No dia 19 de Moisés de 170 (19.1.2024) realizamos a celebração do nascimento de Augusto Comte; além disso, seguindo a tradição estabelecida pela Igreja Positivista do Brasil, na mesma data realizamos a celebração da mãe de Augusto Comte, Rosália Boyer. A Igreja Positivista do Rio Grande do Sul associou-se a nós nessa celebração.
Ambas as celebrações foram transmitidas no canal Positivismo e estão disponíveis aqui: https://l1nq.com/GzhjG.
A honra da celebração do próprio Comte coube ao nosso amigo e correligionário Hernani Gomes da Costa. A sua participação começa aos 39 min 53 s.
A celebração de Rosália coube a nós mesmos. As anotações que serviram de base para a nossa exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.
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No dia 19 de Moisés (19 de janeiro) celebra-se o nascimento de Augusto Comte; conforme o belo calendário estabelecido para os cultos públicos da Igreja Positivista do Brasil, também nessa data se celebra Rosália Boyer, mãe de nosso mestre e um de seus anjos da guarda. (Da mesma forma, no dia 5 de setembro celebra-se a transformação de nosso mestre – e Sofia Bliaux.)
Apesar da importância de Rosália, é notável que haja pouquíssimas indicações de sua vida. As biografias de Augusto Comte escritas pelo dr. Robinet (Notícia sobre a vida e a obra de Augusto Comte) e por José Longchampt (Epítome da vida e dos escritos de Augusto Comte) apresentam apenas indicações gerais sobre ela, de modo geral relativas ao episódio da crise cerebral de 1826-1827. A biografia que apresenta mais dados sobre Rosália é a de Mary Pickering (Auguste Comte, An Intellectual Biography, v. 1), a despeito do desprezo da autora por Augusto Comte e pelo positivismo e do seu desejo de contradizer tudo o que a tradição positivista (e mesmo a não positivista, a exemplo de Henri Gouhier) disse sobre a vida de Augusto Comte[1]. Também nos valemos do belo volume cultual de Teixeira Mendes, Comte et Clotilde.
Rosália Boyer Comte nasceu Félicité-Rosalie Boyer em 28 de janeiro de 1764, na pequena comuna de Jonquières (no departamento do Hérault), e faleceu em 3 de março de 1837, em Montpellier (sede do Hérault) – portanto, com a idade de 73 anos.
A família de Rosália era de Jonquières; seu pai era mercador e vinha de uma conhecida família de doutores. Casou-se com 32 anos, em 1796, em Montpellier, e teve quatro filhos: Augusto (1798), Alice (1800), um logo falecido (em 1801) e Adolfo (1802). Na medida em que seu marido, Luís-Augusto Comte, passava a maior parte do tempo fora de casa, no trabalho, Rosália era a figura mais importante da casa; segundo a expressão de Augusto Comte em 1837, após a morte de sua mãe, ela também era a “figura mais apaixonada” da casa. Ainda segundo nosso mestre, fisicamente ele parecia-se com seu pai, mas suas características morais eram mais conforme sua mãe: seus sentimentos, sua inteligência, seu caráter. Apesar disso, as relações de Comte com sua mãe (e com seu pai) não eram muito próximas durante a infância de nosso mestre; os seus estudos foram realizados no liceu local, o que o afastava dos pais (e principalmente da mãe); mais tarde, com sua mudança para Paris, essa distância aumentou ainda mais, em particular devido às diferenças de opinião entre eles. Rosália era católica praticante e levava a sério as explicações teológicas da vida; além disso, ela compartilhava as opiniões monarquistas do seu marido.
Com a idade de 16 anos Augusto Comte foi admitido na Escola Politécnica, tendo obtido o primeiro lugar nos exames do Centro-Sul do país; a partir daí, apesar de uma temporada de retorno a Montpellier, Paris tornou-se a cidade do filósofo. Apesar disso, em Paris, as dificuldades financeiras, as opiniões políticas e filosóficas, as relações sociais (incluindo Saint-Simon) e, depois, também o casamento com Carolina Massin foram motivos de grande tensão entre Augusto Comte e seus pais.
