26 dezembro 2023

Elementos da teoria positiva da arte

No dia 24 de Bichat de 169 (26.12.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência, dedicada ao conjunto do regime positivo.

Na parte do sermão abordamos elementos da teoria positiva da arte.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/vyxnD) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/yKNay). O sermão começou em 53 min 50 s.

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Elementos da teoria positiva da arte 

-        O Positivismo afirma com todas as letras a importância da subjetividade

o   Por exemplo, bastante pensarmos na centralidade do “método subjetivo”

-        A subjetividade no Positivismo assume vários âmbitos:

o   Por um lado, ela tem uma possibilidade social (é basicamente nesse sentido que falamos da “síntese subjetiva” e que fundamenta a moralidade positiva) e uma possibilidade individual (que é estudada pela ciência da Moral e modificada pelo culto positivo e pelas técnicas associadas à Moral)

o   Por outro lado, a subjetividade pode ser entendida como a afetividade (ou sentimentos, ou amor, ou altruísmo) e/ou como a inteligência, cada uma das quais tem suas próprias leis

-        Da mesma forma, Augusto Comte concentra-se na sistematização e na regularização do que é verdadeiro, do que é bom e do que é belo

o   Todos esses âmbitos são ordenados e regularizados pela moral, que se mantém suprema sobre todos eles

o   Eis como esses âmbitos relacionam-se com as grandes produções humanas:

§  O verdadeiro é investigado pela filosofia, a partir das bases científicas

§  O que é bom é desenvolvido pela política e aplicado pela indústria

§  O que é belo é elaborado pela arte

o   Por “artes” entendemos as “belas-artes”

§  Essa observação é necessária para distinguir as “belas-artes” das chamadas “artes práticas”, cujo âmbito é o da indústria e que consiste em todas as aplicações práticas dos conhecimentos científicos

-        Os livros de Augusto Comte, bem como dos positivistas, desenvolvem longamente as questões relativas à verdade e ao bom, dedicando-se menos a respeito do belo, cuja importância, entretanto, não apenas não é negada como é todo momento exaltada

o   Há uma certa deficiência em relação ao belo e à poesia e, não por acaso, também em relação ao culto positivo e à liturgia positiva

-        Augusto Comte trata da arte em dois momentos principais:

o   No capítulo quatro do Discurso (preliminar) sobre o conjunto do Positivismo, intitulado “Aptidão estética do Positivismo”; esse livro foi originalmente publicado em 1848 e depois, em 1851, inserido com alterações tópicas como introdução geral ao volume primeiro do Sistema de política positiva; esse capítulo tem 46 páginas

o   No capítulo quarto do volume segundo do Sistema de política positiva, intitulado “Teoria positiva da linguagem humana” e publicado em 1852; a teoria da arte é reapresentada e desenvolvida em meio às reflexões sobre a linguagem; esse capítulo também tem 46 páginas

o   Além desses dois capítulos, há reflexões feitas de passagem sobre as artes, as produções artísticas e os gênios artísticos em todos os capítulos que Augusto Comte escreveu, em particular em sua fase religiosa e em particular quando aborda o culto positivo, em seus inúmeros aspectos

-        Neste sermão abordaremos apenas alguns aspectos da teoria positiva da arte

o   Nos dois capítulos indicados acima, como sempre acontece, as reflexões desenvolvidas por Augusto Comte são densas e conjugam aspectos artísticos, filosóficos, morais e sociológicos

§  Dessa forma, o que exporemos aqui é bastante elementar, mesmo quase superficial

o   Adicionalmente, devemos notar que, pessoalmente, nossa atenção sempre se voltou para questões políticas, sociológicas, filosóficas, científicas e epistemológicas

§  Em outras palavras, pessoal e lamentavelmente, ao longo de nossa carreira profissional não nos concentramos tanto nos aspectos mais diretamente artísticos do Positivismo

-        Três aspectos elementares sobre as artes:

o   Antes de mais nada, as artes (como as linguagens) atuam no sentido de passar para fora o que existe no interior do ser humano

§  Enquanto as linguagens realizam essa tarefa a respeito de tudo o que existe no interior do ser humano (isto é, da subjetividade individual), as artes externalizam em particular os sentimentos

o   Em segundo lugar, a arte integra a subjetividade, mas seu âmbito é diferente daqueles já apresentados (os sentimentos e a inteligência): trata-se da imaginação

§  O Positivismo regula a imaginação, da mesma forma que regula os sentimentos e a inteligência

§  Mas, à parte a arrogância e a secura próprias à inteligência, o fato é que a imaginação exige ainda mais a regulação

o   Em terceiro lugar, o ser humano historicamente é antes artístico que filosófico ou industrial

§  Para Augusto Comte, a linguagem humana é inicialmente cantada, assim como as representações de objetos são todas elas artísticas

-        Para regularizar as artes – e também a imaginação –, Augusto Comte estabelece os seguintes princípios, metas e objetivos:

o   A função da arte é idealizar a realidade para realizar o aperfeiçoamento moral do ser humano

§  Sendo repetitivo, é necessário reiterar: o objetivo da arte é permitir o aperfeiçoamento humano, a partir das idealizações

