15 outubro 2024

O Positivismo é contra as rupturas?

No dia 9 de Descartes de 170 (15.10.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima terceira conferência (dedicada à evolução histórica da religião, em particular da tríplice transição ocidental).

Na seqüência apresentamos alguns comentários sobre o livro O multiculturalismo como religião política (São Paulo, É Realizações, 2019), de Mathieu Bock-Côté.

No sermão respondemos à seguinte questão: o Positivismo é contra rupturas?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=SfDRJVpg3OQ&t) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://www.facebook.com/IgrejaPositivistaVirtual/videos/1791910151636965).

Os tempos da prédica foram os seguintes:

00:00 - início

02:38 - exortações iniciais

09:18 - efemérides

18:28 - comentários sobre o livro Multiculturalismo como religião política

34:39 - leitura comentada do Catecismo positivista

1:02:20 - o Positivismo é contra as rupturas?

2:11:40 - exortações finais

2:15:28 - invocação final

As anotações que serviram de base para a exposição oral estão indicadas abaixo.

*   *   *


Prédica positiva

(9.Descartes.170/15.10.2024)

1.       Invocação inicial

2.       Exortações iniciais

2.1.1. Sejamos altruístas!

2.1.2. Façamos orações!

2.1.3. Façamos o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.       Efemérides

3.1.1. Dia 2 de Descartes (8.10.2024): Festa de Comte e Clotilde

3.1.1.1.             Em 8 de outubro de 1845, Augusto Comte escreveu uma bela carta a Clotilde, em que evidenciava a plena intimidade entre ambos e a aceitação, da parte de Clotilde, dos sentimentos de Augusto Comte para com ela

3.1.1.2.             A “Festa de Comte e Clotilde” baseia-se, então, na correspondência de Comte e Clotilde (como registro e meio da sua relação) e nas orações cotidianas de nosso mestre (como periodização e celebração desse relacionamento)

3.1.2. Dia 4 de Descartes (10.10.2024): nascimento de Paulo Carneiro (1901)

3.1.3. Dia 6 de Descartes (12.10.2024): descoberta da América (1496); festa de Colombo

3.1.4. Dia 12 de Descartes (18.10.2024): nascimento de Frederic Harrison (1831) e de Benjamin Constant (1836)

4.       Comentários sobre o livro Omulticulturalismo como religião política (São Paulo, É Realizações, 2019), de Mathieu Bock-Côté

4.1.    Esse é um desses livros que compramos em livrarias de corredor (de rodoviária, no caso) e que, em face do preço promocional, podem ser bons, podem ser ruins: no caso, o livro é muito bom (e por esse motivo comentamo-lo aqui)

4.2.    O autor é um sociólogo canadense nascido em 1980 e que integra, ou revive, uma tradição de sociologia conservadora própria à França, que já teve como representante pensadores como Raymond Aron

4.3.    O propósito do livro é, a partir de um certo conservadorismo, expor e criticar o multiculturalismo e efetivamente defender esse certo conservadorismo

4.3.1. O autor é ao mesmo tempo conservador e nacionalista (a favor da independência do Quebeque, que é a província francófona – e republicana – do Canadá)

4.3.2. É no mínimo curioso que o autor afirme-se conservador mas não fale em momento nenhum em divindade, na Idade Média etc. (embora, ao mesmo tempo, seja muito crítico da laicidade e não se refira em momento nenhum ao forte republicanismo quebequense)

4.3.3. A argumentação do autor, no final das contas, é puramente humana e não dá margem nenhuma para interpretações sobrenaturais (nem autoritárias nem discriminatórias): assim, ele realmente dá o que pensar

4.4.    O autor avalia o multiculturalismo e o identitarismo a partir da experiência européia, em particular francesa, mas também canadense – e a origem canadense é importante, pois o multiculturalismo é um princípio constitucional lá

4.4.1. A relação com a Europa é importante porque confere um quadro sociológico, histórico e filosófico mais amplo que o comum das críticas, restritas ao EUA

4.4.2. De maneira específica, o multiculturalismo europeu é criticado devido à rejeição européia contemporânea (isto é, após 1968) da exigência de integração social e cultural dos imigrantes e também devido à rejeição européia dos estados nacionais

4.4.3. Em termos gerais, essas experiências européias são distintas das dos EUA (que são as que mais diretamente influenciam o Brasil)

