No dia 3 de Arquimedes de 169 (28.3.2023) fizemos nossa prédica positiva. Na ocasião demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista (no caso, à sua sexta conferência, dedicada ao conjunto do dogma); em seguida, fizemos nosso sermão sobre o conceito de metafísica.
Antes da leitura comentada, lembramos que no dia 29 de março celebramos o aniversário de nascimento de David Carneiro, um dos maiores positivistas do Paraná e do Brasil (nascido em 1904). Além disso, lamentamos profundamente a violência ocorrida em 27 de março de 2023 em uma escola de São Paulo, em que a Professora Elizabeth Tenreiro foi brutalmente assassinada por um pré-adolescente profundamente perturbado.
As anotações sobre a metafísica que nos serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo. A prédica está disponível nos portais Apostolado Positivista (aqui: l1nk.dev/eVa7i) e Positivismo (aqui: l1nq.com/M1Xml); a exposição sobre a metafísica pode ser vista a partir de 1h 12".
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Comentários sobre a metafísica
- A metafísica é um conceito bastante curioso em relação ao Positivismo: ele é secundário em termos intelectuais e políticos, mas, devido a uma série de fatores, acabou ganhando destaque
o Uma indicação indireta mas eficiente dessa estranha relevância do conceito de metafísica: no meu blogue, o artigo “O Positivismo e o conceito de metafísica” corresponde a 7% das visitas (27.800/393.300), ocupando o primeiro lugar em artigos consultados; o segundo artigo mais lido (“Homem-Aranha positivista”) corresponde a cerca de 3,5% das visitas, ou seja, metade do primeiro lugar[1]
- A metafísica tem certa relevância atual devido aos seguintes motivos:
o Da parte do Positivismo: caráter metafísico da política contemporânea (individualismo, igualitarismo, academicismo, irracionalismo, militarismo, permanência do absoluto)
o Da parte de fatores externos I: recuperação academicista de uma área chamada “metafísica” (ou “ontologia”)
o Da parte de fatores externos II: confusão intencional entre as expressões “elaborações filosóficas abstratas” e “metafísica”
§ Essa confusão resulta em que a “metafísica” é entendida como sinônima de “filosofia”, de “especulações abstratas”, de “concepções de mundo”, de “moral”, de “epistemologia”
§ Exemplo clássico dessa confusão intencional: o título e o conteúdo de um livro famoso, As bases metafísicas da ciência moderna, de Edwin Burtt (de 1924, com edição brasileira de 1983)
o Da parte de fatores externos III: crítica do Círculo de Viena à metafísica
§ Aparecem (ou reaparecem) aí o “problema da delimitação” e o “problema do empirismo”
- Devido ao item anterior, antes de avançar para a exposição sobre o que o Positivismo entende por “metafísica”, é necessário deixar muito claro que, para o Positivismo, valem as seguintes concepções:
o A filosofia é uma reflexão geral sobre a realidade humana, com caráter sintético
o A Moral é tanto uma ciência quanto uma prática quanto uma “ética”
o A partir da historicidade humana, todas as concepções positivas têm base empírica; ainda que com freqüência sejam abstratas e passíveis de deduções, nossas concepções não são apriorísticas nem arbitrárias nem “voluntaristas”
- Para o Positivismo, a metafísica é um conceito secundário, subordinado à teologia e mesmo à positividade:
o Como sugeriu o equívoco sociólogo inglês Anthony Giddens, o conceito positivista de “metafísica” é metodológico e não substantivo: ele consiste em uma forma de entender (ou interpretar) a realidade
o A metafísica consiste de modo geral na degradação da teologia, ocupando sempre um papel de transição entre alguma teologia e outro estado intelectual, seja uma outra teologia, seja a positividade
o A metafísica, portanto, é tanto um elo
(de maneira ampla: entre teologia e positividade) quanto teologia degradada
o Sendo um elo, a metafísica compartilha características dos extremos cuja ligação realiza
§ Na passagem da teologia para a positividade, dependendo do caso em questão, a metafísica compartilha, por um lado, ou mais as abstrações fictícias e irracionais da teologia ou, por outro lado, mais o esforço racionalizante e empírico da positividade
§ Em certo sentido, portanto, é possível entender a metafísica como a secularização da teologia (mas secularização bastante equívoca)
o Sendo teologia degradada:
§ A metafísica mantém o caráter absoluto da teologia, buscando entender o mundo por meio dos “porquês”, mas atribuindo as explicações, ou melhor, as vontades às puras abstrações, que passam a atuar como se tivessem vontade humana
§ Além disso, a metafísica assume um forte caráter crítico, destrutivo, dissolvente: seu objetivo é destruir, é degradar
§ A combinação das duas características acima – o absoluto e a criticidade sistemática – resultam que é possível verificarmos até mesmo a metafísica científica (ou, inversamente, a ciência metafísica), na forma do academicismo, do cientificismo e dos vícios opostos do materialismo e do espiritualismo