·         Elaborações degradantes, meramente humilhantes, estimuladoras do ódio etc.: nada disso merece o título de “artísticas” e devem ser desprezadas

·         O objetivo da arte não é estimular os sentidos, nem meramente estimular quaisquer sentimentos, nem ser sistematicamente “crítica”

§  As idealizações artísticas devem estimular os bons sentimentos; mas isso não necessariamente significa retratar apenas os bons sentimentos:

·         Por exemplo, as peças de Shakespeare retratam a inveja, o ciúme, a burrice, a tristeza, a mesquinhez (Otelo; Ricardo III; Rei Lear; Macbeth; Hamlet) – e claramente aprendemos que tudo isso é ruim, errado ou, pelo menos, que deve ser evitado

·         Outro exemplo: as peças de Ésquilo e de Sófocles apresentam grandes valores humanos, a partir de dramas intensos, sacrifícios etc. (Prometeu acorrentado; Sete contra Tebas; Édipo-rei)

o   A idealização da realidade dá-se com base nos resultados indicados pela ciência e pela moral e por meio do aumento de alguns traços, positivos (com a concomitante supressão ou diminuição de outros traços, negativos)

§  Não por acaso, essa regra é a mesma empregada no culto íntimo, com as orações positivistas

§  Essas modificações evidenciam que a arte baseia-se necessariamente em procedimentos de abstração

o   Assim, a arte (e, de modo geral, a imaginação) deve respeitar a realidade – embora não de maneira servil

o   Além dessas indicações específicas para a imaginação e para a arte, há inúmeras outras orientações para a harmonia mental em toda a obra de Comte, em particular sumariadas nas 15 leis de filosofia primeira

o   Vale a pena lembrar que as elaborações científicas também consistem em idealizações: mas são idealizações da realidade, não dos sentimentos

-        Augusto Comte considera que há três passos na elaboração artística:

o   (1) a imitação, (2) a idealização, (3) a expressão

o   A imitação consiste em reproduzir o que já existe, seja em termos da realidade, seja em termos da produção artística já existente

§  Para Comte, embora o verdadeiro poeta seja sempre inovador, não se deve levar demasiadamente a sério as preocupações com a imitação, pois todos sempre imitam em algum grau

o   A idealização é a elaboração mental, ao mesmo tempo afetiva e intelectual; assim, ela é puramente interna, isto é, subjetiva

o   A expressão é o passo em que a obra de arte efetivamente toma corpo, a partir da idealização subjetiva; em outras palavras, é a parte objetiva da produção artística

-        A partir dos princípios de classificação (generalidade decrescente, particularidade crescente), Augusto Comte classifica as artes da seguinte maneira:

o   (1) Poesia, (2) Música, (3) Pintura, (4) Escultura, (5) Arquitetura

§  Como se vê, para Comte as artes fundamentais são cinco, que vão da mais geral para a mais técnica

§  A poesia é a arte mais geral, que fundamenta e orienta todas as demais

o   Essas artes são as artes fundamentais; outras modalidades de arte são derivações (ou extensões) ou combinações dessas cinco

§  Alguns exemplos:

·         O teatro é uma extensão da poesia

·         A ópera – que era uma preferência pessoal de Augusto Comte – é uma combinação da poesia e da música (e da pintura)

·         A dança é uma combinação da música e da escultura (e, antes, da poesia)

-        Como comentamos na prédica da semana passada (em que abordamos o progresso e a esperança em face do cinismo atual), atualmente é imperativo revalorizarmos as utopias

o   Para Augusto Comte, as utopias são uma verdadeira expressão poética moderna

o   As utopias devem orientar-se para o futuro, sem que, todavia, os artistas positivistas ignorem a idealização do passado (e mesmo do presente)

o   Para Comte, as utopias antecipam em cerca de dois séculos os programas políticos a serem aplicados

§  Evidentemente, para revalorizarmos as utopias, devemos revalorizar (pelo menos de maneira sincera e explícita) a noção de progresso e passar a desprezar sistematicamente as degradantes “distopias”, que são produções do século XX e particularmente apoiadas pela “indústria cultural”

§  A rejeição das distopias na verdade integra uma recomendação mais geral de Augusto Comte, no sentido de que, para bem apreciarmos as (boas) obras de arte, é necessário rejeitarmos as mediocridades artísticas

o   As utopias têm um aspecto suplementar inaudito em termos políticos e sociológicos:

§  Na medida em que as previsões sociológicas apresentam um caráter geral, os seus detalhes específicos ficam faltando – e é aí que as utopias desempenham um papel central, ao apresentar e completar os detalhes

§  Deveria ser evidente – mas o cinismo moral e a metafísica intelectual característicos de nossa época e de nossa civilização impedem que seja de fato evidente – que esse a complementação das previsões sociológicas pelas utopias deve ocorrer sempre estimulando o altruísmo e os bons sentimentos

o   Em certo sentido, podemos dizer que os artistas positivistas são sistematicamente utópicos

§  Assim, em termos literários, o Positivismo aproxima-se do romantismo e mesmo do classicismo

