30 junho 2020

Aforismos sociológicos IX


Aforismos sociológicos IX

 

§ 1º – Sobre tolerância e sociedades livres na época das “redes sociais”

 

Um dos aspectos centrais das sociedades contemporâneas é a noção de “tolerância”, isto é, de respeito mútuo entre os vários indivíduos e, em particular, entre as várias concepções sobre a realidade e a sociedade. Relacionam-se, portanto, disposições individuais e concepções de mundo, em que, por um lado, temos indivíduos que aceitam mais facilmente outras perspectivas e concepções que propõem maior abertura para outras concepções; por outro lado, há indivíduos que aceitam com maior dificuldade ou que não aceitam outras perspectivas, da mesma forma que há concepções que rejeitam outras concepções. Da mesma forma, há muitos casos intermediários, em que há a aceitação em determinadas situações e a rejeição em outras[1].

O que importa notar, de qualquer maneira, é que as sociedades contemporâneas – ou, sendo mais específico: as sociedades modernas, influenciadas pela evolução histórica européia, que se caracterizam pelo pluralismo social, político, filosófico e religioso, pelo relativismo científico, pela separação entre igrejas e Estado, pelas liberdades de pensamento, expressão e associação – têm como uma de suas características fundamentais a tolerância. Esse fato não deixa de corresponder à clássica situação em que uma necessidade torna-se virtude: considerando o momento central na história européia das guerras religiosas, a tolerância mútua foi o mecanismo encontrado para que as guerras civis e internacionais cessassem e os grupos pudessem conviver com um mínimo de harmonia; desse imperativo político a tolerância tornou-se uma virtude social[2].

Independentemente de discordâncias filosófico-religiosas e políticas, vale notar que a mera e inescapável ocorrência das idiossincrasias pessoais já é um fator que exige a tolerância; afinal, cada pessoa tem suas particularidades, devidas aos mais variados fatores: formação genética, ambiente familiar, ambiente escolar, vicissitudes da vida, redes de relacionamento, religião professada, país e época em que vive etc. Nessa combinação infindável de fatores, cada um tem seu temperamento, que, dentro de determinados limites[3], tem que ser respeitado – isto é, tem que ser tolerado.

Também é importante afirmar que tolerar não é concordar: tolerar é aceitar o diferente, mesmo – e principalmente – não gostando dele; em última análise, a tolerância consiste em resignar-se (contrafeito ou não) com a existência de grupos e idéias diferentes das próprias. Assim, criticar não é ser intolerante: a crítica integra o quadro geral de liberdades de pensamento e de expressão; quem é criticado tem o direito de responder às críticas e pode, igualmente, replicar a quem o criticou inicialmente. A crítica, se mantida no âmbito das palavras e das idéias, ainda está no quadro da tolerância; mas pregar a destruição – isto é, o fim por meios violentos do que é considerado diferente – e, ainda mais, passar à ação concreta, isso é ser intolerante[4].

O ideal da tolerância é cada vez mais respeitado – pelo menos no Ocidente – desde as guerras de religião, dos séculos XVI e XVII; no século XVIII o Iluminismo tornou-o um elemento central de reflexão e da prática política, o que felizmente continuou no século XIX e também no começo do século XX. Entretanto, após 1918, as profundas e nefastas conseqüências da I Guerra Mundial conduziram inúmeros países a deixarem de lado esse ideal e a erigirem o desprezo sistemático por outras religiões e grupos sociais (os “judeus”, os “negros”, os “burgueses”, os “capitalistas”, os “comunistas” etc.) como fundamento de sua afirmação política, com as piores e mais detestáveis conseqüências sociais e políticas. Ainda assim, com o término da II Guerra dos 30 Anos, em 1945, a tolerância foi recuperada, sendo um dos fundamentos por exemplo da Organização das Nações Unidas; o fim da Guerra Fria, a desintegração do bloco comunista e a vitória das democracias liberais pareciam sacramentar a tolerância como princípio sociopolítico no final do século XX.