- A metafísica adota as abstrações personificadas para explicar o mundo: no âmbito da Sociologia, exemplos fáceis são o “mercado” (ou “a mão invisível”), o “capitalismo”, o “patriarcado”
o Como a metafísica emprega as abstrações, o que fica evidente é que ela surge a partir do desenvolvimento sistemático da abstração; em outras palavras, como o fetichismo é concreto, a metafísica é “pós-fetichista” e, portanto, surge propriamente a partir da teologia
o A metafísica também pode ser entendida como a desregulação, ou a atividade desregulada, das abstrações, que perdem cada vez mais as relações com a realidade empírica
§ Juntamente com a atividade desregulada das abstrações, a metafísica também apresenta um forte caráter verborrágico
o As características da natureza humana são mais desenvolvidas durante a teologia (como na tríplice transição ocidental, entre Grécia, Roma e Idade Média); entretanto, cabe à positividade a necessária e imperiosa tarefa simultânea de (1) regular e regularizar as relações entre essas características, (2) restabelecer a dignidade das concepções concretas e (3) regular e regularizar o emprego das abstrações
- Em termos de história ocidental, o duplo movimento moderno, posterior à Idade Média, combinou a degradação metafísica da teologia e a construção positiva; esse duplo movimento resultou na grande crise de 1789 (a Revolução Francesa)
o Desde então, o Ocidente já não vive mais sob a égide da teologia – apesar em particular da retrogradação desenvolvida e estimulada pelos Estados Unidos – mas os esforços e o impulso da positividade ainda não foram capazes de superar a dinâmica anárquica entre retrogradação e revoluções, bem como também não conseguiram superar o forte impulso metafísico estimulado pelo Ocidente, em particular após a I Guerra Mundial
- A política contemporânea, portanto, é amplamente metafísica:
o Não se trata apenas, por exemplo, da nefasta e atual política identitária, cujas características destruidoras, particularistas e irracionalistas são bastante conhecidas
o A política contemporânea é metafísica devido aos seus valores profundos, às suas concepções e às suas práticas: seja com o identitarismo, seja com o individualismo, seja com a exaltação do egoísmo e da concepção egoístico-negativa da natureza humana, seja com seu radical impulso destruidor, seja com a concepção de que a vida em sociedade é eterno e permanente conflito (“política agonística”)
§ É evidente que a política contemporânea ser metafísica em geral não impede que muitos políticos sejam mais ou menos positivos
§ Mas, por outro lado, convém lembrar que a permanência e o aprofundamento da metafísica estimulam movimentos retrógrados
- Para concluir estes comentários, duas citações:
o Há uma piada corrente na internet, baseada em uma frase de Voltaire, que define da seguinte maneira virtualmente positivista a filosofia, a teologia, a metafísica e a ciência:
Filosofia é estar em um quarto escuro
procurando um gato preto.
Metafísica é estar em um quarto escuro
procurando um gato preto que não está ali.
Teologia é estar em um quarto escuro
procurando um gato preto que não está ali, mas gritando “achei!”
Ciência é estar em um quarto escuro
procurando um gato preto usando uma lanterna.
- A música Hier encore (“Ainda ontem”), do cantor francês Charles Aznavour, apresenta os lamentos de um velho que se arrepende profundamente do tempo perdido em sua vida, especialmente em sua juventude: os vícios de que ele arrepende-se, na segunda e na terceira estrofe, parecem-me todos eles decorrentes de uma postura metafísica em face da vida:
Ainda Ontem[2]
Charles Aznavour
Ainda
ontem eu tinha vinte anos
Acariciava
o tempo e brincava com a vida
Como
se brinca com o amor.
E
vivia à noite
Sem
contar meus dias, que fugiam no tempo,
Fiz
tantos projetos que ficaram no ar,
Alimentei
tantas esperanças que bateram as asas,
Que
continuo perdido, sem saber aonde ir,
Com
os olhos procurando o céu, mas com o coração posto na terra.
Ainda
ontem eu tinha vinte anos
Desperdiçava
o tempo, acreditando detê-lo
E,
para retê-lo, e até ultrapassá-lo,
Só
fiz correr e perdi o fôlego.
Ignorando
o passado, conjugando no futuro,
Começava
qualquer conversa com “Eu”.
E
dava minha opinião, que pensava ser a melhor,
Para
criticar o mundo com desenvoltura.
Ainda
ontem eu tinha vinte anos
Mas
perdi meu tempo a cometer loucuras
Que
não deixam, no fundo, nada de realmente concreto
Além
de algumas rugas na testa e medo do tédio.
Pois
meus amores morreram antes de existir
Meus
amigos partiram e não mais voltarão.
Por
culpa minha, criei o vazio à minha volta
E
desperdicei a vida e meus anos de juventude.
Do
melhor e do pior, descartando o melhor,
Imobilizei
meus sorrisos e congelei meu pranto.
Onde
estão agora, agora, meus vinte anos?