·         Todavia, “teóricos” e historiadores da literatura acham-se autorizados, a partir de uma certa coincidência temporal, meramente cronológica, a afirmar que o Positivismo seria representado ou afirmado nas escolas literárias realista e/ou naturalista, com o cinismo, o ceticismo, o pessimismo, o darwinismo social, a degradação moral e social etc. tão próprios a essas escolas

o   É claro que essa aproximação só é possível com base em procedimentos preguiçosos, molengas e preconceituosos

§  Muito longe de esgotar os nomes possíveis, podemos indicar como grandes poetas positivistas brasileiros[1]:

·         José Mariano da Silveira, Montenegro Cordeiro, José Martins Fontes, Edgar Proença Rosa, Branca Dulcina Bagueira Sampaio, Paulo de Tarso Monte Serrat

§  Muito longe de esgotar os nomes possíveis, podemos indicar como grandes pintores e escultores positivistas brasileiros:

·         Demétrio Ribeiro, Eduardo de Sá

-        Os sacerdotes da Humanidade devem todos ser bastante sensíveis às artes e, na medida do possível, também devem ser artistas

o   A apreciação artística tem um caráter passivo, evidentemente, ao contrário da produção artística

o   A sensibilidade artística dos sacerdotes da Humanidade – nos termos indicados aqui, é claro – tornar-nos-á plenamente superiores aos sacerdotes teológicos (em particular monoteístas)

-        Assim como os sacerdotes da Humanidade devem manter-se cuidadosamente afastados do poder Temporal (pois constituem o poder Espiritual), os artistas também devem ficar longe do poder

o   Os artistas são integrantes assessórios do poder Espiritual

o   Na verdade, a vedação de integrar o poder Temporal deve ser muito mais rígida no caso dos artistas, devido à sua relação mais frágil com a realidade e com os requisitos morais do poder Espiritual

o   Assim, os artistas subordinam-se moral e intelectual ao sacerdócio, ou seja, aos filósofos positivos



[1] Uma relação mais completa (mas, certamente, também incompleta) é sempre o livro de Ivan Lins, História do Positivismo no Brasil.

Augusto Comte: triplo ofício da arte e resumo da teoria positivista da arte


“A principal função da arte consiste sempre em construir os tipos de que a ciência fornece as bases. Ora, essa operação é sobretudo indispensável para a inauguração do novo regime. Quando a filosofia tiver elaborado suficientemente as suas diversas concepções essenciais, elas permanecerão ainda demasiadamente indeterminadas para bastarem ao seu destino prático. Afinal, o estudo sistemático do passado não pode fornecer-nos diretamente senão o caráter geral do porvir. Mesmo a respeito dos menores fenômenos, a determinação científica não poderia tornar-se completa sem ultrapassar os limites próprios à verdadeira demonstração. Nas pesquisas sociológicas, seus resultados devem então se manter mais abaixo do grau de plenitude, de clareza e de precisão que exigem noções destinadas à mais familiar universalidade. É então à poesia que convém preencher as inevitáveis lacunas da filosofia para inspirar a política. No começo do politeísmo, ela já realizou esse ofício natural em relação às criações imperfeitas da teologia sistemática. Pertence-lhe ainda mais completar uma apreciação objetiva em que a imaginação participa menos. Na conclusão geral deste discurso[1], eu indicarei mais essa indispensável função poética no tema da concepção central do Positivismo. O leitor poderá desde então estender a mesma explicação a todos os outros casos principais.

Para cumprir esse grande ofício, a arte positivista encontrar-se-á naturalmente conduzida a oferecer-nos quadros antecipados da regeneração humana, apreciada sob todos os aspectos suscetíveis de idealização. Essa será sua segunda cooperação geral para o impulso renovador, ao desenvolver sua participação inicial. No fundo, esse novo ofício reduz-se a regularizar as utopias, subordinando sempre a idealidade à realidade, como em toda outra composição poética. A liberdade especulativa que parece proporcionar-lhe a anarquia atual acaba restringindo bastante seu desenvolvimento efetivo, conforme os medos de divagação que ela inspira mesmo aos mais sonhadores, cujos espíritos não poderiam tornar-se insensíveis às necessidades comuns de harmonia mental. Mas, quando o domínio da imaginação limita-se em desenvolver e vivificar o da razão, os mais austeros pensadores sofrem de bom grado um encanto que, longe de alterar a realidade, não faz senão melhor sobressair sua principal característica, bem pouco determinada pela ciência. Assim, ao assinalar às utopias sua verdadeira destinação, o Positivismo estimulará bastante esse gênero moderno de composições poéticas, que, sob a inspiração sociológica, pode tanto concorrer para impulsionar o conjunto do povo ocidental em direção ao estado normal da humanidade. Os cinco modos estéticos[2] participarão todos desse salutar impulso, ao fazer-nos apreciar, antecipadamente, conforme a idealização própria a cada um deles, os encantos e a grandeza da nova existência, pessoal, doméstica e social.

