ed. Paris, Execution Testamentaire d’Auguste Comte, 1900, p. 741).

 


02 abril 2025

A espiritualidade positiva, parte 2

No dia 7 de Arquimedes de 171 (1.4.2025) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Apelo aos conservadores, em sua Primeira Parte ("Doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores").

No sermão abordamos novamente a espiritualidade positiva.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo e Igreja Positivista Virtual. O Youtube, entretanto, apresentou grave instabilidade a partir de 1h 20 de transmissão; por isso, a partir desse momento a prédica foi transmitida exclusivamente pelo Facebook

Para remediar esse problema, baixamos o vídeo do Facebook e carregamos no Youtube; ele está disponível aqui: https://youtu.be/fmlmbCTj-QE.

As anotações que serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo.

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A espiritualidade positiva 2

(7 de Arquimedes de 171/1.4.2025) 

1.       Abertura

2.       Exortações iniciais

2.1.    Sejamos altruístas!

2.2.    Façamos orações!

2.3.    Como somos uma igreja, ministramos os sacramentos: quem tiver interesse, entre em contato conosco!

2.4.    Precisamos de sua ajuda; há várias maneiras para isso:

2.4.1. Divulgação, arte, edição de vídeos e livros! Entre em contato conosco!

2.4.2. Façam o Pix da Positividade! (Chave pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.       Datas e celebrações:

3.1.    Dia 4 de Arquimedes (29.3): nascimento de David Carneiro (1904 – 121 anos)

3.2.    Dia 9 de Arquimedes (3.4): nascimento de Clotilde (1815 – 210 anos)

3.3.    Dia 11 de Arquimedes (5.4): transformação de Clotilde (1846 – 179 anos)

3.4.    Dia 14 de Arquimedes (8.4): evento conjunto Igreja Positivista Virtual e Igreja Positivista do Rio Grande do Sul – parte 1: Felipe Zorzi: “EUA vs. China”

3.4.1. Em virtude desse evento, não haverá prédica no dia 8.4

3.5.    No dia 21 de Arquimedes (15 de abril) passaremos a transmitir as prédicas pelo Instagram (Instagram.com/IgrejaPositivistaVirtual), no lugar do Facebook (Facebook.com/IgrejaPositivistaVirtual)

3.5.1. Manteremos a transmissão pelo Youtube, que é o nosso canal principal (Youtube.com/ThePositivism)

3.5.2. Além disso, é claro que manteremos as atividades em nosso canal do Facebook

4.       Leitura comentada do Apelo aos conservadores

4.1.    Antes de mais nada, devemos recordar algumas considerações sobre o Apelo:

4.1.1. O Apelo é um manifesto político e dirige-se não a quaisquer pessoas ou grupos, mas a um grupo específico: são os líderes políticos e industriais que tendem para a defesa da ordem (e que tendem para a defesa da ordem até mesmo devido à sua atuação como líderes políticos e industriais), mas que, ao mesmo tempo, reconhecem a necessidade do progresso (a começar pela república): são esses os “conservadores” a que Augusto Comte apela

4.1.1.1.             O Apelo, portanto, adota uma linguagem e um formato adequados ao público a que se dirige

4.1.1.2.             Empregamos a expressão “líderes industriais” no lugar de “líderes econômicos”, por ser mais específica e mais adequada ao Positivismo: a “sociedade industrial” não se refere às manufaturas, mas à atividade pacífica, construtiva, colaborativa, oposta à guerra

4.2.    Uma versão digitalizada da tradução brasileira desse livro, feita por Miguel Lemos e publicada em 1899, está disponível no Internet Archive: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores

4.3.    O capítulo em que estamos é a “Primeira parte”, cujo subtítulo é “Doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores”

4.4.    Passemos, então, à leitura comentada do Apelo aos conservadores!

5.       Sermão: a espiritualidade positiva, parte 2

5.1.    No dia 14 de Aristóteles (11.3) fizemos uma prédica sobre a espiritualidade positiva

5.1.1. O tema é amplo e vários aspectos podem ser apresentados a mais e/ou desenvolvidos: daí esta nova prédica sobre esse tema

5.1.2. Concentrar-nos-emos aqui à espiritualidade positiva, referindo-nos às espiritualidades teológica, metafísico-espiritualista ou metafísico-materialista apenas a título de comparação, quando necessário

