Anotações sobre o exame de consciência
- Vários sermões anteriores, baseando-se ou inspirando-se em Augusto Comte, também se beneficiaram de sugestões e comentários do meu amigo Hernani Gomes da Costa; este sermão deve muito mais a ele, quase a ponto de eu dizer que ele é um coautor destas reflexões
- Para melhorar esta exposição, ela será dividida em duas grandes partes:
o na primeira nós exporemos o que e como nos parece correto realizar o exame de consciência
o na segunda parte nós apresentaremos alguns elementos do Positivismo que fundamentam, ou fundamentariam, o exame de consciência
- O exame de consciência é aquela reflexão íntima que cada pessoa faz retrospectivamente de sua conduta, de seus valores, de suas concepções, a fim de aperfeiçoá-las, isto é, de desenvolvê-las ou modificá-las
- O exame de consciência exige então pelo menos quatro condições, ou melhor, quatro etapas sucessivas:
o Que a pessoa que se examina deseje o aperfeiçoamento
o Que a pessoa reconheça em si mesma limites a serem ampliados e/ou defeitos a serem corrigidos
o Que a pessoa seja honesta consigo mesma
o Que, com maior ou menor brevidade e com maior ou menor afinco, a pessoa modifique a si mesma, no sentido do que julga ser o do aperfeiçoamento necessário
- É importante notar que o exame de consciência só é eficaz, isto é, só funciona e só faz sentido se todas as etapas indicadas acima forem cumpridas, especialmente a última etapa, que é o efetivo esforço de aperfeiçoamento
- Um empecilho que tem que ser suprimido a cada passo é o orgulho
o O orgulho pode atuar em cada um dos quatro momentos acima: a pessoa considera que não precisa aperfeiçoar-se; e/ou a pessoa rejeita reconhecer que tenha limites ou defeitos; e/ou a pessoa rejeita determinar a natureza e a extensão de seus defeitos ou limitações; e/ou a pessoa rejeita implementar as ações necessárias ao aperfeiçoamento
o Reconhecer limites ou defeitos é o mesmo que reconhecer que é possível um comportamento, ou uma realidade, superior ou melhor que a existente
o Da mesma forma, implementar as mudanças significa aceitar uma disciplina pessoal
o Seja como reconhecimento de uma realidade melhor, seja como aceitação da disciplina, seja como rejeição do orgulho, a condição fundamental do exame de consciência eficaz é o seguinte: “a submissão é a base do aperfeiçoamento”
§ Respeitando-se a autonomia do indivíduo, a submissão é digna, ou seja, é moralmente valorosa e digna
- As condições acima indicam que o exame de consciência é individual e, em certo sentido, é uma reflexão solitária
o É claro que, embora seja realizado pelo indivíduo, o exame de consciência não é “individualista”, pois os valores, as práticas etc. são sociais em sua origem e têm uma destinação social
o Além disso, embora seja uma reflexão íntima, isto é, pessoal, muitas vezes a conversa sincera, afetiva e construtiva pode ser um importante auxílio no exame de consciência
§ Por definição, o apoio e a orientação são atividades sacerdotais, mas pessoas honestas, sensatas e generosas também sempre podem ajudar: idealmente, os cônjuges, além de amigos, parentes – e, mais contemporaneamente, também os psicoterapeutas
- À primeira vista, Augusto Comte não teria tratado do exame de consciência, entendido este como a reflexão pessoal especificamente moral, levada a cabo de maneira solitária ou com auxílio sacerdotal
o Entretanto, em toda a obra religiosa está presente a importância dessas reflexões íntimas com vistas ao aperfeiçoamento: por exemplo, no Catecismo positivista do início ao fim; nas Confissões anuais; na recomendação da versão humanista da Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis
o Além disso, não somente há a observação lembrada acima, de que “a submissão é a base do aperfeiçoamento”, como, de maneira mais central e direta para o que nos interessa aqui, há a versão positiva da recomendação délfico-socrática: “Conhece-te a ti mesmo a fim de te melhorares”
§ Essa fórmula resume em si todas as quatro etapas indicadas antes, bem como deixa claro o objetivo do exame de consciência (o efetivo aperfeiçoamento pessoal e não meramente um conhecimento íntimo)
- A reflexão solitária é valorizada no Positivismo, de maneira explícita, pelo menos em duas situações: nas preces, como forma de exercício afetivo, e nos estudos, como forma de exercício intelectual
- Podemos supor, ou melhor, especular que nos volumes II e III da Síntese subjetiva (dedicados à Moral Teórica e à Moral Prática), Augusto Comte recomendaria de maneira explícita algum tipo de exercício moral como o exame de consciência
o Mas, na medida em que ele morreu antes de redigir esses volumes, por um lado permanecemos apenas no âmbito da especulação e, por outro lado, considerando o conjunto da Religião da Humanidade e as experiências práticas de outras religiões, podemos propor aqui, explicitamente, a prática do exame de consciência
- O objetivo da prece positiva é o estímulo dos sentimentos, com vistas ao aperfeiçoamento altruísta; Augusto Comte observava que as mais simples preces podem atuar como poderosos exercícios morais
o Na medida em que nos for permitido, podemos então sugerir que o exame de consciência seja precedido por uma breve expansão afetiva semelhante à prece positiva; essa expansão preliminar predispor-nos-á ao exame sincero e altruísta de nossas limitações e falhas e, a partir daí, também nos predisporá ao nosso aperfeiçoamento
- No caso de o exame de consciência realizar-se com o apoio do sacerdócio positivo, tendo em vista hábitos sociais e práticas profissionais do Ocidente contemporâneo, também parece adequado o sigilo profissional
- O exame de consciência é uma prática reflexiva: isso quer dizer que ela consiste em (1) uma reflexão e (2) sobre o passado, em que cada pessoa rememora e examina seus comportamentos à luz do que julga melhor, mais correto, mais belo
o Nesse sentido, como se trata de uma rememoração, o exame de consciência não é um exercício de “introspecção”, em que, supostamente, ao mesmo tempo cada um seria observador e objeto
- Além disso, embora seja uma prática pessoal (por vezes auxiliada ou orientada por outrem), o exame positivo de consciência não é uma prática absoluta
o Isso quer dizer que se tem muita clareza de que é um exercício pessoal com vistas ao aperfeiçoamento e esse aperfeiçoamento ocorre com vistas ao público e a partir de conhecimentos, práticas e valores legados pela Humanidade
o Sendo relativo e não absoluto, o exame positivo de consciência não é um diálogo pessoal de cada um com sua alma e/ou com uma suposta divindade supranatural
- Assim como a prece, que lhe serve de inspiração, o exame positivo de consciência evidencia o caráter religioso do Positivismo, isto é, como uma prática afetiva e intelectual
o A dignidade do exame de consciência é uma exigência fundamental; isso implica o respeito à autonomia dos indivíduos em suas reflexões
o Essa autonomia só pode ser obtida com base no caráter espiritual dessa prática; dito de outra maneira: ela não pode ocorrer de maneira forçada, via poder Temporal
o Em outras palavras, o exame de consciência exige a separação entre o poder Temporal e o poder Espiritual
o Portanto, exigir do Positivismo uma atuação diretamente temporal, ou, o que dá na mesma, exigir dele que se constitua como um partido político é violentar e degradar o que há de mais delicado na Religião da Humanidade e no ser humano
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