Essa segunda assistência geral da arte na grande reconstrução suscitará naturalmente uma terceira, cuja necessidade não é menor hoje, para terminar de livrar [détacher] os ocidentais dos vãos destroços do passado que impedem de sentir o futuro. Bastará dar uma direção comparativa aos quadros antecipados que venho indicando. Depois do início da transição moderna, no século XIV, a arte é sobretudo desenvolvida sob uma intenção crítica[3], que entretanto convém pouco à sua natureza eminentemente sintética. Seu desenvolvimento orgânico pode então conciliar-se plenamente com a luta secundária que exige ainda a situação atual em relação às opiniões, e sobretudo os hábitos, que permanecem do regime caído ou da fase transitória. Essa comoção complementar, relativa às mais íntimas raízes do passado, alterará tanto menos a grande missão da arte positivista que ela realizar-se-á sem jamais exigir uma crítica direta. Nem em relação à teologia, nem somente quanto à metafísica, não termos doravante necessidade de nenhuma discussão, mesmo filosófica, e, com mais forte razão, poética. Tudo reduz-se agora a uma simples concorrência, o mais freqüentemente implícita, entre os modos opostos segundo os quais o catolicismo e os positivistas correspondem às mesmas necessidades morais e sociais. Ora, esse ofício assessório, cujas bases científicas já foram postas, é sobretudo da alçada da arte, pois que ele deve dirigir-se mais ao sentimento que à razão. Eu já indiquei o seu caso mais característico, no fim da quarta parte[4], para a nobre cooperação que reservava à minha santa colega[5] em relação à iniciação positivista de nossas duas populações meridionais[6], principalmente devida à intervenção estética das mulheres.

Nessa terceira função social, a nova poesia religará diretamente sua missão atual ao seu ofício final, ao idealizar o passado, como esta última o futuro. Afinal, o advento do Positivismo exige, a todos os respeitos, uma escrupulosa justiça em relação ao catolicismo. Longe de atenuar o mérito moral e político do regime próprio à Idade Média, a poesia, guiada pela filosofia, deverá inicialmente o glorificar dignamente, a fim de melhor caracterizar a superioridade necessária da ordem final. Ela constituirá, assim, o prelúdio de seu dever normal de reanimar o passado, cujo vínculo natural com o futuro deve tornar-se profundamente familiar, no interesse simultâneo da razão sistemática e do sentimento social.

Ainda que próximo, esse triplo ofício, por meio do qual a arte positivista inaugurará sua incorporação à ordem final, não poderá ser imediato, pois ele exige uma preparação filosófica que não foi ainda realizada, nem pelo público ocidental, nem por seus órgãos estéticos. A geração pacífica que começa, na França, a segunda parte da grande revolução, pode fazer livremente prevalecer o Positivismo, não somente entre os verdadeiros pensadores, mas também entre o povo parisiense encarregado dos comuns destinos do Ocidente, e mesmo entre as mulheres melhor dispostas. Elevada por esse impulso, a geração seguinte poderá então, antes do fim do século iniciado pela Convenção[7], completar espontaneamente essa inauguração mental e moral ao manifestar o novo caráter estético da humanidade regenerada.

 

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O conjunto desta quinta e última[8] parte representa diretamente a filosofia positiva como mais favorável que qualquer outra ao desenvolvimento contínuo de todas as belas-artes. Uma doutrina que chama a humanidade ao aperfeiçoamento universal deveria incorporar-se profundamente a especulações as mais próprias a desenvolver o nosso instinto da perfeição. Ela não os subordina ao estudo sistemático da realidade senão para fornecer à idealidade uma base objetiva, indispensável à sua consistência e à sua dignidade. Mas, assim constituídas, as funções estéticas convêm mais que as funções científicas, seja à natureza e ao alcance da nossa inteligência, seja sobretudo ao seu destino essencial, a organização da natureza humana; pois elas referem-se imediatamente ao princípio afetivo dessa sistematização. Após a cultura direta do sentimento, é a arte que pode habitualmente fornecer os melhores meios para tornar-nos ao mesmo tempo mais ternos e mais nobres.

Sua reação lógica deve mesmo aperfeiçoar nossa aptidão sistemática, ao familiarizar-nos cedo com as verdadeiras características de toda construção humana. A ciência pôde durante longo tempo preferir o regime analítico; ao passo que, mesmo em meio à sua anarquia, a arte visa sempre à síntese, objetivo necessário de todas as nossas contemplações. Quando, contra a sua natureza, ele trabalha para destruir, sua obra qualquer não se realiza ainda senão construindo. O gosto e o hábito das construções estéticas devem assim nos dispor a melhor construir sobre o solo mais refratário da realidade.

Por todos esses títulos, a arte, dirigida pelo sentimento, torna-se, para o Positivismo, a principal base da educação universal, em que a ciência não preside em seguida senão a uma indispensável sistematização objetiva. A vida ativa completa essa preponderância inicial ao imprimir um caráter mais estético que científico às funções regulares do poder moderador[9]. Os três elementos necessários da força moral[10] tornam-se assim os órgãos espontâneos da idealização, doravante inseparável da sistematização.

Uma tal fusão obriga os novos filósofos a sentir profundamente todas as belas-artes. Ainda que habitualmente passiva, essa aptidão deverá poder elevar-se, entre os principais dentre eles, à mais sublime atividade, nas idades de intermitência filosófica e de vivacidade poética. Sem esse difícil complemento, seu ofício não poderia obter o livre ascendente moral que comporta sua natureza e que exige sua destinação. O padre da Humanidade não desenvolverá sua superioridade necessária sobre o padre de Deus senão quando sua razão sistemática combinar-se dignamente com o entusiasmo do poeta comum como com a simpatia feminina e a energia proletária.”