A década de 2010 introduziu um novo elemento que mudou completamente a forma como a tolerância vinha sendo entendida – no caso, a internet e, de modo mais específico, as chamadas “redes sociais”. Sugerimos as seguintes características como explicativas do estímulo das redes sociais à intolerância:

1)      imediatismo das reações;

2)      isolamento físico dos indivíduos que “interagem” eletronicamente;

3)      ausência de relações pessoais face-a-face;

4)      constituição de grupos (ou redes) temáticas e por afinidades em bolhas, que excluem perspectivas diferentes;

5)      ausência de mediação moral, intelectual e política na constituição das redes e das bolhas.

A maior parte – se não a totalidade – dessas características não é novidade para quem presta atenção aos efeitos sociais e políticos das redes sociais. O conjunto acima resulta em um quadro terrível, em que indivíduos fisicamente isolados interagem apenas eletronicamente, à distância, com outros indivíduos, com assombroso imediatismo; as reações são exatamente isso, reações imediatas, não pensadas, não pesadas, não avaliadas. O relacionamento pessoal de caráter físico perde-se, mas não é somente isso que se vai: a enorme riqueza que as relações pessoais trazem deixa de existir, como os mecanismos não escritos de comunicação (gestos, expressões, tons de voz, movimentos corporais). Ainda há mais que se perde: o relacionamento face-a-face impõe limitações à expressão de cada um; frente a diferentes indivíduos, cada um avalia, mesmo que implicitamente, mesmo que inconscientemente, se o que falará é conveniente, se é respeitador, se será bem entendido etc. Essas avaliações contextuais correspondem a um aspecto importante do aprendizado moral e social de todos os indivíduos; quem não sabe lidar com elas é entendido como problemático, assim como, inversamente, aqueles que instrumentalizam sem maiores preocupações morais são vistos como doentes. Ora, nas redes sociais a avaliação contextual da comunicação é jogada fora; em vez de cada indivíduo deparar-se concretamente com uma outra pessoa que conjuga na sua frente uma subjetividade que se expressa a cada movimento com uma objetividade física, nas redes sociais os indivíduos a todo momento relacionam-se apenas com abstrações; essas abstrações, por sua vez, devido ao imediatismo das reações e ao contínuo da participação nas redes, acabam tornando-se um espelho do próprio indivíduo que reage.

O afastamento físico entre as pessoas não é em si o mais problemático; antes da internet, as pessoas comunicavam-se à distância, por meio de cartas, de telegramas, de livros: ocorre que esses instrumentos impunham, ou impõem, uma reflexão prévia para suas respostas. O elemento do imediatismo é posto de lado.

Os quatro elementos iniciais indicam que as redes sociais estimulam poderosamente as paixões; nesse sentido, essas paixões, desenvolvidas sem freios, rejeitam a tolerância. Surge aí o quinto elemento, a ausência de mediação moral, intelectual e política. Tanto o isolamento físico quanto o imediatismo das reações levam a que os indivíduos reajam exprimindo apenas o que está em suas cabeças; como os relacionamentos pessoais e a reflexão meditada sobre os temas são deixados de lado, os indivíduos dão livre curso aos seus instintos imediatos; correndo o risco de ser pleonástico, os indivíduos tornam-se cada vez mais individualizados, as pessoas tornam-se cada vez mais isoladas. Ora, nesse isolamento, há a perda do que Augusto Comte chamava de “poder Espiritual”, isto é, daquelas pessoas e daquelas estruturas sociais responsáveis pela disseminação de valores e idéias, bem como pelo aconselhamento moral de cada um. Essa perda de importância do poder Espiritual pode ser demonstrada mesmo pela virulência com que os indivíduos reagem mesmo contra os “gurus” que costumam incitar as paixões nas redes sociais: deixados entregues às suas próprias e piores paixões, os indivíduos não toleram que os seus próprios gurus imponham limites às suas paixões.

