Elementos da teoria positiva da arte
- O Positivismo afirma com todas as letras a importância da subjetividade
o Por exemplo, bastante pensarmos na centralidade do “método subjetivo”
- A subjetividade no Positivismo assume vários âmbitos:
o Por um lado, ela tem uma possibilidade social (é basicamente nesse sentido que falamos da “síntese subjetiva” e que fundamenta a moralidade positiva) e uma possibilidade individual (que é estudada pela ciência da Moral e modificada pelo culto positivo e pelas técnicas associadas à Moral)
o Por outro lado, a subjetividade pode ser entendida como a afetividade (ou sentimentos, ou amor, ou altruísmo) e/ou como a inteligência, cada uma das quais tem suas próprias leis
- Da mesma forma, Augusto Comte concentra-se na sistematização e na regularização do que é verdadeiro, do que é bom e do que é belo
o Todos esses âmbitos são ordenados e regularizados pela moral, que se mantém suprema sobre todos eles
o Eis como esses âmbitos relacionam-se com as grandes produções humanas:
§ O verdadeiro é investigado pela filosofia, a partir das bases científicas
§ O que é bom é desenvolvido pela política e aplicado pela indústria
§ O que é belo é elaborado pela arte
o Por “artes” entendemos as “belas-artes”
§ Essa observação é necessária para distinguir as “belas-artes” das chamadas “artes práticas”, cujo âmbito é o da indústria e que consiste em todas as aplicações práticas dos conhecimentos científicos
- Os livros de Augusto Comte, bem como dos positivistas, desenvolvem longamente as questões relativas à verdade e ao bom, dedicando-se menos a respeito do belo, cuja importância, entretanto, não apenas não é negada como é todo momento exaltada
o Há uma certa deficiência em relação ao belo e à poesia e, não por acaso, também em relação ao culto positivo e à liturgia positiva
- Augusto Comte trata da arte em dois momentos principais:
o No capítulo quatro do Discurso (preliminar) sobre o conjunto do Positivismo, intitulado “Aptidão estética do Positivismo”; esse livro foi originalmente publicado em 1848 e depois, em 1851, inserido com alterações tópicas como introdução geral ao volume primeiro do Sistema de política positiva; esse capítulo tem 46 páginas
o No capítulo quarto do volume segundo do Sistema de política positiva, intitulado “Teoria positiva da linguagem humana” e publicado em 1852; a teoria da arte é reapresentada e desenvolvida em meio às reflexões sobre a linguagem; esse capítulo também tem 46 páginas
o Além desses dois capítulos, há reflexões feitas de passagem sobre as artes, as produções artísticas e os gênios artísticos em todos os capítulos que Augusto Comte escreveu, em particular em sua fase religiosa e em particular quando aborda o culto positivo, em seus inúmeros aspectos
- Neste sermão abordaremos apenas alguns aspectos da teoria positiva da arte
o Nos dois capítulos indicados acima, como sempre acontece, as reflexões desenvolvidas por Augusto Comte são densas e conjugam aspectos artísticos, filosóficos, morais e sociológicos
§ Dessa forma, o que exporemos aqui é bastante elementar, mesmo quase superficial
o Adicionalmente, devemos notar que, pessoalmente, nossa atenção sempre se voltou para questões políticas, sociológicas, filosóficas, científicas e epistemológicas
§ Em outras palavras, pessoal e lamentavelmente, ao longo de nossa carreira profissional não nos concentramos tanto nos aspectos mais diretamente artísticos do Positivismo
- Três aspectos elementares sobre as artes:
o Antes de mais nada, as artes (como as linguagens) atuam no sentido de passar para fora o que existe no interior do ser humano
§ Enquanto as linguagens realizam essa tarefa a respeito de tudo o que existe no interior do ser humano (isto é, da subjetividade individual), as artes externalizam em particular os sentimentos
o Em segundo lugar, a arte integra a subjetividade, mas seu âmbito é diferente daqueles já apresentados (os sentimentos e a inteligência): trata-se da imaginação