 

Fonte: Augusto Comte. 1929. Aptitude estéthique du Positivisme. In: _____. Discours préliminaire sur l’ensemble du Positivisme[11]. 5e ed. Paris: Société Positiviste, p. 315-320. Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda.



[1] A referência é ao Discurso sobre o conjunto do Positivismo, de que o presente trecho integra o capítulo quinto e antepenúltimo. (Nota do tradutor.)

[2] Os cinco modos estéticos são, conforme o princípio de classificação (generalidade decrescente, particularidade crescente): poesia, música, pintura, escultura e arquitetura. (NT.)

[3] A palavra “crítica” é usada aqui no sentido de “destruidora”, “corrosiva”, conforme o sentido da “metafísica” para Augusto Comte. A esse respeito, cf. Gustavo Biscaia de Lacerda, “O Positivismo e o conceito de ‘metafísica’” (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2011/03/o-positivismo-e-o-conceito-de.html).

[4] Referência ao capítulo quarto do Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo, intitulado “Influência feminina do Positivismo”.

Talvez valha a pena indicarmos os títulos dos capítulos desse livro em sua edição de 1851, que é um verdadeiro “manifesto positivista” e uma exposição geral da doutrina e da religião:

- Preâmbulo geral

- Primeira parte: espírito fundamental do Positivismo

- Segunda parte: destinação social do Positivismo [, conforme sua conexão necessária com o conjunto da grande revolução ocidental]

- Terceira parte: eficácia popular do Positivismo

- Quarta parte: influência feminina do Positivismo

- Quinta parte: aptidão estética do Positivismo

- Conclusão geral do discurso preliminar [do discurso sobre o conjunto]: Religião da Humanidade

Os trechos entre colchetes referem-se aos subtítulos presentes na versão original do livro, publicada em 1848. (NT.)

[5] Referência a Clotilde de Vaux (1815-1846). (NT.)

[6] Referência à Espanha (e Portugal) e à Itália. (NT.)

[7] Referência à Convenção Nacional, fase da Revolução Francesa vigente entre 1792 e 1795, durante a qual, para Augusto Comte, após os momentos decisivamente destruidores do Antigo Regime próprios à Assembléia Nacional (1789-1792), desenvolveram-se os episódios mais progressistas da Revolução, em particular sob a liderança de Georges Danton (1759-1794). Evidentemente, o “século iniciado pela Convenção” é o século XIX. Sobre a avaliação positivista da Revolução Francesa e sobre o conceito de “estado normal”, bem como, de modo geral, para a filosofia positivista da história, cf. Augusto Comte, Catecismo positivista (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1934) e Apelo aos conservadores (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1899), além de Gustavo Biscaia de Lacerda, O momento comtiano (Curitiba, UFPR, 2019). (NT.)

[8] Augusto Comte refere-se ao capítulo quinto como sendo o “último”: é o último antes do capítulo final, intitulado “Conclusão geral” (e que, aliás, apresenta pela primeira vez os conceitos de “Humanidade” e de “religião da Humanidade”). (NT.)

[9] Referência ao poder Espiritual, que modifica a conduta de indivíduos e grupos via aconselhamento; ele contrapõe-se de maneira complementar ao poder Temporal, que modifica a conduta de indivíduos e grupos via coerção. Para mais detalhes, cf. os já citados Augusto Comte, Catecismo positivista e Apelo aos conservadores, além de Gustavo Lacerda, O momento comtiano. (NT.)

[10] Os três elementos componentes da força moral (isto é, do poder Espiritual) são: o sacerdócio, de caráter intelectual; o proletariado, de caráter prático; as mulheres, de caráter afetivo. Eles são abordados respectivamente nos capítulos dois, três e quatro do Discurso sobre o conjunto do Positivismo. (NT.)

[11] O Discurso sobre o conjunto do Positivismo foi originalmente publicado em 1848 e, com alterações tópicas, inserido em 1851 como apresentação geral do volume primeiro do Sistema de política positiva. (NT.)

19 dezembro 2023

Progresso versus cinismo

No dia 17 de Bichat de 169 (19.12.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência (dedicada ao conjunto do regime positivo).

