No dia 3 de Bichat de 169 (5.12.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista (agora em sua nona conferência, dedicada ao conjunto do regime).
No sermão abordamos a famosa oposição, de origem teológica, entre "fé" e "razão".
A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/A7KaN) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/U4ucH). O sermão começou em 45 min 31 s.
As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão estão reproduzidas abaixo.
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N. B.: nas anotações originais e, daí, na exposição oral fizemos duas pequenas confusões. Augusto Comte retoma a oposição entre fé e razão, mas sua abordagem muda a razão pelo amor; além disso, no que se refere ao Catecismo positivista, essa oposição encontra-se na terceira conferência, dedicada ao conjunto do culto, e não na segunda conferência (dedicada à teoria da Humanidade), como sugerimos ao vivo. Esses dois lamentáveis equívocos ocorreram porque os sermões são, quase sempre, elaborados sem consulta direta às obras de Augusto Comte para as citações: como é comum a memória trair-nos, tivemos esses problemas no presente caso. Apesar desses dois equívocos, a argumentação apresentada não sofreu grande alteração, sendo necessário fazer apenas algumas modificações tópicas. Por fim, incluímos também os interessantes comentários que nosso amigo Hernani Gomes da Costa teceu logo após a prédica, em caráter privado, via Facebook.
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Sobre razão e fé
- Um dos temas mais abordados quando falamos de “religião” é a famosa oposição entre “razão” e “fé”
o Essa dicotomia opõe a inteligência, o raciocínio, à crença em alguma coisa
§ No âmbito da “razão” também entra o conhecimento empírico (embora a razão, por si só, seja apenas o raciocínio, isto é, a atividade cerebral)
o Essa dicotomia foi elaborada já nos primórdios do catolicismo (Santo Agostinho empregou-a), mas foi retomada e assumiu maior importância após a Idade Média, na decadência do catolicismo, e representa o caráter cada vez mais inaceitável dos dogmas teológicos
o No âmbito da teologia, especialmente do monoteísmo, na medida em que, fatalmente, instala-se o conflito entre fé e razão, apenas duas soluções são possíveis:
§ (1) ou a razão é sacrificada pela fé, instaurando-se às claras o irracionalismo
§ (2) ou postula-se que fé e razão têm “domínios separados” e que seria possível pensar de maneira positiva e “crer” de maneira teológica
· Esta segunda possibilidade instaura também um irracionalismo, mas disfarçado de solução filosoficamente aceitável
· De qualquer maneira, a “solução” dos dois domínios rompe claramente com qualquer possibilidade unidade cerebral e, portanto, de harmonia humana
- De uma perspectiva positiva, considerando os termos propostos pela teologia, a dicotomia entre razão e fé não faz sentido e não é aceitável:
o A “fé”, ou seja, o ato da crença não pode ser desvinculado do conteúdo da crença, ou seja, da “razão”
o Dessa forma, a fé tem que ser compatível com a razão: isso só é possível se a razão prover o conteúdo da fé
- Augusto Comte retoma parcialmente essa dicotomia (por exemplo, na terceira conferência do Catecismo positivista, dedicada ao conjunto do culto):
o Ao retomar essa dicotomia, Augusto Comte muda os termos, de razão e fé para amor e fé
o A. Comte considera que a fé consiste na inteligência (o que, portanto, incorpora a razão na dicotomia anterior); por sua vez, o amor desdobra-se em amor propriamente dito e nas ações práticas
§ A conseqüência da incorporação da razão à fé é evidenciar aquilo que, em qualquer outra situação, torna-se claro com pouco esforço para qualquer pessoa de boa vontade que considere a questão: que a fé consiste em crenças e que, como tais, elas consistem em idéias (e, portanto, na razão)
§ Uma outra conseqüência da incorporação da razão à fé é que a fé distingue-se da razão propriamente dita por um elemento de confiança nas concepções (e, portanto, na razão) alheia
o Assim, temos os três elementos da religião: sentimentos (amor propriamente dito), inteligência (razão/fé) e ações práticas (segundo elemento do amor)
o Augusto Comte observa que nos estados normais a razão deve subordinar-se à fé e que as necessidades sociais com freqüência permitem tal subordinação (por exemplo, durante a Idade Média)