4.5.    O multiculturalismo é entendida pelo autor como a concepção sociológica de fundo que embasa o identitarismo

4.6.    Os argumentos apresentados pelo autor de modo geral confirmam o que vimos dizendo a respeito do identitarismo:

4.6.1. Rejeição do universalismo; promoção do particular (e do marginal)

4.6.2. Criação mítica da “maioria”

4.6.3. Concepção de que a “maioria” é sempre persecutória, egoísta e discriminatória

4.6.4. Criação e promoção de uma cultura expiatória, da culpa, do ressentimento, da fragilidade intencional e institucionalizada

4.6.5. Concepção de que a história, se for cumulativa, é apenas o acúmulo de opressões, explorações e humilhações da “maioria” contra as minorias

4.6.6. Concepção de que a história deve ser ensinada para estimular a culpa de uns e o ressentimento de outros e que, no final das contas, a história como processo passado da “maioria” deve ser terminantemente rejeitada

4.6.7. Concepção de que a única história que presta e que deve ser valorizada é a das minorias

4.6.8. Afirmação da política como sendo um âmbito dedicado apenas à publicidade do que até então era particular e subjetivo (e apenas da subjetividade das “minorias”)

4.6.9. Redução da política ao reconhecimento, à culpa e às desculpas

4.6.10.   Rejeição da noção de bem comum e, portanto, da república

4.6.11.   Rejeição da noção de que a política e o Estado devem tratar das condições objetivas da vida coletiva

4.6.12.   Rejeição da separação entre os dois poderes: o Estado deve ser ativo e deve ser um instrumento na promoção da mentalidade particularista, exclusivista, persecutória e expiatória própria ao multiculturalismo/identitarismo

4.6.13.   Desprezo da noção do Estado nacional como representante dos interesses nacionais legítimos

4.6.14.   Desprezo da noção de permanência social legítima para a “maioria”

4.6.15.   Defesa do transnacionalismo: nesse ponto, o autor afasta-se claramente do que o Positivismo considera aceitável – afinal, nós apoiamos o transnacionalismo (embora não sejamos a favor da extinção do Estado nem das pátrias)

5.       Leitura comentada do Catecismo positivista

5.1.    As análises histórico-sociológicas presentes nas duas últimas conferências do Catecismo (a 12ª e a 13ª) explicam e justificam o movimento moderno e, daí, a possibilidade e a necessidade do Positivismo

5.2.    Leitura da 13ª conferência: tríplice transição ocidental

6.       Sermão: o Positivismo e as rupturas

6.1.    O sermão desta semana é mais uma reflexão geral e menos uma pequena palestra: são apenas algumas indicações intelectuais, morais e políticas a partir do Positivismo

6.2.    A questão desta semana surgiu de maneira simples e curiosa: há algumas semanas, enquanto eu almoçava no restaurante universitário central da UFPR, ouvi uma caloura de Ciências Sociais justificar seus vícios de linguagem (“saca”, “tipo assim” etc.) apelando para sua origem social: segundo ela, como seus vícios representam sua origem e como ela deseja manter-se vinculada a essa origem, os seus erros e seus problemas lingüísticos seriam aceitáveis e poderiam (e deveriam) ser mantidos

6.2.1. Essa menina, que apresentou esses argumentos com grande simplicidade, ingenuidade, franqueza e simpatia, é ao mesmo tempo de classe média, de esquerda e cursa Ciências Sociais (que é um curso que atrai um público “crítico”) – e, convém reforçar, está em uma instituição universitária de nível superior

6.2.2. Eu argumentei com essa menina (bem como com dois colegas calouros que almoçavam com ela) (1) que a correção da linguagem é uma questão de clareza conceitual; (2) que os vícios de linguagem são muletas mentais usados por adolescentes para contornarem suas inseguranças pessoais e intelectuais; (3) que as regras lingüísticas existem para serem seguidas e que isso não é por acaso

6.2.2.1.             Faltou eu argumentar (4) que o respeito à língua é também uma questão de respeito para com a nossa história – mas, naquele momento, tive a impressão de que particularmente esse argumento não seria muito levado a sério

6.2.2.2.             Também seria necessário argumentar (5) que esse tipo de raciocínio é uma forma simples, eficaz e aparentemente “popular” e “progressiva” de negar ao comum do povo o conhecimento filosófico, moral, intelectual e artístico que muitas vezes as elites reservam para si; em outras palavras, que o raciocínio apresentado pela menina é uma forma simples e eficientíssima de garantir a alienação do povo

6.2.2.3.             Apesar desses argumentos, nem a menina em questão nem seus colegas levaram a sério meus argumentos (embora eu tenha-me identificado com clareza como sociólogo com longa carreira profissional), aparentemente os considerando “conservadores” (e, daí, “alienantes” e/ou “opressivos”)

