A validade do “Ordem e Progresso”
A ninguém escapa o aspecto profundamente dividido da sociedade e da política atuais; essa divisão por vezes é afirmada na oposição “direita-esquerda”, mas ela também pode ser estabelecida como “reacionários vs. revolucionários”. Esses vários termos descrevem clivagens profundas, sem oferecerem soluções para o problema de fundo. Ora, é nesse quadro que se justifica e ganha renovada relevância a fórmula positivista “Ordem e Progresso”.
Quando Augusto Comte (1798-1857) – o fundador da Sociologia, da História das Ciências e do Positivismo – propôs a fórmula “Ordem e Progresso”, no início do século XIX, o quadro que ele tinha à sua frente era muito parecido com o que vivemos atualmente. Por um lado, ocorriam profundas e necessárias mudanças sociais, que eram tanto uma questão de fato (as mudanças ocorriam de qualquer maneira) quanto uma questão de valores (as mudanças eram desejadas): esses processos foram resumidos nos debates e nos choques da Revolução Francesa (1789-1798). Por outro lado, havia resistências às mudanças – e essas resistências aconteciam também como realidades sociopolíticas e como valores. Os defensores das mudanças eram revolucionários; os resistentes às mudanças eram reacionários.
Para o liberalismo político, a disputa entre revolucionários e reacionários era, e é, apenas a disputa entre “situação” e “oposição”, que devem alternar-se no poder do Estado e na direção geral da sociedade. A idéia da alternância entre situação e oposição tem um aspecto central e importantíssimo de civilizar a disputa, impedir a violência e estimular a tolerância; mas essa idéia serve apenas para isso: ela não explica a origem do problema nem propõe nenhuma solução efetiva de longo prazo.
Em face da dramática disputa política, social e moral entre revolucionários e reacionários, Comte percebeu que ela é devido a uma dinâmica histórica mais ampla e mais profunda, decorrente de processos contados em séculos e vinculada a necessidades humanas efetivas. Com um orgulho estranho e chocante, muito da sociologia atual afirma que despreza as teorias gerais da sociedade e as concepções históricas amplas. À parte a irracionalidade radical desse desprezo, isso impede que se entenda de maneira profunda e cuidadosa o ser humano em geral e o Ocidente em particular. Ora, as investigações de Comte (1) evidenciaram que toda sociedade conjuga instituições que mantêm a unidade social ao longo do tempo e que permitem que ocorram mudanças ao longo do tempo (são a Estática e a Dinâmica sociais); (2) Comte descobriu que ao longo do tempo o Ocidente desenvolveu a filosofia, a política e a afetividade mas que, desde a Idade Média, desenvolvem-se processos intensos opondo a ordem ao progresso (incluindo aí a ciência, a tecnologia, o “capitalismo” etc.).
Esse entendimento conduziu o fundador da Sociologia a reconhecer de uma única vez vários aspectos importantes:
(1) a mera justaposição liberal entre revolucionários e reacionários não resolve nada e, considerando as possibilidades de choques, violências etc., com freqüência essa justaposição serve apenas para estimular as disputas;
(2) embora os termos empregados pelos próprios grupos revolucionários e reacionários para exprimir suas concepções políticas, morais e filosóficas sejam com freqüência equivocados, essas concepções apresentam aspectos importantes e verdadeiros;
(3) sem ignorar que as sociedades têm sempre aspectos de disputas políticas e sociais, o fato é que a oposição entre revolucionários e reacionários é mais profunda que as disputas políticas habituais e sua solução envolve a ultrapassagem simultânea das pressões contraditórias entre revolucionários e reacionários, por meio do reconhecimento dos aspectos legítimos de seus programas e da rejeição de seus extremismos e seus erros.
Em outras palavras, o “Ordem e Progresso”, então, surge como um programa múltiplo: ao mesmo tempo ele é a afirmação de aspectos sociológicos (as condições de ordem, as exigências do progresso), o reconhecimento da legitimidade de perspectivas divergentes (reacionários e revolucionários) e a afirmação de que a solução do problema exige a ultrapassagem conjunta das perspectivas opostas, reconhecendo-se o que elas têm de real, útil, relativista e orgânico.
Basta um pouco de atenção e honestidade para perceber-se que o quadro descrito por A. Comte no início do século XIX é, infelizmente, ainda o nosso no início do século XXI. Por certo que muitas coisas mudaram, alguns problemas surgiram e outros agravaram-se: mas a dinâmica social fundamental, baseada em problemas profundos, ainda é exatamente a mesma indicada pelo fundador da Sociologia. Mais do que isso: não apenas o diagnóstico proposto por ele é o mesmo como, ainda mais importante, a solução proposta é a mesma. Frente a tal programa, os pares direita-esquerda, situação-oposição e até revolucionários-reacionários tornam-se banais, mesmo simplistas e esquemáticos. É claro que no dia a dia esses pares são operacionais: mas elas são úteis exatamente porque são superficiais.
Para concluir, dois comentários da política atual.
As explicações correntes que direita e esquerda dão do “Ordem e Progresso” ignoram totalmente as reflexões acima e evidenciam os seus próprios preconceitos. A direita costuma desprezar o progresso, visto como ateísmo ou revolucionarismo: o marxismo é o grande símbolo desses traços, mas isso nada tem a ver com A. Comte. Já a esquerda entende a ordem como capitalismo, paz de cemitério, violência autoritária: novamente o marxismo é o grande promotor dessas concepções, que, novamente, nada têm a ver com Augusto Comte. A direita quer a ordem, sacrificando o progresso; a esquerda quer o progresso, sacrificando a ordem: em ambos os casos, suas concepções são estreitas e enviesadas, suas propostas são contraditórias, parciais e desastrosas.
Além disso, vários artistas brasileiros, bem intencionados mas ignorantes, têm difundido nos últimos anos o mito de que o “Ordem e Progresso” sacrifica o “Amor”, afirmado por Augusto Comte na expressão “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”. Esperamos ter deixado claro que isso é um erro; são fórmulas distintas, com objetivos diferentes. Mas o amor não está ausente do “Ordem e Progresso”: a superação das perspectivas parciais e contraditórias só é possível com e pelo amor: a palavra “E”, que liga a ordem ao progresso, subentende o amor.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.
Nenhum comentário:
Postar um comentário