No sermão abordamos a oposição entre a esperança vinculada ao progresso e o cinismo atual, buscando responder a uma questão ao mesmo tempo moral, intelectual, sociológica e histórica: como é que se passou da nobre e elevada esperança no aperfeiçoamento humano, vigente no século XIX, para o cinismo atual?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/W1qy7) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/6rird). O sermão começou em 1h.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

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Progresso versus cinismo  

-        Hoje em dia, no início do século XXI, quando lemos Augusto Comte e os demais positivistas que escreviam no século XIX e início do século XX, dois aspectos surgem com grande clareza:

o   Por um lado, uma grande esperança no ser humano, no aperfeiçoamento das condições da humanidade (materiais, físicas, intelectuais e morais); essa esperança era sintetizada na noção de “progresso”

o   Por outro lado, seguindo o espírito da nossa época, quase instintivamente temos a impressão de que essa esperança mantida no século XIX era “ingênua”, da mesma forma que consideramos que seria mais “correta” uma perspectiva mais ressabiada, ou melhor, mais cínica

o   Entretanto, não há motivo nenhum para seguirmos o atual espírito da época e considerarmos que a esperança e o progresso do século XIX são ingênuos e, daí, desprezíveis

-        A respeito da esperança e do progresso afirmados pela Religião da Humanidade:

o   Afirmam a afetividade humana, o altruísmo, a possibilidade e a necessidade de conhecimento científico da realidade e do ser humano;

§  Afirmam esses conhecimentos a partir do relativismo e do historicismo, valorizando sempre a subjetividade humana

o   Também estabelecem um critério geral de moralidade (o estímulo ao altruísmo e a compressão do egoísmo), que ultrapassa o individualismo egoístico próprio às teologias e às suas metafísicas derivadas e que afirma a noção de dever acima da de direito

o   Afirmam que a paz, a fraternidade, o altruísmo, a colaboração surgem necessariamente da evolução histórica

§  Esses traços, de qualquer maneira, correspondem a tendências gerais, comportando variações e flutuações ao longo do tempo

§  Assim, não há motivo para supor que essas variações e flutuações correspondam à negação do progresso

o   Como observava Augusto Comte, o progresso é mais subjetivo que a ordem (ou seja, é mais diretamente relativa à realidade humana) e abarca aperfeiçoamentos em diversos âmbitos: material, físico, intelectual e, acima de tudo, moral

-        É importante considerarmos o que aconteceu nesse período, isto é, entre meados do século XIX e este início do século XXI:

o   Em termos afetivos, houve o seguinte:

§  Antes de mais nada, houve a fundação da Religião da Humanidade entre o final da década de 1840 e meados da de 1850, sistematizando tendências amplas e gerais da humanidade e fortalecendo laços fraternos e altruístas entre povos, classes e grupos variados sobre bases reais

§  O desenvolvimento simultâneo de perspectivas internacionalistas e particularistas, às vezes com sobreposição, às vezes com distanciamento entre elas:

·         O internacionalismo é a afirmação de perspectivas internacionais, de concórdia entre nações (às vezes, equivocadamente, de fim das nações)

·         Os particularismos assumiram formas variadas:

o   Os nacionalismos, às vezes xenofóbicos, mas inicialmente como movimentos de afirmação das nações contra os grandes impérios coloniais,

o   A perspectiva de classe, especialmente do proletariado, contra a burguesia e contra o capital

§  Por vezes o particularismo de classe manifestou-se contra as nações, mas muitas vezes ele foi a favor de nações proletárias

§  Em todo caso, com gigantesca freqüência, o particularismo proletário serviu de apoio, mesmo de desculpa, para movimentos de independência nacional

o   Houve formas especialmente mesquinhas e agressivas de particularismos sobre outras bases, como no caso dos racismos antissemita e de vários outros

·         Citamos aqui os particularismos negativos porque eles tiveram uma terrível importância durante 30 anos no século XX

o   Indiretamente, esses particularismos negativos serviram para evidenciar que eles, na medida em que são particularismos, não servem para fundar sociabilidades maiores, que são as sociabilidades próprias à sociedade pacífica e industrial

o   Em termos intelectuais, podemos indicar o seguinte:

§  Antes de mais nada, houve a fundação da Religião da Humanidade, sistematizando o conhecimento humano e permitindo e realizando a regularização e a moralização desses conhecimentos (ciência, filosofia, religião, arte, atividades práticas) em bases reais, humanas e relativas

§  Apesar desse importante acontecimento, a ciência continuou com seu impulso absoluto, indiferente à sua destinação humana

§  Ao mesmo tempo, tendências metafísicas particularistas ganharam espaço:

·         A psicanálise de Freud baseou-se no misticismo e na metafísica alemãs para tentar explicar a subjetividade humana, mas, além dos danos mentais causados em si pela metafísica, as noções de pansexualismo e de inconsciente estimularam, como estimulam, a desconfiança no ser humano

·         O marxismo, com suas infinitas correntes propositalmente “críticas”, estimulou (como estimula) o ódio entre as classes e os países e, daí, considera que tudo o que não é “proletário” é vil, enganador, mentiroso; além disso, a equívoca noção de “materialismo histórico” nega a realidade da moralidade

o   O marxismo é ambíguo a respeito da natureza humana: genericamente o ser humano é bom, mas só após a revolução comunista essa bondade manifestar-se-á

o   As desconfianças, o padrão crítico, o grande esquema histórico baseado na luta de classes: isso e muito mais serve de exemplo permanente para outros movimentos metafísicos e críticos, como o identitarismo negro de origem estadunidense e, ainda mais, o identitarismo feminista

·         Concepções irracionalistas, por vezes mais próximas da poesia e do misticismo que da ciência e da filosofia (como Nietzsche), além de concepções anticientíficas (como as de Bergson e de Max Weber) rejeitaram a possibilidade de estudos científicos do ser humano e de filosofias gerais (e relativistas e humanas) sobre a realidade

o   Muitas dessas concepções irracionalistas (incluindo aí nacionalismos e preconceitos de raça), não por acaso, nega(va)m a paz e estimula(va)m a violência e/ou o culto à violência

o   Em termos práticos, tivemos o seguinte:

§  Além dos amplos, gerais e consistentes esforços dos positivistas em todo o Ocidente em favor da paz, da concórdia, da fraternidade internacional e interna aos países, houve inúmeros movimentos pacifistas, internacionalistas, pela regularização das relações industriais etc.