Bem vistas as coisas, o que as redes sociais têm feito é realizar no início do século XXI vários dos maiores temores que pensadores do século XIX (como Gustavo le Bon) e do século XX (como José Ortega y Gasset) tinham a respeito da democracia. Tais pensadores não eram propriamente contra a democracia, isto é, contra as liberdades; mas eles temiam muito que indivíduos entregues a si mesmos e às suas paixões produziriam os piores resultados possíveis: espírito de manada, (suposta) auto-suficiência – e, para o que nos interessa, intolerância.

Ortega y Gasset chamava esse gênero de ser humano de “homem-massa”, que se sente confortável em sua ignorância e, assim, não hesita em emitir “opiniões” sobre as questões mais variadas, em particular aquelas sobre assuntos sobre os quais não conhece. Esse homem-massa não é necessariamente o popular, o comum do povo, pois os especialistas também se comportam como massa; aliás, muitas vezes, justamente porque são especialistas em uma determinada área (particularmente áreas técnicas), muitos profissionais, e mesmo cientistas, consideram-se capacitados e autorizados a opinar sobre aquilo que desconhecem. A política, como se refere a todos os cidadãos, é especialmente atingida pela ação dos homens-massa; da mesma forma, a cada vez maior politização, ou a radicalização política, intensifica esses aspectos.

Augusto Comte, por seu turno, observava que o fundamento filosófico desse comportamento é o dogma da liberdade absoluta de consciência; mais uma vez, a arrogante e auto-suficiente pretensão de poder opinar sobre tudo sem a devida preparação (filosófica, teórica e, acima de tudo, moral). Os integrantes dessas bolhas, como observamos há pouco, adotam um comportamento ambíguo a respeito dos seus líderes: na medida em que os líderes estimulam os instintos agressivos e de manada, eles são seguidos; mas caso esses líderes destoem do comportamento projetado pelos aderentes, a adesão falha ou simplesmente é suspensa. Nesse sentido, os líderes têm um papel principalmente negativo, ao estimularem os instintos agressivos e de manada; a efetiva orientação positiva – que consiste no estímulo à moderação, à reflexão, à ação prudente, fraterna e esclarecida – é desprezada[5].

O problema aqui não são as liberdades de expressão e de pensamento; também não é o desejo de manifestar-se sobre qualquer assunto. O problema central é a arrogância, cada vez mais generalizada e estimulada pelas redes sociais, de que basta ter a possibilidade de escrever alguma coisa em redes sociais para que isso seja considerado “opinião” fundamentada. Aliás, é também a arrogância que justifica e é justificada pela confusão de que basta todos terem “sentimentos” (desejos, anseios etc.) para que tais “sentimentos” sejam convertidos imediatamente em opiniões. Como observamos antes, a política, em particular, padece desse problema, na medida em que, como vivemos em sociedades republicanas, todos têm o direito de manifestarem-se sobre os assuntos da polis, mesmo que não entendam desses problemas. A dificuldade que vivemos, o temor expresso pelo conceito de “homem-massa”, é quando o direito de manifestar-se sobre os assuntos da polis converte-se em dever de manifestar-se; é quando a manifestação apesar da ignorância sobre os assuntos torna-se manifesta-se devido à ignorância sobre os assuntos. E, claro, a ignorância sobre os assuntos inclui também o desconhecimento sobre os fundamentos e a dinâmica da própria polis e da sociedade que abriga essa polis. Para usar uma expressão jocosa, não há como isso dar certo[6].

A intolerância estimulada pelas “redes sociais” caracteriza-se por um feroz espírito de grupo, em que internamente o grupo (mais ou menos restrito e, por paradoxal que seja, mais ou menos ignorante de seus próprios membros) é solidário a si mesmo, mas agressivo a quem não o integra. Nesse sentido, trata-se de um forte desvio da fraternidade, a que se somam a falta de afeto mais amplo e o estímulo (mais uma vez agressivo) a instintos egoístas e destruidores.