o A plena subordinação da razão à fé só é possível com a positividade, em que ambas são relativas e que, portanto: (1) a fé (ou melhor, o amor) inspira e orienta a razão; (2) em que a razão é conselheira (nem mestra nem escrava) da fé; (3) em que a fé (ou melhor, o amor e as atividades práticas) é a reguladora da razão, ao estabelecer a fonte e os objetivos da razão
- A incompatibilidade entre fé e razão indica que há um problema, seja com a “fé”, seja com a “razão”, seja com ambas:
o A fé, no caso, consiste na fé teológica, isto é, na crença na divindade; a razão, por outro lado, consiste tanto no racionalismo quanto no conhecimento empírico e, portanto, pode ser tomada grosso modo e para os presentes propósitos como equivalente ao conhecimento científico
o À medida que o método objetivo desenvolve-se, a fé torna-se cada vez mais acuada pela razão, pois os conhecimentos positivos paulatinamente expulsam da realidade humana as concepções absolutas, em particular as teológicas
o Quando a positividade avança até a ciência da Moral, a antiga fé fica totalmente expurgada do teologismo, mas, ainda assim, não se garante a positividade dos conhecimentos humanos
o Assim, após a conclusão do método objetivo, em que a razão expurga a fé de seus elementos teológicos, é necessário que a fé seja plenamente renovada, o que ocorre com a renovação preliminar do método subjetivo
§ Importa lembrar: o método subjetivo consiste na aplicação da perspectiva de conjunto, do relativismo e do subjetivismo às várias concepções humanas
o Com a renovação do método subjetivo, a fé revê e renova o conjunto dos conhecimentos humanos, ajustando então a razão à fé
- A dificuldade e, portanto, a importância da renovação da fé na forma do método subjetivo pode ser exemplificada pela existência dos chamados “positivistas heterodoxos”
o Os chamados “positivistas heterodoxos” são os positivistas incompletos, ou cientificistas, que apresentam um caráter mais anticlerical que positivo
o Os “positivistas heterodoxos” aceitam que a fé seja acuada pela razão, mas rejeitam a efetiva renovação da fé pelo espírito positivo e, a partir daí, a renovação da razão pela fé positiva
o É interessante notar que os “positivistas heterodoxos” raciocinam por meio da adição de “blocos”, como no brinquedo Lego: esse procedimento é adequado ao racionalismo cientificista, mas é inadequado à renovação da fé e à aplicação da fé positivida-subjetivada à razão
o Inversamente, a efetiva aceitação da unidade da carreira de Augusto Comte – que, nominalmente, é o ponto que separa os positivistas completos dos incompletos – implica a efetiva aceitação da Religião da Humanidade e do método subjetivo (subentendendo-se aí a aplicação do último ao conjunto dos conhecimentos humanos)
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Comentários do meu amigo Hernani Gomes da Costa, feitos privadamente via Facebook, logo após a prédica, na noite do dia 3.Bichat.169 (5.12.2023). (Versão editada para divulgação pública.)
Muito boa noite,
Gustavo! Como sempre, é um imenso prazer ver a realização de mais um passo dado
nessa sua longa e perseverante jornada da leitura comentada do Catecismo Positivista. Não sei se você
se deu conta, mas foi possível em seu sermão realizar uma interessante e nova “costura”
ao tratar da questão entre a razão e a fé.
Digo isso pelo seguinte: há um uso corrente da palavra fé que é
diferente do uso que o Positivismo faz dessa expressão. E em seu sermão você
conseguiu com muita habilidade “surfar” entre esse conceito usual e o nosso,
ora se expressando nos termos de um desses usos, ora no outro.
Em geral, como você
bem notou, a oposição que o teologismo estabelece entre a razão e a fé
refere-se à antítese radical fixada entre o que se supõe serem os frágeis
recursos da razão humana quando confrontada com a necessidade de uma fé absoluta em um ser que já é definido a
princípio como estando além de toda capacidade de compreensão.
Postas as coisas
nesses termos pelo teologismo, a fé deve poder justificar-se plenamente por si
mesma e por si mesma existir, não só dispensando a razão, como vendo na
necessidade de recorrer a ela em seu socorro como o produto de uma fraqueza que
denuncia tibieza e excesso de prudência – e, portanto, “pouca fé”.
O exemplo
clássico que se invoca em apoio a essa perspectiva é o episódio em que Jesus
diz a Tomé que ele acreditou na sua ressurreição apenas por Tomé ter tocado Jesus
ressurrecto, sendo que mais bem
aventurados seriam aqueles que puderem crer sem a necessidade de tais
evidências.
A fé teológica é
pois necessariamente passional, tanto no sentido afetivo de “paixão” quanto no
sentido intelectual e mesmo prático de “passividade”.