5.2.    Repetiremos inicialmente algumas coisas ditas na prédica anterior que dedicamos ao tema da espiritualidade

5.2.1. O objetivo da espiritualidade positiva é a harmonia, que deve realizar-se, na medida das possibilidades e em todos os âmbitos da existência humana

5.2.1.1.             Quando falamos em “todos os âmbitos da existência humana”, consideramos o seguinte: uma perspectiva geral da realidade (a visão de conjunto), que implica por sua vez uma concepção e uma regulação geral e coordenada da existência humana, em vários aspectos: (1) afetivos, intelectuais e práticos; (2) objetivos e subjetivos; (3) coletivos e individuais; (4) estáticos e dinâmicos; (5) de passado, futuro e presente

5.2.1.2.             Não podemos deixar de mencionar em particular o relativismo, que é o que permite apreciarmos e valorizarmos, sem incoerência, as espiritualidades anteriores, entendendo-as em particular como formas necessárias, mas transitórias e já exaustas

5.2.1.3.             É importante destacar e enfatizar que, ao contrário das espiritualidades anteriores, a espiritualidade positiva orienta a vida individual, mas não a separa da existência coletiva; mais do que isso: sem negar um espaço legítimo e necessário para a privacidade e para a vida doméstica, não há uma separação radical entre o público e o privado, de tal maneira que o privado prepara-nos para a vida pública e a vida pública consolida e desenvolve o privado

5.2.1.4.             O cérebro certamente é individual, mas isso não estabelece o individualismo: o ser humano – e, portanto, o cérebro humano, ou seja, a alma humana – só se constitui, desenvolve e amadurece a partir das relações com o ambiente, em particular e acima de tudo o ambiente social, ao longo de toda a vida (incluindo aí, é claro, a vida subjetiva)

5.2.1.4.1.                   A respeito do cérebro, Augusto Comte elaborou a concepção de que ele é uma “placenta dupla”, que nos liga ao passado e prepara-nos para o futuro (Cartas para o dr. Audiffrent)

5.2.2. Essas múltiplas relações todas foram indicadas por Augusto Comte no início de algumas de suas obras:

5.2.2.1.             De maneira breve, no Catecismo positivista (final da “1ª Conferência”, p. 67): “[...] A religião positiva abraça ao mesmo tempo as nossas três grandes construções contínuas, a poesia, a filosofia e a política. A moral, porém, aí domina sempre, quer o surto de nossos sentimentos, quer o desenvolvimento de nossos conhecimentos, quer o curso de nossas ações, de modo a dirigir sem cessar nossa tríplice pesquisa do belo, do verdadeiro e do bom”

5.2.2.2.             De maneira breve, no Apelo aos conservadores (começo da “Primeira Parte”, p. 27): “[...] É tão impossível ficarmos relativos sem nos tornarmos simpáticos como [é impossível] ficarmos orgânicos sem nos tornarmos relativos, sobretudo a respeito do campo principal de nossas concepções [o ser humano], em que só o amor nos dispõe a construir e nos permite apreciar”

5.2.2.3.             De maneira mais longa, na Síntese subjetiva (início da “Introdução”, p. 1-2): “Subordinar o progresso à ordem, a análise à síntese e o egoísmo ao altruísmo; tais são os três enunciados, prático, teórico e moral, do problema humano, cuja solução deve constituir uma unidade completa e estável. Respectivamente próprios aos três elementos da nossa natureza, esses três modos distintos de formular uma mesma questão são não apenas conexos mas equivalentes, vista a dependência mútua entre a atividade, a inteligência e o sentimento. Malgrado sua coincidência necessária, o último enunciado ultrapassa os dois outros, como sendo o único relativo à fonte direta da comum solução. Afinal, a ordem supõe o amor e a síntese não pode resultar senão da simpatia: a unidade teórica e a unidade prática são então impossíveis sem a unidade moral; assim, a religião é tão superior à filosofia quanto à política. O problema humano pode finalmente se reduzir a constituir a harmonia afetiva, ao desenvolver o altruísmo e comprimir o egoísmo: desde então o aperfeiçoamento subordina-se à conservação e o espírito de detalhe, ao gênio de conjunto”

5.3.    A espiritualidade positiva busca a harmonia: ora, essa harmonia é obtida por meio da subordinação do egoísmo ao altruísmo

5.3.1. Mas, quando falamos da subordinação do egoísmo ao altruísmo, por vezes isso fica um pouco abstrato, etéreo: assim, convém esclarecer esse aspecto

