15 março 2023

Anotações sobre a laicidade

No dia 17 de Aristóteles de 169 (14 de março de 2023) fizemos nossa prédica positiva. Em um primeiro momento, demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua sexta conferência, dedicada ao conjunto do dogma; em particular, abordamos a lei estática do entendimento.

Em seguida, na parte do sermão positivo, apresentamos algumas reflexões sobre a laicidade do Estado: as anotações que serviram de base para essa exposição estão reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Apostolado Positivista (aqui: acesse.one/Laicidade1) e Positivismo (aqui: encr.pw/Laicidade2). O sermão sobre a laicidade pode ser visto a partir de 41' 50".

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Anotações sobre a “laicidade do Estado”

 

-        Um dos temas mais importantes de qualquer organização política moderna é a chamada “laicidade do Estado”

o   Vale notar que, apesar de sua importância literalmente fundamental, ela é rotineira e generalizadamente negligenciada, seja pela teoria política, seja pelos políticos práticos

o   Essa negligência não me parece casual, pois a laicidade impõe uma auto-restrição que quase ninguém está disposto a assumir (na teoria e/ou na prática)

-        O Positivismo desde o início bate-se pelo que se chama de “laicidade do Estado”

o   Para o Positivismo, o que se chama de “laicidade do Estado” é um dos princípios fundamentais de qualquer organização política – isso para não dizer que é o princípio fundamental

o   Entretanto, para o Positivismo, o que se chama vulgarmente de laicidade é entendido como uma aplicação específica do princípio da separação entre os dois poderes

-        Quais são, então, os dois poderes?

o   Poder Temporal: responsável pela manutenção da ordem material das sociedades; baseia-se na força física; modifica externamente (objetivamente) a conduta dos indivíduos

o   Poder Espiritual: responsável pela formação e manutenção das opiniões, das idéias e dos valores; baseia-se na confiança e no aconselhamento; modifica internamente (subjetivamente) a conduta dos indivíduos

-        Historicamente os dois poderes estiveram unidos, ainda que com a subordinação de um ao outro

o   Na Idade Média houve um primeiro esboço de separação entre os dois poderes, com a separação entre o Imperador e o Papa

§  Essa separação foi proposta, no âmbito da teologia católica, por São João Crisóstomo (séc. IV)

§  O episódio da “ida a Canossa” (Henrique IV vs. Gregório VII, em 1077) indica tanto a separação entre os dois poderes quanto a subordinação moral do poder Temporal

o   As fés absolutas aproximam-se das ordens indiscutíveis; assim, o absoluto filosófico está próximo do autoritarismo político (e/ou do militarismo)

§  Inversamente, a fé relativa aceita e promove a ativa reflexão filosófica, social e política

§  Vale notar que países que têm retrocedido para o autoritarismo são países que, não por acaso, têm negado a laicidade (seus valores e suas práticas)

o   Na modernidade os dois poderes devem manter-se separados; a separação entre os dois poderes baseia-se em uma série de considerações morais, intelectuais e políticas inter-relacionadas entre si:

§  O fundamento de cada um dos poderes é diferente: o poder Temporal baseia-se na força física (ou seja, na violência), enquanto o poder Espiritual baseia-se na confiança e no convencimento

§  Cada indivíduo deve escolher suas crenças com liberdade e autonomia e não ser constrangido oficialmente para isso

§  Uma crença que usa o poder Temporal para estabelecer-se torna-se degradada, reconhecendo implicitamente que não tem forças para difundir-se sozinha

§  Um Estado que impõe uma crença determinada ao mesmo tempo indica que carece de legitimidade e estimula a hipocrisia pública

§  Os atributos próprios a cada um dos poderes são diferentes: o orgulho para o poder Temporal, a vaidade para o poder Espiritual

§  As perspectivas de cada um dos poderes são diferentes:

·         O poder Temporal visa a mudar materialmente a sociedade, concentrando-se no presente (solidariedade), em operações parciais e sendo objeto de disputas francamente egoísticas;

·         O poder Espiritual visa a mudar afetiva e intelectualmente a sociedade, afirmando a continuidade humana ao longo da história, estimulando as visões de conjunto e buscando estimular o altruísmo e regular o egoísmo

§  Com base na separação dos dois poderes, o Positivismo garante a legitimidade do Estado, a dignidade espiritual e rejeita que problemas morais sejam solucionados pela via temporal (somente pela via espiritual, ou seja, pelo aconselhamento e pela educação)