§ O Positivismo regula a imaginação, da mesma forma que regula os sentimentos e a inteligência
§ Mas, à parte a arrogância e a secura próprias à inteligência, o fato é que a imaginação exige ainda mais a regulação
o Em terceiro lugar, o ser humano historicamente é antes artístico que filosófico ou industrial
§ Para Augusto Comte, a linguagem humana é inicialmente cantada, assim como as representações de objetos são todas elas artísticas
- Para regularizar as artes – e também a imaginação –, Augusto Comte estabelece os seguintes princípios, metas e objetivos:
o A função da arte é idealizar a realidade para realizar o aperfeiçoamento moral do ser humano
§ Sendo repetitivo, é necessário reiterar: o objetivo da arte é permitir o aperfeiçoamento humano, a partir das idealizações
· Elaborações degradantes, meramente humilhantes, estimuladoras do ódio etc.: nada disso merece o título de “artísticas” e devem ser desprezadas
· O objetivo da arte não é estimular os sentidos, nem meramente estimular quaisquer sentimentos, nem ser sistematicamente “crítica”
§ As idealizações artísticas devem estimular os bons sentimentos; mas isso não necessariamente significa retratar apenas os bons sentimentos:
· Por exemplo, as peças de Shakespeare retratam a inveja, o ciúme, a burrice, a tristeza, a mesquinhez (Otelo; Ricardo III; Rei Lear; Macbeth; Hamlet) – e claramente aprendemos que tudo isso é ruim, errado ou, pelo menos, que deve ser evitado
· Outro exemplo: as peças de Ésquilo e de Sófocles apresentam grandes valores humanos, a partir de dramas intensos, sacrifícios etc. (Prometeu acorrentado; Sete contra Tebas; Édipo-rei)
o A idealização da realidade dá-se com base nos resultados indicados pela ciência e pela moral e por meio do aumento de alguns traços, positivos (com a concomitante supressão ou diminuição de outros traços, negativos)
§ Não por acaso, essa regra é a mesma empregada no culto íntimo, com as orações positivistas
§ Essas modificações evidenciam que a arte baseia-se necessariamente em procedimentos de abstração
o Assim, a arte (e, de modo geral, a imaginação) deve respeitar a realidade – embora não de maneira servil
o Além dessas indicações específicas para a imaginação e para a arte, há inúmeras outras orientações para a harmonia mental em toda a obra de Comte, em particular sumariadas nas 15 leis de filosofia primeira
o Vale a pena lembrar que as elaborações científicas também consistem em idealizações: mas são idealizações da realidade, não dos sentimentos
- Augusto Comte considera que há três passos na elaboração artística:
o (1) a imitação, (2) a idealização, (3) a expressão
o A imitação consiste em reproduzir o que já existe, seja em termos da realidade, seja em termos da produção artística já existente
§ Para Comte, embora o verdadeiro poeta seja sempre inovador, não se deve levar demasiadamente a sério as preocupações com a imitação, pois todos sempre imitam em algum grau
o A idealização é a elaboração mental, ao mesmo tempo afetiva e intelectual; assim, ela é puramente interna, isto é, subjetiva
o A expressão é o passo em que a obra de arte efetivamente toma corpo, a partir da idealização subjetiva; em outras palavras, é a parte objetiva da produção artística
- A partir dos princípios de classificação (generalidade decrescente, particularidade crescente), Augusto Comte classifica as artes da seguinte maneira:
o (1) Poesia, (2) Música, (3) Pintura, (4) Escultura, (5) Arquitetura
§ Como se vê, para Comte as artes fundamentais são cinco, que vão da mais geral para a mais técnica
§ A poesia é a arte mais geral, que fundamenta e orienta todas as demais
o Essas artes são as artes fundamentais; outras modalidades de arte são derivações (ou extensões) ou combinações dessas cinco
§ Alguns exemplos:
· O teatro é uma extensão da poesia
· A ópera – que era uma preferência pessoal de Augusto Comte – é uma combinação da poesia e da música (e da pintura)