6.2.3. Adiantando um pouco o argumento: o raciocínio exposto pela menina é ao mesmo tempo uma desculpa cômoda (e não podemos deixar de notar: também uma desculpa molenga) para manter erros e vícios de linguagem, mas, para o que nos interessa aqui, é também uma incoerência política e uma incoerência pessoal-profissional-intelectual

6.2.3.1.             É uma incoerência política na medida em que a esquerda é a favor das rupturas histórico-sociais, embora haja uma certa dose de hipocrisia nisso

6.2.3.2.             É uma incoerência pessoal-profissional-intelectual na medida em que essa menina está em uma universidade e no curso de Ciências Sociais, ou seja, em um ambiente que, por definição e de maneira intencional, estabelece uma ruptura com o contexto de origem

6.3.    De qualquer maneira, refletindo sobre as ingênuas e simpáticas incoerências dessa menina, percebi que esse tema (as rupturas) é um bom tema para as prédicas – daí este sermão

6.3.1. Devemos notar também que, considerando o descrito acima, vimo-nos na curiosa e inusitada situação em que tivemos nós, positivistas, que convencer uma esquerdista (universitária e do curso de graduação em Ciências Sociais) que ela deveria proceder a um rompimento

6.3.2. Além disso, de maneira um pouco mais ampla, o tema das rupturas no âmbito do Positivismo surge porque, considerando a importância evidenciada e reiterada claramente por Augusto Comte para a continuidade, é muito, muito comum haver leituras e interpretações apressadas e superficiais que consideram que o Positivismo é sistematicamente contra as rupturas

6.3.2.1.             Essa interpretação – apressada, superficial e convenientemente esquemática – é estimulada em particular pelo marxismo, que dedica um culto especial ao mito da revolução e vê todas as perspectivas que não são marxistas como adversárias e inimigas

6.4.    Tratemos, então, das rupturas à luz do Positivismo

6.4.1. Para tratar das rupturas, temos que considerar o conceito inverso, a continuidade

6.5.    Como sabemos, para o Positivismo a continuidade histórica é uma preocupação central

6.5.1. O Positivismo considera que o ser humano caracteriza-se acima de tudo pela continuidade histórica, ou seja, pelo acúmulo das produções humanas ao longo do tempo

6.5.1.1.             Esse acúmulo não é estático, ou seja, ao mesmo tempo em que as produções (morais, intelectuais, artísticas, práticas) acumulam-se, elas necessariamente se modificam e reorientam a produção e o acúmulo

6.5.1.2.             Falar em “acúmulo ao longo do tempo” é uma outra forma de afirmar a historicidade do ser humano

6.5.2. Muitas noções positivistas dependem da noção de continuidade:

6.5.2.1.             A noção de progresso evidentemente se baseia na noção de continuidade

6.5.2.2.             A noção de ordem baseia-se na noção de continuidade, em particular devido às suas relações com o progresso

6.5.2.3.             A harmonia humana – seja coletiva, seja individual – baseia-se na noção de continuidade, seja porque a harmonia tem que se manter ao longo do tempo, seja porque sua constituição definitiva exige o desenvolvimento histórico do ser humano (isto é, ela depende do progresso)

6.5.3. Podemos considerar que a fórmula positivista que resume a continuidade é a fórmula religiosa fundamental: “os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos”

6.5.4. De modo geral, o ser humano reconhece a importância e a necessidade da continuidade: é assim com o fetichismo, é assim com as teocracias, é assim com o politeísmo militar, é assim até mesmo (embora de maneira muito confusa) com o monoteísmo

6.5.5. Entretanto, a necessidade de afirmação e reafirmação explícitas da continuidade baseia-se no fato de que o Ocidente em particular rejeita essa noção:

6.5.5.1.             O politeísmo militar, ao constituir-se, rejeitou em parte o politeísmo sacerdotal (ou seja, as teocracias), apesar de ter sido uma rejeição involuntária e, portanto, não intencional e de ter clara e conscientemente mantido a continuidade social em relação às teocracias

6.5.5.2.             O monoteísmo católico rejeitou conscientemente e de maneira agressiva o politeísmo militar

6.5.5.2.1.                   Augusto Comte indica que mesmo o islamismo também rejeitou o politeísmo militar

6.5.5.3.             A modernidade rejeitou a Idade Média

6.5.5.4.             Além disso, a modernidade, de maneira mais ampla, consagra as rupturas históricas: é a sistematização do espírito crítico, iniciado pelo protestantismo, consagrado pelas metafísicas (marxista, identitária)

6.5.5.4.1.                   Essa tendência destruidora é reforçada pelo capitalismo e pelo desenvolvimento tecnológico, que estimulam cada vez mais as rupturas