-        De um ponto de vista político, a separação dos dois poderes resulta em que os indivíduos têm a mais completa liberdade para formarem e/ou mudarem as suas próprias opiniões

o   Evidentemente, como já indicamos, qualquer opinião baseia-se sempre na confiança depositada pelo crente em um órgão espiritual qualquer

o   De maneira concreta, a separação entre os dois poderes realiza-se na forma da “laicidade do Estado” e é completada por três liberdades fundamentais: (1) de consciência, (2) de expressão e (3) de associação

-        Do exposto acima, torna-se claro que a laicidade do Estado não é:

o   Não é o estabelecimento de Estado ateu

o   Não é o estabelecimento de Estado pluriconfessional

o   Não é anticlericalismo

-        Há alguns detalhes adicionais sobre as diversas fases da transição derradeira, para Augusto Comte, em particular a ausência de qualquer financiamento teórico (igrejas teológicas, universidades metafísicas e mesmo a igreja positiva)

-        Na teoria política mais recente (não por acaso especificamente francesa), a laicidade do Estado é afirmada em termos de cidadania:

o   A atual teoria política francesa da laicidade baseia-se na obra de Condorcet, que, antes de Augusto Comte, foi o maior teórico francês do tema

o   A laicidade assegura que, para a cidadania, requer-se apenas o respeito às leis do país

o   Inversamente, com a laicidade não se requer a adesão a nenhuma doutrina específica (e, conseqüentemente, nem a filiação a nenhuma organização específica)

o   No que se refere ao serviço público, isso gera uma ética específica: tudo aquilo que tem a participação do Estado, direta ou indireta, tem que se manter neutro em termos doutrinários

-        Há diferenças entre laicidade e tolerância:

o   Para o que nos interessa, a tolerância é a aceitação, mais ou menos ampla, da parte dos governantes em relação às crenças dos cidadãos que não comungam da doutrina oficial de Estado (a liberdade de crença é uma concessão do Estado e/ou do governante e, como concessão, pode ser mantida ou suprimida)

o   A laicidade é a afirmação da cidadania apenas no respeito às leis e não depende da boa vontade do Estado e/ou do governante (a liberdade de crença é o fundamento das liberdades públicas e da cidadania)

-        Laicidade de princípio e laicidade de compromisso:

o   Laicidade de princípio: é estabelecida considerando que ela é o fundamento das liberdades e da cidadania; ela fundamenta efetivamente uma organização social e política

o   Laicidade de compromisso: estabelece-se a laicidade porque nenhuma seita específica tem poder suficiente para impor-se sobre o conjunto da população; é claro que ela é instável

-        No Brasil a laicidade foi estabelecida plenamente apenas em 1890 e até 1931

o   Não por acaso, a laicidade na I República foi estabelecida graças à ativa e difundida propaganda do Positivismo

o   Antes de 1890 e após 1931 o país viveu momentos de religião oficial (colônia, império), religião semioficial e Estado para-pluriconfessional (após 1931, até hoje)

-        No Brasil atual a “discussão” sobre laicidade apresenta-se da seguinte forma:

o   A direita é claramente contra a laicidade ou é cinicamente alheia a ela

o   A esquerda oscila entre a rejeição e o alheamento (como a direita) ou – no caso da esquerda identitária – adota uma visão pobre e instrumentalista da laicidade para justificar o anticlericalismo tópico

o   Há serviços públicos realmente universais e ligados apenas à cidadania (SUS), mas há serviços públicos que exigem a adesão explícita a um determinado credo oficial (vestibulares de IFES)

o   A Constituição Federal de 1988 é extremamente contraditória:

§  Afirma a ausência de apoio, subvenção ou embaraço público às religiões (Art. 19, I)

§  Proclama a Constituição “em nome de deus” (Preâmbulo) e afirma a colaboração do Estado com igrejas em nome do interesse público (Art. 19, I)

o   Os doutrinadores jurídicos justificam essa aberração político-intelectual por meio das categorias (igualmente aberrantes) “Estado colaborador” ou “laicidade atenuada”

§  Vale notar que a laicidade não é uma questão de quantidade, mas de qualidade; ela seria uma categoria discreta (sim/não, presente/ausente) e não uma categoria contínua (mais/menos)

§  Assim, nenhuma dessas categorias jurídico-políticas a posteriori realmente faz sentido

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