·         Podemos incluir aí alguns grupos anarquistas, vários movimentos socialistas e mesmo alguns movimentos teológicos sensíveis às condições de vida dos trabalhadores e das sociedades modernas

·         Os nacionalismos de independência, de modo geral, também atuaram no sentido de melhorar as condições de vida, ao afirmarem o respeito às particularidades culturais locais

§  Ocorreu também a difusão do republicanismo, ou seja, da perspectiva humana e meritocrática na política, incluindo aí o estabelecimento da separação entre igreja e Estado

§  Uma prática internacional baseada na diplomacia de segredos (Bismarck) e da corrida colonial de prestígio

§  Afirmação de certos hábitos mentais e práticos burguesocráticos

o   Em suma: ao longo do século XIX tivemos grandes e importantes desenvolvimentos da Humanidade, ou seja, na direção da positividade, ao mesmo tempo que tendências metafísicas, críticas e destruidoras mantiveram seus ímpetos

o   O grande período de clivagem é a I Guerra Mundial (1914-1919), ou melhor, a II Guerra dos 30 Anos (1914-1945)

 

Os trechos abaixo, destacados em caixas, foram omitidos em linhas gerais na exposição oral da prédica, pois alongariam demais essa exposição oral; ainda assim, são observações úteis para a presente reflexão e, portanto, mantêm-se nestas anotações.

§  A II Guerra dos 30 Anos é composta por três fases: I Grande Guerra (1914-1919), Período de Paz Armada (1919-1939) e II Grande Guerra (1939-1945)

§  Para o que nos interessa, os períodos mais importantes são o da I Grande Guerra, que matou gerações de positivistas, e o Período da Paz Armada, que estimulou e deu livre curso às piores tendências negativas anteriores a 1914 (nacionalismo xenofóbico, irracionalismo, culto à violência, preconceitos de raça etc.)

·         A I Guerra apresentou uma dinâmica nova, em que os soldados ficavam meses a fio nas trincheiras, sob a tensão constante dos combates, sujeitos a ataques violentos e muito agressivos

·         Essas tendências, como se sabe, consubstanciaram-se em movimentos sociais como o comunismo (com as Revoluções Russas em 1917), o fascismo (com a Marcha sobre Roma, em 1922), o nazismo (desde 1922, no poder desde 1933) e diversos outros movimentos autoritários (Frente Nacional na França, franquismo na Espanha, Estado Novo em Portugal etc.)

·         Esses movimentos, devido a seus conteúdos, na esteira da violência da I Grande Guerra, puseram em suspeição as liberdades, o ideal de fraternidade etc.

o    O mundo não ficou incólume a isso: no Brasil tivemos a crítica à I República transformando-se em crítica degradante ao republicanismo; houve o elogio mundial ao autoritarismo; o Japão deu livre curso ao seu violento imperialismo no Leste Asiático etc.

·         A II Grande Guerra, além da sua violência própria, deu lugar ao chamado “Holocausto”, com o genocídio praticado em escala e com métodos industriais

-         A II Guerra dos 30 Anos estimulou movimentos irracionalistas, autoritários, genocidas etc.; mas, no final das contas, foi um longo e dolorosíssimo interregno entre aspirações altruístas, fraternas, pacifistas etc.

o    Um pequeno indicador desse caráter de interregno é a constituição da Organização das Nações Unidas logo em seguida ao conflito e cuja fundação foi acertada pelo menos desde o ano anterior ao término da guerra

-         Com o término da II Guerra dos 30 Anos, alguns movimentos positivos voltaram à ação; mas, ao mesmo tempo, elementos críticos também mantiveram seu curso

o    Um pouco do sentimento de esperança vigente antes da II Guerra dos 30 Anos foi recuperado após o conflito: novamente, a fundação da ONU e do sistema ONU é parte disso, assim como outros movimentos que tiveram lugar nas décadas seguintes: o reconhecimento e o repúdio aos crimes do nazismo; o desenvolvimento do Welfare State; o impulso para o desenvolvimento econômico e social; mais importante, a descolonização da África e da Ásia (iniciada em 1947 com a independência da Índia)

o    A Guerra Fria (1947-1991), baseada na disputa entre Estados Unidos e União Soviética, refletindo uma oposição ao mesmo tempo geopolítica e “ideológica”, teve um caráter ambígüo em termos da esperança e do progresso:

§  Por um lado, os países-líderes difundiam a esperança nas próprias perspectivas (limitadas em si mesmas) e degradavam as perspectivas rivais

§  Por outro lado, o aspecto de guerra por procuração entre as superpotências conduziu a uma instabilidade marcada nos países periféricos, que, a partir dos anos 1950, logo se converteu em golpes militares