A correspondência entre Augusto Comte e sua família (mãe, pai, irmã) indica reiterados pedidos de dinheiro da parte do filósofo, assim como cobranças da parte da família para que ele estabelecesse-se na vida, obtivesse um bom emprego, afastasse-se das más companhias, voltasse à religião católica etc. Isso gerou animosidade profunda de parte a parte, que só foi começou a ser revertida após a morte de Rosália, em 1837, e que só mudou efetivamente em 1855, com a reconciliação de Augusto Comte com seu pai.
Além dessa tensa e constante troca de cartas, o episódio mais importante da vida de Rosália para Augusto Comte já adulto foi o do acompanhamento da crise cerebral de 1826 e 1827.
Como se sabe, em 19.2.1825 Augusto Comte casou-se com Carolina Massin, contra a mais viva resistência dos pais. Um ano depois, em 2.4.1826, ele começou as aulas orais do “Curso de filosofia positiva”: entretanto, as enormes exigências intelectuais do curso, somadas ao comportamento reprovável de Carolina, bem como às dificuldades materiais do casal, conduziram Augusto Comte a uma crise nervosa após a terceira sessão do curso. Em 18.4.1826 Augusto Comte foi recolhido à clínica psiquiátrica do Esquirol, com o auxílio de Blainville. Mais tarde, no “Prefácio pessoal” do v. 6 do Sistema de filosofia positiva, de 1842, Augusto Comte observaria que essa crise por si só se resolveria naturalmente, caso o tratamento dispensado fosse o cuidado físico e a proteção moral; mas tanto o tratamento físico quanto os remédios aplicados por Esquirol e o ambiente alienado de sua clínica mantiveram e agravaram seu estado alterado.
Enfim, essa internação foi mantida em sigilo, para evitar prejudicar a reputação de Augusto Comte, de modo que nem a família Comte em Montpellier sabia do ocorrido. Mas o pai de Carolina escreveu uma carta à família Comte descrevendo o ocorrido; essa carta chegou em 17.5.1826: no dia seguinte Rosália partiu rumo a Paris, apesar da dureza e da duração da viagem e apesar de ter, à época, 62 anos e uma saúde mais ou menos frágil.
Sendo católica e detestando Carolina Massin, as primeiras ações de Rosália em Paris foram no sentido de tentar tirar Augusto Comte do Esquirol e ou levá-lo para Montpellier ou interná-lo em alguma instituição católica. Como ambas essas iniciativas falharam, ela tentou em seguida realizar uma “intervenção” judicial, em que Augusto Comte seria tutelado por seu pai e residiria em Montpellier: uma reunião para essa intervenção realmente ocorreu, em 15.6.1826, mas, em face do estado do doente, foi necessária uma nova reunião subseqüente, que foi obstada por Carolina. A participação de Carolina em ambos os episódios foi depois considerada por Augusto Comte como a única ação verdadeiramente digna da moça.
A partir daí, Rosália e Carolina mais ou menos fizeram as pazes em prol do restabelecimento de Augusto Comte. Rosália só conseguiu autorização de Esquirol para ver o filho em 15.9.1826; em todo caso, Rosália ia à clínica todos os dias. Com a persistência do problema – e considerando os altos custos da clínica –, decidiu-se que seria melhor tirar Augusto Comte de lá, talvez para levá-lo a Montpellier; em 2.12.1826 ele voltou para o lar conjugal, onde, por insistência de Rosália e graças à intermediação do padre Lammenais, realizou-se imediatamente uma cerimônia católica de casamento, apesar de Augusto Comte não estar nas mínimas condições de participar dela. Após isso, Rosália partiu de Paris; reinstalado em sua casa, em um ambiente mais sadio, aos poucos ele recuperou sua normalidade. (Apesar disso, ao longo de 1827 ele manteve-se tenso e suscetível; assim, em abril desse ano ele tentou o suicídio no rio Seno, durante o dia. Salvo por um guarda real, envergonhado por sua ação, ele tomou a decisão de buscar ativamente o restabelecimento.)
Em agosto de 1828 Augusto Comte publicou o oitavo e último dos seus “opúsculos de juventude”, o exame do livro de Broussais sobre a irritação e a loucura. Por fim, em 4.1.1829, dois anos e meio após o início da primeira exposição oral do “Curso de filosofia positiva”, Augusto Comte reiniciou, desde a primeira lição, o curso.