Porém, o sentido
constante da idéia de fé em Augusto Comte não se refere diretamente ao sentimento.
Um teólogo pode supor
sua fé assim. Mas um positivista não. O dogma teológico, conquanto pretenda
oferecer um sentido às coisas e dessa forma prover-nos de bases intelectivas
para compreender o mundo e a nossa situação nele, só o faz ao preço de
complicar ainda mais as coisas, interpondo entre o homem e o mundo toda sorte
de mitos e mistérios que se chocam com a razão.
Um positivista,
porém, não vê o que em que consistiria efetivamente a afirmada divisão entre fé
e razão.
Tanto isso é
assim que no Catecismo positivista o
que temos não é uma divisão da religião fundamentada no binômio fé e razão, mas no binômio amor e fé.
Vê-se por aí que
no Positivismo a questão da compatibilidade entre a fé e a razão é uma questão
que se desenvolve toda ela no âmbito
da própria fé.
É no interior da própria fé que se chega a
julgar se ela é mais ou menos compatível com a razão e nunca mediante uma oposição a
priori, segundo a qual uma e outra já seriam dadas como necessariamente
incompatíveis e correspondendo a domínios distintos.
Assim, (1) podemos
ter uma fé inteiramente sustentada pela razão quando suas evidências são
claras; (2) podemos ter uma fé mais ou menos sustentada pela razão, caso em que
essas evidências sejam então, por qualquer motivo, obscuras e duvidosas; (3)
podemos ter, por fim, uma fé diretamente antitética
à razão, ou seja, a célebre fé no que é
impossível, a fé de Tertuliano, do credo
quia absurdum est.
Mas o que cabe
notar aí é que, independentemente do resultado a que se chegue a respeito de
saber qual tipo de fé tem-se diante de si, o exame inteiro da questão da racionalidade
maior, menor ou nula da fé, é algo que só se pode dar no campo da fé, no âmbito
da fé, no interior da fé.
Assim, o modo pelo qual o Positivismo chega a
superar o que se entende usualmente por conflito entre razão e fé não se
desenvolve por intermédio de uma conciliação
propriamente dita entre dois campos tomados por distintos, mas por meio de uma
crítica ao próprio critério que foi estabelecido para justificar uma divisão que
na verdade é bastante equívoca.
Nunca se trata
realmente, no fundo, de conciliar razão e fé, mas de reconhecer que uma fé pode ser mais (ou menos) racional que outra
fé.
Você foi
particularmente hábil em servir-se tanto da definição teológica de fé, quanto
de sua definição positiva, apenas me parecendo que nessa apresentação de seu
sermão você referiu-se à fé como algo que corresponde ao campo do amor, quando em termos positivos a fé – tanto teológica quanto a nossa – é compreendida
igualmente como uma tentativa de racionalizar as coisas, de compreender o mundo exterior e de situarmo-nos
melhor nele, sendo portanto a fé sempre
um aspecto intelectual da religião.
É assim que
chegamos a ver, por fim, que o caráter passional da fé teológica, conquanto
pareça fundamentar-lhe, não é senão um dos resultados colaterais de sua falta
de sustentação teórica, ao passo que a nossa fé, a nossa crença, corresponde à fé na existência geral de leis naturais
constatáveis, bem como na fé que depositamos na Humanidade, que as descobre e aplica-as
para o nosso bem.
A fé positiva
vai, pois, além da razão, sem, no entanto, contrapor-se-lhe, visto como o
universo inteiro não nos será jamais inteiramente conhecido e visto também que
não fomos nós pessoalmente que descobrimos e demonstramos as leis naturais que
tomamos por verdadeiras. Ora, se nós aceitamos as leis naturais nessa condição,
fazemo-lo por uma questão de confiança;
em outras palavras, aceitando as leis naturais como um dos aspectos de nossa fé na Humanidade.
Temo que, talvez,
eu não tenha sido claro.
Afirmar que o Positivismo
concilia razão e fé subentende pelo
menos duas coisas: (1) que existam de fato esses dois campos; (2) que eles
sejam ou tenham sido postos em oposição.
Porém, desde que
se compreende que o conflito não é – nunca
foi! – exatamente entre razão e fé, mas um conflito entre a racionalidade
maior ou menor que pode ser atribuída a diferentes
fés, então a questão inteira de examinar a compatibilidade entre razão e fé
cessa de existir, não encontrando
mais justificativa para ser sequer colocada.
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