5.3.2. Cada pessoa tem suas particularidades e sua vida; ao viver, suas necessidades, suas preocupações, seus projetos são bastante concretos (mesmo quando são questões mais intelectuais)

5.3.2.1.             Além disso, cada pessoa vive a própria vida e ninguém mais pode vivê-la; cada pessoa deve viver a própria vida: em última análise não tem opção de não a viver e, por isso, cada um tem a legitimidade de ser quem é

5.3.2.2.             Esse aspecto fundamental da vida de cada um foi enfatizado pelo filósofo espanhol Ortega y Gasset, ainda que ele tenha utilizado sempre um esquema metafísico para descrevê-lo (é a sua metafísica vitalista)

5.3.2.3.             Na “Carta filosófica sobre a proteção patrícia”, que é a carta de Augusto Comte a John Stuart Mill de 15 de dezembro de 1845 que lemos nas duas prédicas anteriores (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2025/03/sobre-protecao-dos-ricos-e-poderosos-ao.html e https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2025/03/protecao-patricia-ao-sacerdocio-parte-2.html), vemos com clareza Augusto Comte afirmando a legitimidade de suas necessidades, de suas pretensões, de suas cobranças institucionais

5.3.3. Ora, cada um dever viver a própria vida, cada um ter a legitimidade para ser quem é – isso corresponde precisamente à individualidade, ou melhor, nos termos positivistas, isso corresponde à personalidade, ou ao egoísmo

5.3.4. Assim, em si mesmo o egoísmo não é algo errado; não devemos pedir licença para vivermos e sermos quem somos

5.3.5. Mas, por outro lado – e é essa a questão central para a Religião da Humanidade – a legitimidade do egoísmo não equivale nem pode equivaler ao descontrole do egoísmo: ora, o egoísmo só pode ser controlado e disciplinado por meio da afirmação do altruísmo

5.3.6. A afirmação do altruísmo deve ocorrer sempre; mas convém insistir: tal afirmação não nega o egoísmo, isto é, não nega a legitimidade do egoísmo: na medida em que continuamos a viver e a existir, nossas necessidades individuais e familiares continuam existindo, assim como o nosso temperamento e nosso caráter continua vigendo

5.3.7. A afirmação do altruísmo consiste, assim, em (1) fazer valer os princípios altruístas e em (2) orientar o egoísmo de maneira altruísta

5.3.7.1.             A orientação altruísta do egoísmo refere-se por sua vez aos meios empregados e aos objetivos buscados

5.3.7.2.             Uma outra forma de entender a afirmação do altruísmo, em termos mais diretamente positivistas, é por meio da ternura (desenvolvimento do altruísmo) e da pureza (compressão do egoísmo)

5.3.8. Assim, ao longo da vida de cada um, temos em um primeiro momento a afirmação do egoísmo e, depois, a afirmação do altruísmo

5.3.8.1.             A afirmação do egoísmo e a afirmação do altruísmo, embora tenham ocorrido nessa seqüência em termos históricos, não precisa mais ser assim após a tríplice transição ocidental e o desenvolvimento das pesquisas neurocientíficas; isso significa que pelo menos desde o século XIX o desenvolvimento do egoísmo pode e deve ser feito em conjunto com o desenvolvimento do altruísmo

5.3.8.2.             Esse desenvolvimento simultâneo do egoísmo e do altruísmo é muito claro no caso das crianças: a infância é uma fase em que, por definição, a individualidade desenvolve-se: ora, as melhores pedagogias têm clareza de que essa individualidade deve ser desenvolvida ao mesmo tempo em que ela é orientada para o altruísmo, ou seja, para o respeito aos demais, para a empatia, para a tolerância, para a cooperação etc.