A virulência, o particularismo, o fechamento em si mesmas das bolhas das “redes sociais” levam naturalmente a considerar-se se é possível mantermos uma sociedade livre e aberta. As “redes sociais” estimulam o clima político de “nós contra eles”; nisso se perdem o respeito mútuo, a tolerância e os debates públicos, transformados em ondas de xingamentos recíprocos[7]. Esse clima é explorado e estimulado pelos partidos políticos, pelos próprios políticos (que, assim, transformam-se em demagogos sistemáticos) e são repetidos à exaustão pelos “intelectuais orgânicos” à direita e à esquerda (professores primários, secundários e universitários, jornalistas, “articulistas”, “gurus”). A proliferação das fake news faz parte integrante desse novo ambiente. As fake news têm como objetivo disseminar a desinformação, isto é, a disseminação de informações erradas para estimular a confusão intelectual, moral e política. Por fim, no caso específico das eleições, elas tendem a perder o caráter de “debates” (característica que, desde sempre e no final das contas, elas apresentam apenas de maneira superficial e muito idealizada) para assumirem o aspecto de “democracia de plebiscito”. Em suma: é de temer-se que as “redes sociais” estejam criando uma combinação de oclocracia, mantida e estimulada pelos homens-massa, com tirania, mantida pelo líder preferido desses mesmos homens-massa – tudo isso em meio à desinformação disseminada pelas fake news e pelo clima de ódio e intolerância.

Pessoalmente, tenho dúvidas sobre se a estrutura interna, a lógica das “redes sociais” permite mesmo a idealizada “qualificação” do debate. O que argumentei acima é que a forma como as redes sociais reúnem as pessoas resulta, na prática, em repelir o debate e, nesse sentido, não há o que ser qualificado.

Há grupos sociais e políticos que afirmam que uma forma de evitar ou de reverter essas tendências negativas seria “ocupar espaço” nas redes sociais. Entretanto, considerando as observações acima, é caso de pôr-se em dúvida essa expressão: se os grupos constituem-se como bolhas, não haveria espaço para ser ocupado, pois não haveria brechas para que a moderação, a prudência e a tolerância pudessem ser incluídas e surtir efeito. Dessa forma, “ocupar espaço” consistiria somente em jogar, de modo cada vez mais intenso, mais propaganda, mais fake news, nas redes sociais – em um procedimento que, aliás, pode ser (e é) empregado pelos vários grupos uns contra os outros. Além disso, não é claro se a palavra de ordem de “ocupar espaços” não contribui para essa mesma dinâmica negativa, na medida em que ela baseia-se em uma concepção militar, isto é, de combate e destruição dos inimigos, em vez do convencimento dos adversários (isto é, dos concidadãos).

A apreciação acima é bastante pessimista, sem dúvida nenhuma; em contraposição – é o princípio da prudência – convém admitir que o advento do rádio e, depois, da TV suscitaram no século XX também grande pessimismo. (Aliás, o mesmo pode ser dito do advento dos textos de massa.) Infelizmente, será necessário passarmos por alguns mares turbulentos para que as “redes sociais” entrem em uma dinâmica mais positiva, ou menos negativa.

Novamente: o conjunto destas observações resulta em uma avaliação negativa. Melhor dizendo, é uma avaliação claramente pessimista. Em face dela, o que se impõe é a necessidade imperiosa de fazer-se alguma coisa a respeito. Pessoalmente, não tenho conhecimentos de engenharia da computação para argumentar muito, mas tenho a impressão de que as próprias “redes sociais” são limitadas nas alterações que podem implementar. Assim, a solução parece-me que está na sociedade civil: por um lado, na valorização da sociabilidade direta; por outro lado, a forte (re)valorização da tolerância, do apaziguamento social geral; com base nisso, a constituição de pressões para “qualificar” os debates e para rejeitar tanto os intelectuais e gurus que estimulam a intolerância quanto – ainda mais – a realidade dos homens-massa.