6.5.5.4.1.1.  A esse respeito, basta considerar-se (1) o elogio da “destruição criativa” de José Schumpeter, (2) o culto neoliberal à ausência de estabilidade no trabalho e ao nomadismo profissional e o (3) culto tecnoanarquista das “tecnologias disruptivas”

6.5.6. Como indicamos antes, à parte o Ocidente (e, por extensão, a partir de Roma, à parte também o Islã), as demais civilizações valorizam a continuidade: basta pensarmos no Egito antigo e também na China e no Japão

6.5.7. De uma perspectiva individual, as continuidades são sempre importantes: as relações de família, as amizades, as relações profissionais, as pátrias etc.

6.5.7.1.             A quebra dessas continuidades sempre gera mal-estar, distúrbios, confusões, conflitos

6.5.8. Mas, inversamente, vale notar que muito da história e das nossas vidas baseia-se em rupturas ou exige-as: casamentos, mudanças de nível de ensino, destinação profissional; mudanças de regimes políticos

6.5.8.1.             Muitas dessas mudanças são suaves, ou melhor, são entendidas pelo comum das pessoas como mudanças normais e naturais ao longo da vida

6.5.8.1.1.                   Tais mudanças, nesse sentido, correspondem a uma aplicação específica da noção positiva de progresso, que é o “desenvolvimento da ordem”

6.5.9. Há outras tantas mudanças que são menos suaves mas que, de qualquer maneira, são entendidas como eventualmente adequadas: por exemplo, algumas mudanças de regimes políticos

6.6.    Ao mesmo tempo em que reiteradamente afirmava que a continuidade humana é um traço fundamental do ser humano (é a característica definidora do ser humano) e que ela deve ser recuperada no Ocidente, Augusto Comte não deixava de reconhecer que há muitas mudanças que exigem rupturas

6.6.1. Os positivistas também afirma(ra)m com clareza a necessidade de muitas rupturas

6.6.2. Os melhores exemplos disso são os seguintes:

6.6.2.1.             Da parte de Augusto Comte: além de muitíssimos outros, a Revolução Francesa; os esforços para a instauração da república na França (já no século XIX); a negação da herança medieval na época moderna antes da constituição do Positivismo

6.6.2.2.             Da parte dos positivistas: no caso brasileiro, a independência nacional, a abolição da escravidão e a proclamação da república

6.6.2.3.             Um caso especial e importante: com certa freqüência, as conversões religiosas implicam rupturas (maiores ou menores, mais intensas ou mais suaves)

6.6.3. Em cada um desses casos, a valorização da ruptura não se deu arbitrariamente e tendo por objetivo a destruição em si; em sua apreciação e em sua valorização, esses casos seguem os seguintes critérios:

6.6.3.1.             Os casos em questão resultam do conjunto da história do Ocidente em geral e de cada país em particular

6.6.3.2.             Esses casos afirmam a natureza e a dignidade humanas, além de permitirem o desenvolvimento normal do ser humano

6.6.3.3.             Esses casos conjugam mudanças com permanências

6.6.3.4.             Esses casos realizam o preceito “só se destrói o que se substitui”, ou seja, substituem instituições ruins por instituições melhores

6.6.4. Assim, em outras palavras, essas rupturas ocorrem considerando uma continuidade mais ampla

6.6.4.1.             Essa “continuidade mais ampla” é concomitante ou sucessiva à ruptura

6.6.4.2.             Continuidades concomitantes: com isso queremos referir-nos a processos que ocorrem ao mesmo tempo em que se dão as rupturas

6.6.4.2.1.                   Por exemplo, na Proclamação da República, enquanto houve mudança (ou melhor, substituição) de regime, o povo brasileiro (as pessoas, as instituições, a história, os usos e costumes) manteve-se

6.6.4.2.2.                   Comentário do nosso amigo Hernani Gomes da Costa, durante a prédica, ilustrando o ponto em questão:

“A geometria analítica oferece uma imagem que esclarece bem a possibilidade de conciliar a continuidade com a ruptura. As chamadas funções descontínuas mostram como uma linha pode ser rompida sem estar separada da função.

Basta considerar que a um intervalo aberto à esquerda num segmento de curva siga-se um outro intervalo de curva que seja fechado à direita (ou vice versa) conquanto que ambos os extremos possuam sempre um mesmo valor na abscissa”

A ilustração abaixo auxilia a entender o raciocínio acima:

 

Fonte: Telma João Santos, “Entre o pensamento matemático e a arte da performance: questões, analogias e paradigmas” (tese de doutorado em Artes, Universidade de Lisboa, 2016), p. 61.