5.3.9. A relação entre o egoísmo e o altruísmo é chamado por Augusto Comte de “o grande problema humano”: esse é o problema fundamental com que o ser humano tem que lidar; todas as outras questões vinculam-se ou referem-se, de maneira ou de outra, a essa questão

5.3.9.1.             Estamos insistindo muito nessa questão porque no Ocidente temos a concepção – na verdade, o preconceito – de que o ser humano é somente egoísta e que o altruísmo é uma forma disfarçada de egoísmo; em outras palavras, no Ocidente consideramos que todos são sempre egoístas e que o altruísmo não existe de verdade

5.3.9.2.             Esse preconceito, de origem cristã, é mantido e repetido pela direita (cristã e/ou liberal) e pela esquerda (especialmente a marxista, mas também as esquerdas revolucionárias e as pós-modernas)

5.4.    Um aspecto da espiritualidade positiva com que todos nós – isto é, todos os seres humanos – temos que lidar com freqüência é o da “pedagogia do erro”, ou a “pedagogia do fracasso”

5.4.1. Ao longo da vida cometemos erros, enfrentamos dificuldades, padecemos da dor: tudo isso é desagradável e por vezes é ruim, mas, enfim, viver é ter que lidar com isso

5.4.2. Podemos dizer muita coisa sobre isso, mas queremos insistir em um aspecto em particular: bem ou mal, precisamos errar, precisamos até sofrer para podermos aprender a lidar com essas dificuldades e, daí, para amadurecer

5.4.3. Amadurecer em grande parte consiste em aprender a lidar com essas dificuldades e esses problemas

5.4.4. Mas não se trata só de aprender a lidar com esses problemas: trata-se também de aprender a valorizar o que é bom

5.4.4.1.             Aliás, aprender a lidar com os problemas implica também aprender a não negar o que é bom

5.4.5. Como a respeito de muitos outros aspectos, a vida de Augusto Comte é exemplar a esse respeito: Clotilde de Vaux era realmente u’a mulher excepcional; mas Augusto Comte só foi capaz de perceber em toda a extensão e a profundidade essas qualidades de Clotilde devido aos longos e profundos sofrimentos de que ele padeceu em seu casamento com Carolina Massin

5.4.6. Em outras palavras: não se trata de buscarmos o erro, ou o fracasso, ou a dor, mas de reconhecermos que eles fazem parte da vida, que podemos e devemos aprender com eles e que, nesse aprendizado, devemos aprender a reconhecer, valorizar e buscar o que é bom, verdadeiro e belo

5.4.6.1.             A sabedoria prática resumiu esse aspecto na seguinte fórmula: “mudar o que é possível mudar, resignar-se ante o que não se pode mudar e saber distinguir um do outro”

5.5.    Outro aspecto com que a espiritualidade positiva tem que lidar é a simpatia como princípio e o egoísmo como realidade

5.5.1. Esse é um problema real, concreto e cotidiano: com freqüência queremos ser altruístas, gentis, simpáticos, mas as pessoas com quem lidamos não têm reciprocidade

5.5.2. O problema que surge, na verdade, é se é correto, ou se faz sentido, manter o primado da simpatia e do altruísmo; uma outra forma de entender esse problema é o seguinte: as pessoas de modo geral são altruístas ou egoístas?

5.5.3. A resposta, ou melhor, a orientação da Religião da Humanidade é a seguinte:

5.5.3.1.             Os seres humanos são ao mesmo tempo egoístas e altruístas; o egoísmo é mais forte e em maior número, mas estimulado o altruísmo vence e dirige o egoísmo

5.5.3.2.             Devemos então adotar como parâmetro geral a simpatia e o altruísmo, estando atentos para o comportamento alheio, se é altruísta ou egoísta; em outras palavras, devemos supor que todos são altruístas até que provem em contrário

5.5.3.2.1.                   Augusto Comte adotava precisamente esse princípio, mais ou menos nesses termos, como vemos em sua correspondência

5.5.3.3.             No fundo, trata-se da distinção entre teoria e prática: a teoria são sempre princípios gerais abstratos, que são postos à prova, empiricamente, na prática

5.6.    Feitos os comentários acima, convém lembrarmos o quadro da alma humana de Augusto Comte

5.6.1. O quadro da alma humana, elaborado por Augusto Comte em 1850, permite completar as lacunas mútuas que a neurociência e a psicologia (em particular das inúmeras metafísicas da psicanálise) deixam há quase 200 anos: no caso da neurociência, há um excesso de empirismo e falta de teoria da natureza humana; no caso da psicologia (e da psicanálise em particular), há um excesso de teoria e uma falta brutal de empirismo

5.6.2. A partir das investigações de Bichat, Gall, Spurtzheim e Broussais, Augusto Comte determinou 18 funções elementares: dez motores afetivos, cinco funções intelectuais e três qualidades práticas

5.6.2.1.             Os motores afetivos são os sete órgãos pessoais – do interesse (instintos nutritivo, sexual, materno, militar e industrial) e da ambição (orgulho e vaidade) – e os três órgãos sociais (apego, veneração e bondade)