§ 2º – Nota sobre a meritocracia

 

-        Os debates atuais sobre a meritocracia são enviesados:

o   de um lado, defensores da “justiça social”, a favor das políticas de “inclusão social” e das “cotas sociais”, ou seja, de modo geral, defensores das cotas raciais em concursos públicos;

o   de outro lado, críticos das “cotas sociais” e defensores sem mais da meritocracia

-        Embora seja possível entender a meritocracia como uma organização social que valoriza o melhoramento e o aperfeiçoamento (a busca geral pelo mérito, pela excelência, pela boa qualidade), no âmbito dos atuais debates é necessário entender a meritocracia como um sistema de seleção de quadros técnicos e dirigentes

-        É claro que há relações variadas entre a estrutura geral da sociedade e o sistema de seleção de quadros; a meritocracia como seleção de quadros só faz sentido em uma sociedade que valorize a qualidade, ou que valorize mais a qualidade que outras características possíveis para a seleção de quadros

-        A melhor forma de entender a importância da meritocracia é compará-la com o outro tipo ideal polar de seleção de quadros, o sistema de castas:

o   A meritocracia seleciona quadros a partir de qualidades mais ou menos objetivas, medidas de acordo com critérios variados (geralmente por meio de questões a serem respondidas, mas também por meio de atividades práticas); a partir do desempenho dos postulantes ao cargo, elabora-se uma arrolagem em que os que se saem melhor em tais avaliações são selecionados;

§  Deve-se notar que os cargos são criados previamente à nomeação dos funcionários; a concorrência aos cargos e às funções está em princípio aberta a todos os cidadãos – com restrições vinculadas a requisitos técnicos, como experiência de vida (resultando em restrições etárias) e/ou conhecimentos específicos (resultando na exigência de determinados diplomas)

o   Na sociedade de castas, cada profissão está confinada a um estrato social específico: quem nasce em uma determinada família terá somente uma profissão (ou ocupação) e cada profissão é exercida apenas por um conjunto determinado de famílias. É claro que em cada estrato e em cada profissão há os bons e os ruins, mas isso não impede que haja uma eventual degradação geral da qualidade das atividades desenvolvidas por um estrato específico; da mesma forma, não há a possibilidade de trânsito entre estratos, de modo a permitir que indivíduos capazes de realizar atividades de outros estratos realizem-nas

§  Uma variação atenuada da sociedade de castas é a aristocracia do Antigo Regime: o nome da estrutura indica “governo dos melhores” (áristos + cratia), mas era na verdade uma casta, um estrato social autodenominado de “melhor”: da Idade Média para a modernidade, enquanto as sociedades eram mais agrárias que urbanas; os servos eram muitos e que os citadinos eram poucos e desorganizados; os assuntos públicos não eram particularmente complicados e resumiam-se muito na arte da guerra; a nobreza fornecia bons quadros, esse mecanismo de seleção funcionava a contento; mas a partir do momento em que as sociedades tornaram-se mais urbanas e as cidades afirmaram-se como locais de liberdade; que as atividades tornaram-se mais pacíficas e industriais e mais complicadas; que os citadinos e as comunas emanciparam-se, os negócios públicos deixaram de poder ser tratados apenas por amadores, passando a exigir-se o tratamento técnico específico, bem como a ascensão social e política das camadas que tinham esse conhecimento: a excelência autointitulada passou a ceder lugar à excelência comprovada (nos termos de Giovanni Sartori: comprovada em particular pelos outros, não por si próprios); isso é o que fica evidente no Portugal da Revolução de Avis (1383-1385), que registra uma clara “revolução burguesa” (como indicado por Alexandre Herculano em O monge de Cister)

-        Dessa forma, a meritocracia é a afirmação da excelência aberta a toda a sociedade, bem como o instrumento de combate à aristocracia e à sociedade estamental própria à Idade Média (mas, de modo geral, a toda sociedade de castas) e, portanto, é o instrumento de ascensão social por definição, ao mesmo tempo em que é um instrumento de seleção de quadros que garante a qualidade e/ou que minimiza os prejuízos e os desperdícios