 

6.6.4.3.             Continuidades sucessivas: com isso queremos referir-nos às continuidades que são afirmadas após um período de ruptura e de rejeição da continuidade

6.6.4.3.1.                   Por exemplo, a reafirmação do valor da Idade Média pelo Positivismo, após a sua necessária rejeição pela ciência na modernidade

6.7.    Em termos da política atual, isto é, de “direita” e “esquerda”, o que podemos considerar a respeito de continuidades e rupturas:

6.7.1. Antes de mais nada, vale lembrar que, inicialmente, a direita e os conservadores são teológicos, ao passo que a esquerda e os revolucionários são metafísicos

6.7.2. A chamada “direita” reconhece a continuidade:

6.7.2.1.             Todavia, essa continuidade é estática ou é retrógrada: é uma continuidade que rejeita o progresso, ou seja, a evolução e as mudanças

6.7.2.2.             Além disso, essa continuidade é afirmada apenas de maneira muito parcial, pois, geralmente, a direita é cristã (ou católica) e a continuidade que eles afirmam refere-se apenas e exclusivamente em relação ao cristianismo (como doutrina e como um conjunto de igrejas), sem ao menos valorizar o conjunto da Idade Média e em desprezo total do fetichismo, das teocracias antigas e do politeísmo militar

6.7.2.3.             Por outro lado, a direita liberal-capitalisto-tecnocrática também é a favor sistematicamente das rupturas

6.7.3. No que se refere à “esquerda”, há um aspecto confuso e hipócrita, ou confusamente hipócrita, nos seus raciocínios:

6.7.3.1.             Tradicionalmente, as rupturas sistemáticas são valorizadas por definição (a partir da “criticidade”, contra o “capitalismo” etc.): basta considerar-se os mitos da revolução, da luta de classes etc. próprios ao marxismo

6.7.3.2.             Mas, a partir de e com base no multiculturalismo/identitarismo, as rupturas são rejeitadas quando se referem a comunidades “tradicionais”, o que inclui povos indígenas, quilombos, o Islã, as comunidades tribais centro-africanas etc.

6.7.3.3.             As duas perspectivas acima são afirmadas ao mesmo tempo, apesar da diversidade de origens e de objetivos

6.7.3.3.1.                   O resultado então é que a esquerda é a favor das rupturas no Ocidente e a favor das continuidades no que não é o Ocidente

6.8.    Trazendo essas reflexões para o caso específico da caloura no restaurante universitário:

6.8.1. Se o seu impulso básico foi o da continuidade, é necessário reafirmarmos com clareza: usar a continuidade para a manutenção dos vícios de linguagem é uma desculpa; ela quer uma justificativa fácil e aparentemente aceitável para manter erros sistemáticos (os quais evidentemente ela mesma reconhece como sendo erros – daí a necessidade de justificá-los)

6.8.1.1.             A justificativa dada pela menina é parcialmente aceitável, na medida em que ela é jovem (presumivelmente tem apenas 18 anos) e foi formulada com certa ingenuidade e com simpatia – mas essa desculpa é aceitável apenas durante um certo tempo

6.8.2. Deixando de lado o fato de que a menina é de classe média (e, portanto, na situação brasileira, não se compreende muito esse apego à “origem”), o aspecto central é que ela está em uma universidade e em um curso de Ciências Sociais, ou seja, em uma instituição e em um curso cujos objetivos são mudar radicalmente a situação mental e social das pessoas

6.8.3. Deve-se notar que essa menina é de esquerda: ora, a retórica da esquerda pela “criticidade” conduz necessariamente a rupturas sistemáticas

6.8.4. Em resumo: a menina usa a correta noção de continuidade para negar um necessário progresso, de tal sorte que ela adota da pior maneira possível um comportamento conservador

6.9.    Em suma, para concluir:

6.9.1. O impulso básico para manter os hábitos de origem faz sentido: é o impulso para a continuidade

6.9.1.1.             A continuidade é o que caracteriza o ser humano, é um traço da natureza humana e, assim, é um elemento central na (busca da) harmonia e, daí, da religião

6.9.1.2.             A fórmula que resume a continuidade é a fórmula religiosa fundamental: “os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos”

6.9.2. Devemos sempre valorizar profundamente a continuidade, mas sem temer mudanças (nem mudanças por vezes bruscas)

6.9.2.1.             Tais mudanças, bruscas ou não, devem corresponder às necessidades individuais e coletivas

6.9.2.2.             O princípio regulador das mudanças bruscas é o “só se destrói o que se substitui”

7.       Exortações finais

8.       Invocação final

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