§  O advento da televisão, da mentalidade “pós-materialista” no Ocidente e de guerras que se tornaram cada vez mais difíceis de serem justificadas (Vietnã para os Estados Unidos, Afeganistão para a União Soviética, mesmo Vietnã para a China) minaram a confiança internacional nas superpotências

o    Alguns outros aspectos podem ser indicados:

§  A reflexão sobre o Holocausto conduziu muitas pessoas a decretarem, pura e simplesmente, que a esperança na Humanidade e que a noção de progresso são ilusões, que devem ser descartadas e substituídas por um severo “realismo” – que, no final das contas e na prática é muito próximo do cinismo

§  Além disso, a partir dos anos 1960 a chamada “contracultura”, que já vinha desde a década anterior, atuou sistematicamente para minar todos os valores do Ocidente, evidenciando o caráter metafísico do seu irracionalismo, do seu amoralismo e da violenta ruptura entre gerações

§  O marxismo manteve sua atuação crítica, por meio de suas inúmeras metamorfoses, pró, anti, cripto ou parassoviéticas, mas todas elas afirmando os aspectos metafísicos dessa filosofia: a luta de classes e a desconfiança social erigida em princípio normativo, a degradação da moral via sua redução a interesses de classes, a rejeição de toda concepção que não seja marxista (ou que não seja da própria seita), o particularismo proletário-marxista – além do culto à violência, presente hipocritamente em Marx e repetido de diversas maneiras em muitas das suas seitas derivadas

-         O fim da Guerra Fria deu novo alento à noção de progresso, mas sua vinculação à metafísica triunfalista do liberalismo dos EUA, somada à crítica metafísica marxista, conduziu a um novo descrédito da noção de progresso e da esperança

-         Nas últimas duas décadas, duas correntes metafísicas têm tido grande sucesso, ambas contrárias à esperança e ao progresso:

o    A metafísica mística do tradicionalismo, altamente retrógrada e vigente, por exemplo, no Leste Europeu e na Rússia

o    A metafísica irracionalista, agressiva e particularista do identitarismo, que se difunde a partir dos Estados Unidos e, graças ao servilismo intelectual próprio às “elites” intelectuais brasileiras, tem tido grande sucesso em nosso país

 

-        A maior parte deste relato foi uma exposição histórica de como a bela idéia do progresso atuou no século XIX e no começo do século XX, mas viu-se combatida e combalida no século XX, com uma seqüência no século XXI

o   Os problemas enfrentados por essa concepção ligam-se, então, a movimentos autoritários, violentos, (ir)racionalistas do começo do século XX, bem como ao impulso irracionalista e crítico de intelectuais, a maior parte dos quais são academicistas

o   Aqui é necessário afirmar com clareza: os hábitos academicistas estimulam a criticidade antiprogressista e antiesperançosa como virtude moral e intelectual, como suposta marca de superioridade intelectual

§  Essa criticidade pode ser vista na metafísica dos marxistas e também na metafísica dos místicos

-        Entretanto, ninguém – ninguém! – vive sem esperança, ao mesmo tempo em que todos – todos! – alimentam noções de progresso

o   A esperança e o progresso são alimentados por todos mesmo que só de maneira implícita, muitas vezes sem que reconheçam (mesmo para si próprios) essas concepções

o   Todos afirmamos a esperança porque todos precisamos considerar que as coisas vão melhorar; assim, essa é uma questão de saúde mental

o   A noção de que as coisas vão melhorar implica, necessariamente, a noção de progresso, isto é, de desenvolvimento e de aperfeiçoamento material, físico, intelectual e moral

o   Só é possível haver progresso a partir das leis naturais, do relativismo, do subjetivismo, do historicismo próprios à Religião da Humanidade

§  Assim, só é possível haver esperança verdadeira nos quadros do Positivismo

-        No século XIX Augusto Comte reconhecia a validade moral, intelectual e mesmo artística das utopias

o   Na verdade, Augusto Comte afirmava mesmo que as utopias são um gênero literário moderno!

o   Nas últimas décadas – talvez desde os anos 1970 – em vez de utopias o que temos são as chamadas “distopias”

o   As “distopias” são idealizações invertidas, em que não se apresentam quadros da boa sociedade, mas das más sociedades

o   As distopias são produzidas por estúdios de cinema e TV que querem ganhar muito dinheiro com a degradação humana e são consumidas avidamente pelo Ocidente e, daí, pelo resto do mundo

§  Deveria ser evidente – mas a indústria cultural finge que não é – que as distopias alimentam o cinismo, a desconfiança, o isolamento, o egoísmo, o irracionalismo, o imoralismo

o   Assim, é necessário – com urgência e convicção – deixarmos de lado as degradantes "distopias", que no final servem apenas para a “indústria cultural capitalista”, e retomarmos as utopias

o   A retomada das utopias vincula-se intimamente à retomada das noções de esperança e de progresso

§  A retomada dessas noções fará bem para a saúde mental de cada um de nós; dará uma destinação social e altruísta clara para cada um nós; permitirá que os urgentes problemas sociais que vivemos sejam solucionados (ou, pelo menos, encaminhados)