5.6.2.2.             As funções intelectuais são a concepção passiva (contemplação – concreta ou abstrata), a concepção ativa (meditação – indutiva ou dedutiva) e a expressão

5.6.2.3.             As qualidades práticas são a atividade (coragem e prudência) e a firmeza (perseverança)

5.7.    A espiritualidade positiva é ao mesmo tempo afetiva, intelectual e prática

5.7.1. A parte afetiva consiste tanto na motivação fundamental do ser humano quanto o objetivo geral das nossas atividades

5.7.1.1.             Nós somos impulsionados pelos sentimentos para satisfazer esses sentimentos

5.7.2. A parte intelectual corresponde em parte a um instrumento, em parte a uma necessidade específica

5.7.2.1.             Como instrumento, a inteligência serve para conhecermos e entendermos o mundo, para daí agirmos

5.7.2.2.             Como necessidade específica, conhecer e entender o mundo, saber o que existe e o que acontece ao nosso redor: isso é uma necessidade específica que deve ser satisfeita

5.7.3. A parte prática é tanto um instrumento quanto um regulador da espiritualidade positiva

5.7.3.1.             A atividade prática é um instrumento porque é ela que realiza e concretiza os sentimentos e as idéias

5.7.3.2.             A atividade prática é um regulador porque é ela que estabelece os parâmetros da utilidade

5.7.4. É necessário notar que por mais que tenha necessariamente aspectos passivos, a espiritualidade positiva no seu conjunto é ativa: é por meio da atividade que realizamos a harmonia

5.7.4.1.             Como é pela atividade que realizamos a harmonia, essa obtenção da harmonia ocorre de maneira dinâmica, não estática

5.7.4.2.             O caráter ativo da espiritualidade positiva deve ser contraposto a várias formas místicas de espiritualidade teológica e espiritualista, que assumem aspectos passivos, em particular nas suas formas monásticas (de monges e mosteiros), que exigem o afastamento do mundo e da sociedade e buscam a contemplação

5.7.4.2.1.                   Em outras palavras, o aspecto prático da espiritualidade positiva ao mesmo tempo (1) evita em particular o misticismo e (2) estimula a sociabilidade humana (e, daí, o altruísmo)

5.7.4.3.             O aspecto prático da espiritualidade positiva fica evidente na mesma fórmula que combina a espontaneidade com a sistematicidade: “agir por afeição e pensar para agir”

5.7.5. Por fim, vale notar que a atividade prática como instrumento e como regulador impede que o Positivismo seja um quietismo

5.7.5.1.             Há pessoas, mesmo algumas que se dizem positivistas, que criticam a separação entre teoria e prática e criticam também a exigência lógica, moral e sociológica de que a preparação cultural deve anteceder a atuação política do Positivismo: não há quietismo em nada disso, apenas o reconhecimento de que mudanças políticas rápidas são sempre superficiais e com freqüência violentas, além de exporem ao ridículo o nosso programa

5.7.5.2.             Quem nos acusa de quietismo defende, na verdade, um “agitacionismo” ultrapolitizado próprio aos partidos políticos e/ou ao revolucionarismo; isso é o exagero e a desregulação da atividade prática, assim como o academicismo é uma forma de exagero e desregulação da inteligência e o misticismo, dos sentimentos

5.8.    A partir da experiência histórica, seja espontânea, seja sistemática, das religiões anteriores, o Positivismo adota e positiva uma série de instituições, procedimentos, práticas:

5.8.1. Alguns aspectos litúrgicos da Religião da Humanidade realizam diretamente a espiritualidade positiva, além de sempre nos estimularem e prepararem para essa mesma espiritualidade

5.8.1.1.             A oração positiva, os anjos da guarda

5.8.1.2.             Os sacramentos positivos, em número de nove

5.8.2. A incorporação do fetichismo à positividade, em termos afetivos, intelectuais e práticos

5.8.3. As propostas de culto positivista feitas por Richard Congreve e Raimundo Teixeira Mendes

5.9.    Para concluir: o conjunto da Religião da Humanidade e da espiritualidade positiva indicam com clareza que, com o Positivismo, toda a existência humana passa a ter ou volta a ter significado

