Na Netflix há dois documentários e um filme sobre o assassino “Enfermeiro da Noite”, que matou dezenas, talvez centenas de pessoas em hospitais dos EUA entre as décadas de 1980 e 2000. Eu assisti a um desses documentários; ele tem alguma coisa como 1h 40, mas poderia muito bem ter a metade dessa duração: é arrastado, excessivamente dramático, muito piegas. Esses defeitos são tão evidentes que o tema do documentário fica totalmente eclipsado. Mas, enfim, após uma investigação de alguns meses e muitas denúncias, o assassino foi pego, confessou, foi julgado e condenado.
A ênfase do documentário – cujo nome não lembro, mas isso não faz diferença para o que me interessa – é nas pessoas, ou melhor, nos indivíduos: o assassino, os assassinados, as famílias, os colegas, os investigadores, os administradores dos hospitais. Há apenas indivíduos, mais ou menos culpados, mais ou menos inocentes.
A ênfase nos indivíduos fica bastante evidente quando, no documentário e nas reflexões finais, comenta-se a responsabilidade dos administradores dos hospitais onde o assassino trabalhou; ao que parece, ele foi seguidamente pego em seus crimes, mas os administradores nada fizeram, ou melhor, acobertaram-no. Há, claro, um elemento de responsabilidade individual aí, mas a questão é que o sistema de saúde dos EUA estabelece uma competição entre os hospitais pelas verbas; se um escândalo desses surge, as verbas cessam e os administradores – que são pessoas com muitas responsabilidades – têm que se preocupar com a manutenção dos serviços, os empregos dos empregados etc. Assim, no sistema prevalecente nos EUA, os administradores vêem-se entre duas exigências contraditórias: acobertar os crimes mas manter os empregos, ou denunciar o(s) criminosos e acabar com todos os empregos e serviços. Os administradores escolhem a permanência das instituições.
Insisto: é um sistema que, em nome do individualismo, em vez de eliminar um dilema inaceitável, estimula a irresponsabilidade criminal, ao obrigar os administradores a escolher, sem mais, entre a responsabilidade social e a responsabilidade criminal.
O documentário, sendo estadunidense, ao mesmo tempo que escolhendo a pieguice, ignora ou despreza um sistema que estimula a irresponsabilidade criminal.
Mas, enfim, isso é problema dos EUA, não brasileiro – pelo menos não é nosso até o ponto em que as instituições dos EUA são apresentadas como modelares e copiadas mundo afora. Como demonstra o exemplo escabroso do racismo institucionalizado dos EUA, com suas cotas racistas, mesmo as instituições mais burras e imorais podem ser (e são) exportadas e copiadas por outros países, entre eles o Brasil.
A última reflexão que esse documentário sugere-me é a respeito da Operação Lava-Java. Indiquei acima que os administradores de hospitais, devido à estrutura do sistema de saúde dos EUA (ou melhor, dos valores sociais, das instituições sociopolíticas e das leis que regem os hospitais de lá), vêem-se obrigados a escolher entre dois tipos de responsabilidades que, lá, são mutuamente excludentes – e, por pior que seja, escolhem manter empregos.
Ao longo da década de 2010, a Operação Lava-Jato – com a militância fanática, ultraprincipista e completamente alheia às consequências sociais de suas ações de seus procuradores da República e seu juiz exclusivo – impôs aos investigados o mesmo tipo de escolha entre opções contraditórias e mutuamente excludentes, com os piores resultados possíveis.
Os operadores da Lava-Jato impuseram aos investigados – muitos deles condenados apenas porque eram suspeitos – duas opções: ou não falavam nada e eram condenados por muito, muito, muito tempo, ou colaboravam e suas penas eram reduzidas. A pegadinha nessa oposição é que as colaborações implicavam – no caso das empreiteiras – que as empresas iriam à falência, gerando interrupção de obras, desemprego e ruína pessoal.
Insisto: durante sua atividade, os operadores da Lava-Jato adotaram uma perspectiva que era ao mesmo principista, individualista e unilateral; eles demonstraram um desprezo olímpico, ou melhor, um desprezo bíblico pelas consequências sociais de suas ações, no que se refere à manutenção das empreiteiras, de suas atividades e dos seus empregos. Apenas a caça à corrupção, ou melhor, apenas a caça aos corruptos importava. Os corruptos muitas vezes foram aqueles que a própria Operação Lava-Jato decidiu que eram corruptos, independentemente de provas; além disso, se haveria consequências em termos de desemprego, para a turma da Lava-Jato isso seria desprezível ou um pequeno e aceitável preço a pagar.
A Lava-Jato, portanto, escolheu impor a falência das empreiteiras; ela escolheu ser individualista e principista; ela escolheu gerar desemprego. O “superjuiz” dissera, lá por 2010, que queria que o sistema político brasileiro ruísse, bem como as empresas que o financiavam deveriam ruir. O procurador-pastor chantageou muitas empresas, ganhando milhares de reais em palestras e viagens (para si e para sua família), em troca de sua “boa vontade” nas investigações. Tanto o “superjuiz” quanto o procurador-pastor foram eleitos em 2022: eles terão emprego pelos próximos quatro a oito anos. Para eles, a imposição do desemprego e da falência das empreiteiras foi um pequeno custo para suas eleições, ops, no seu “combate à corrupção”.
Nos EUA, os administradores de hospitais vêem-se obrigados a fazer escolhas em dilemas impostos por aspectos muito fundamentais de suas sociedades; a recusa dos estadunidenses de tratarem seus problemas em termos sociológicos terá sempre resultados trágicos. No Brasil, a Operação Lava-Jato escolheu, conscientemente, impor a abordagem individualista e mandar às favas a manutenção de empregos: entretanto, se eles fizeram essa desastrosa escolha, não há porque os demais brasileiros referendem e repitam essa decisão.
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