· A dança é uma combinação da música e da escultura (e, antes, da poesia)
- Como comentamos na prédica da semana passada (em que abordamos o progresso e a esperança em face do cinismo atual), atualmente é imperativo revalorizarmos as utopias
o Para Augusto Comte, as utopias são uma verdadeira expressão poética moderna
o As utopias devem orientar-se para o futuro, sem que, todavia, os artistas positivistas ignorem a idealização do passado (e mesmo do presente)
o Para Comte, as utopias antecipam em cerca de dois séculos os programas políticos a serem aplicados
§ Evidentemente, para revalorizarmos as utopias, devemos revalorizar (pelo menos de maneira sincera e explícita) a noção de progresso e passar a desprezar sistematicamente as degradantes “distopias”, que são produções do século XX e particularmente apoiadas pela “indústria cultural”
§ A rejeição das distopias na verdade integra uma recomendação mais geral de Augusto Comte, no sentido de que, para bem apreciarmos as (boas) obras de arte, é necessário rejeitarmos as mediocridades artísticas
o As utopias têm um aspecto suplementar inaudito em termos políticos e sociológicos:
§ Na medida em que as previsões sociológicas apresentam um caráter geral, os seus detalhes específicos ficam faltando – e é aí que as utopias desempenham um papel central, ao apresentar e completar os detalhes
§ Deveria ser evidente – mas o cinismo moral e a metafísica intelectual característicos de nossa época e de nossa civilização impedem que seja de fato evidente – que esse a complementação das previsões sociológicas pelas utopias deve ocorrer sempre estimulando o altruísmo e os bons sentimentos
o Em certo sentido, podemos dizer que os artistas positivistas são sistematicamente utópicos
§ Assim, em termos literários, o Positivismo aproxima-se do romantismo e mesmo do classicismo
· Todavia, “teóricos” e historiadores da literatura acham-se autorizados, a partir de uma certa coincidência temporal, meramente cronológica, a afirmar que o Positivismo seria representado ou afirmado nas escolas literárias realista e/ou naturalista, com o cinismo, o ceticismo, o pessimismo, o darwinismo social, a degradação moral e social etc. tão próprios a essas escolas
o É claro que essa aproximação só é possível com base em procedimentos preguiçosos, molengas e preconceituosos
§ Muito longe de esgotar os nomes possíveis, podemos indicar como grandes poetas positivistas brasileiros[1]:
· José Mariano da Silveira, Montenegro Cordeiro, José Martins Fontes, Edgar Proença Rosa, Branca Dulcina Bagueira Sampaio, Paulo de Tarso Monte Serrat
§ Muito longe de esgotar os nomes possíveis, podemos indicar como grandes pintores e escultores positivistas brasileiros:
· Demétrio Ribeiro, Eduardo de Sá
- Os sacerdotes da Humanidade devem todos ser bastante sensíveis às artes e, na medida do possível, também devem ser artistas
o A apreciação artística tem um caráter passivo, evidentemente, ao contrário da produção artística
o A sensibilidade artística dos sacerdotes da Humanidade – nos termos indicados aqui, é claro – tornar-nos-á plenamente superiores aos sacerdotes teológicos (em particular monoteístas)
- Assim como os sacerdotes da Humanidade devem manter-se cuidadosamente afastados do poder Temporal (pois constituem o poder Espiritual), os artistas também devem ficar longe do poder
o Os artistas são integrantes assessórios do poder Espiritual
o Na verdade, a vedação de integrar o poder Temporal deve ser muito mais rígida no caso dos artistas, devido à sua relação mais frágil com a realidade e com os requisitos morais do poder Espiritual
o Assim, os artistas subordinam-se moral e intelectual ao sacerdócio, ou seja, aos filósofos positivos
[1] Uma relação mais completa (mas, certamente, também incompleta) é sempre o livro de Ivan Lins, História do Positivismo no Brasil.
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