5.9.1. Como Teixeira Mendes dizia com freqüência, a partir de Augusto Comte, “nada é indiferente para os sentimentos”

5.9.2. A espiritualidade da Religião da Humanidade satisfaz o ser humano em sua inteireza, em todos os seus aspectos: na vida privada e na vida pública; em termos afetivos, intelectuais e práticos

5.9.3. Muitos criticam-nos:

5.9.3.1.             Os materialistas, os cientificistas e também vários metafísicos espiritualistas acusam-nos de estabelecermos uma “clericalização geral da existência”; mas esses são os mesmos que criticam que o “capitalismo” transforma o mundo em algo sem alma, sem espírito, em que a existência humana é reduzida a atos mecânicos e sem sentido nenhum (liberais, marxistas, neokantianos, fenomenológicos – e também os positivistas heterodoxos, ou melhor, os positivistas incompletos)

5.9.3.2.             Os teológicos criticam-nos porque, para eles, o Positivismo teria dado um sentido caricato ao mundo; em outras palavras, os teológicos consideram que somente as ficções teológicas podem conferir sentido ao mundo (católicos, protestantes)

5.9.3.3.             Como é habitual e como não poderia deixar de ser, teológicos e metafísicos com freqüência unem-se contra o Positivismo e misturam seus argumentos, mesmo que essa mistura seja incoerente (Weber, Jean Lacroix)

5.9.3.3.1.                   Nos dias atuais não entendemos direito a espiritualidade antiga, nem o seu caráter amplo; podemos entendê-la um pouco no livro O nome da rosa, de Umberto Eco

5.9.3.3.2.                   Os materialistas e os academicistas costumam fingir que a ciência é, por si só, uma espiritualidade adequada; mas como o físico e filósofo Paul Feyerabend indicou (A ciência em uma sociedade livre), a ciência é insuficiente e, a esse respeito, é bem inferior à teologia

5.9.3.3.3.                   Os academicistas das ciências humanas também fingem que as ciências humanas, por si sós, são suficientes; mas, embora superiores às ciências naturais, elas por si sós não constituem uma espiritualidade, pois consideram só a inteligência e não satisfazem, não estimulam nem regulam os sentimentos, a atividade prática e mesmo a inteligência

5.9.3.3.4.                   Os revolucionários e os politicistas também fingem que seu ativismo é satisfatório: marxistas, feministas, revolucionários racialistas, nacionalistas, militaristas etc. todos sacrificam os sentimentos (em particular o altruísmo) e a inteligência em favor do ativismo político e de variados egoísmos

5.9.4. Ora, a Religião da Humanidade é de fato uma espiritualidade – e uma espiritualidade completa: ela dá sentido ao mundo, dá valor à realidade, dá orientação a todos e a cada um de nós; ela estimula o pertencimento, regula o egoísmo e estimula o altruísmo

5.9.4.1.             A Religião da Humanidade dá os motivos e os meios para combater o “capitalismo” sem alma; ela reverte radicalmente o “desencantamento do mundo”; ela substitui com enorme folga as ficções divinas

5.9.4.2.             Com a Religião da Humanidade, todas as nossas ações, todos os aspectos da nossa vida ganham sentido, das menores às maiores; com isso, temos parâmetros efetivos para viver bem, para sermos felizes, para praticarmos o bem – e, inversamente, para determinar o mal e evitá-lo e/ou combatê-lo

6.       Exortações finais

6.1.    Devido ao adiantado da hora, não apresentamos as exortações finais

7.       Término da prédica

 

Referências bibliográficas

Agliberto Xavier (port.): “Introdução”. In: Jorge Audiffrent: Opúsculos sobre o catolicismo

Augusto Comte (franc.): Sistema de política positiva

Augusto Comte (port.): “Cartas sobre a doença

Augusto Comte (port.): Apelo aos conservadores

Augusto Comte (port.): Catecismo positivista

Jorge Audiffrent (franc.): Das doenças do cérebro e da inervação

Jorge Audiffrent (franc.): Do cérebro e da inervação

Jorge Audiffrent (port.): Opúsculos sobre o catolicismo

José Ortega y Gasset (port.): Em torno a Galileu

Paul Feyerabend (port.): A ciência em uma sociedade livre

Raimundo Teixeira Mendes (port.): O ano sem par

Raimundo Teixeira Mendes (port.): O culto católico

Ricardo Congreve (ingl.): Ensaios – discursos políticos, sociais, religiosos e históricos – 3 volumes

Umberto Eco (port.): O nome da rosa