Enfim: após a saída de Augusto Comte da clínica de Esquirol e a cerimônia católica de casamento, Rosália voltou a Montpellier; ela nunca mais veria o filho e este, desde 1825 (após o casamento com Carolina), nunca mais viu a mãe em condições de plena sanidade. Ainda assim, ao longo do primeiro semestre de 1827, ela enviou-lhe regularmente pequenas economias, para ajudar Augusto Comte.
Quando Rosália faleceu em 1837, Augusto Comte aproveitou as viagens que ele fazia pelo Centro-Sul da França como examinador da Escola Politécnica para ir a Montpellier e visitar a família, hospedando-se na casa dos pais. Foi então que afirmou a importância da mãe em sua infância e em seu caráter; da mesma forma, a partir daí reconheceu – e lamentou – a relativa pouca influência que ela teve sobre ele, devida em parte ao sistema educacional de que participou, em parte devido ao que ele desejava para sua vida.
As limitações nas relações com sua mãe foram parcialmente corrigidas, e acima de tudo foram valorizadas e cultuadas, durante a carreira religiosa de Augusto Comte:
1) com o reconhecimento e com o lamento, no “prefácio” ao v. 1 do Sistema de política positiva, da sua falta de ternura para com sua mãe;
2) no Catecismo positivista, com a instituição dos “anjos da guarda”, em particular com os três anjos particulares de Augusto Comte: Clotilde, Rosália e Sofia;
3) com a previsão de dedicatória dos dois volumes da Moral positiva (volumes 2 e 3 da Síntese subjetiva, dedicados respectivamente à Moral Teórica e à Moral Prática) a Rosália;
4) com as suas preces cotidianas sendo dirigidas principalmente a Clotilde, mas também a Rosália e a Sofia;
5) com a sua planejada inumação entre seus três anjos da guarda.
No velório de Augusto Comte, de 5 para 8 de setembro de 1857, lia-se a seguinte inscrição no caixão: “À la digne mère d’Auguste Comte, Rosalie Boyer, née le 28 janvier 1764, à Jonquières (Hérault), et dècèdée le 3 mars 1837, à Montpellier”[2].
Rosália teve seus defeitos e, por vezes, agiu de maneira que não foi valorizada por Augusto Comte. Apesar disso – e essa restrição, o “apesar disso”, é central para nós –, ela foi uma pessoa que se preocupou, ao longo de toda a sua vida, com seus filhos e com sua família, mesmo que à distância; assim, literalmente, ela foi um anjo da guarda para Augusto Comte. Isso representa bem em que consiste a idealização proposta pelo Positivismo, ou melhor, pela Religião da Humanidade, especialmente no caso das mulheres: a dedicação com vistas ao aperfeiçoamento moral dos seres humanos.
Alto-relevo de Rosália no Cemitério
Père-Lachaise, em Paris[3]
“Rosália Boyer, mãe de Augusto Comte,
votando seu filho à regeneração social” (Eduardo de Sá, IPB, Rio de Janeiro)[4]
“Augusto Comte refletindo sob a inspiração
de seus anjos da guarda” (Antônio Etex, 1853?)
[1] Vale notar que as opiniões da autora são expostas ao mesmo tempo em que ela cita – mas não reproduz! – centenas de documentos, muitos dos quais inéditos; assim, os leitores temos pura e simplesmente que confiar na autoridade da autora. Inversamente, postura bem diversa foi adotada pelos positivistas: Miguel Lemos e Teixeira Mendes citavam extensa e profusamente Augusto Comte, tanto em português quanto em francês; da mesma forma, o dr. Robinet incluía em seus livros centenas de páginas de “peças justificativas”: com isso, qualquer leitor podia, como pode, avaliar as opiniões dos autores e historiadores a partir do cotejo direto com as personalidades citadas. Isso é precisamente o que o historiador paranaense Denisson de Oliveira chama de “história hipertextual”.
[2] “À digna mãe de Augusto Comte, Rosália Boyer, nascida em 28 de janeiro de 1764, em Jonquières (Hérault), e falecida em 3 de março de 1837, em Montpellier”.
[3] Fonte: Amiset Passionnés du Père-Lachaise. Doação do positivista brasileiro, o Almirante Henrique Batista da Silva Oliveira.
[4] Fonte: Raimundo Teixeira Mendes, Comte et Clotilde.