-        Nas polêmicas atuais – que, de fato, apresentam bem pouco o aspecto de “debates”, isto é, de troca de idéias, consistindo muito mais em disputas e em trocas de agressões –, os defensores da “justiça social” combatem a meritocracia, isto é, combatem justamente o instrumento que garante a abertura dos quadros públicos a indivíduos provenientes de todos os grupos e classes sociais e que permitiria o avanço vertical de seus membros; inversamente, os defensores da meritocracia demonstram-se insensíveis para com as condições concretas em que vive a maior parte da população brasileira, marcada pela pobreza

o   Os defensores políticos contemporâneos da meritocracia não propõem nenhuma solução para o sério problema da péssima qualidade geral da educação e da instrução das classes mais baixas do Brasil, preferindo aferrar-se à fórmula – correta em si mesma, de qualquer maneira – de que a meritocracia deve prevalecer

o   Por outro lado, os defensores da “justiça social”, ao mesmo tempo em que criticam e desvalorizam a meritocracia, com enorme freqüência defendem atalhos institucionais – e, ainda pior, atalhos particularistas para favorecer grupos específicos, ditos “minoritários” (até o momento: mulheres e “negros”)

§  Dessa forma, a lógica universalista própria à meritocracia e constitutiva da idéia moderna de cidadania é solapada

§  Para piorar, entre os mecanismos já existentes para realização institucional desses atalhos, há medidas violentamente daninhas – em particular, os tribunais raciais para aferição da “negritude” de candidatos denominados de “negros” (dos quais se excluem totalmente os “brancos”)

-        Poder-se-ia, talvez, argumentar que a meritocracia conforme apresentada aqui é apenas uma idealização, que ela não corresponde à prática e que, na verdade, há um sem-número de obstáculos à sua realização, incluindo aí o que se poderia chamar de “perversões do ideal”: perpetuação do acesso a possibilidades em determinados grupos, fechamento do acesso a outros grupos etc.

o   Nenhuma dessas objeções parece-me efetiva ou válida. Um ideal permanece importante na medida em que pode ser aplicado útil e positivamente na realidade; se há espaços sociais em que a meritocracia universalista não se verifica, o que se deve fazer é aplicá-la, ou seja, universalizar os procedimentos, não os restringir. Por outro lado, a meritocracia já realizou importantes alterações na sociedade, ao permitir a constituição de ideais universalistas, o acesso de indivíduos de todas as classes a cargos e postos segundo suas aptidões e não de acordo com seu berço etc.

-        Há um problema adicional em relação à meritocracia; na verdade, não se trata de um “problema”, mas das relações que ela sugere com um traço de nossa sociedade e que, para muitos, torna-a problemática: são as relações com o ideal de igualdade.

o   A meritocracia promove os “melhores”, a excelência, o que, por definição, é contra o ideal de igualdade. Sem dúvida que o ideal de igualdade foi tomado em inúmeros sentidos nos últimos dois ou três séculos, passando de uma igualdade moral e social para, por exemplo, igualdade de condições de partida (Rawls). Mas o fato é que a meritocracia e a igualdade são valores opostos; mesmo a obra de Rawls é um esforço para conjugá-las, um tanto sem sucesso

o   A “igualdade” é insustentável em si mesma; a despeito disso, há um aspecto do que seus defensores argumentam que vale a pena reter e que, aliás, relaciona-se à “justiça social”: trata-se do respeito à dignidade humana, às garantias mínimas de condições de vida para todos os seres humanos; essas condições de vida abrangem aspectos materiais, intelectuais, sociais, políticos e morais

o   Dessa forma, a meritocracia tem que ser promovida como um ideal social geral e como um procedimento específico para seleção de quadros; mas ela tem que ser conjugada com os valores da fraternidade e do amor universal: de outra maneira, ela pode aproximar-se de uma forma de darwinismo social

o   Os comentários acima evidentemente são uma resposta às críticas sofridas pelo conceito de meritocracia, a partir dos defensores da “justiça social”.

o              Entretanto, uma reflexão sobre os motivos que levam os defensores da “justiça social” a criticar a meritocracia levaram-me a considerar porque, de fato, ocorrem tais críticas.

o              As conclusão a que pude chegar são as seguintes: (1) por um lado, os defensores da “justiça social” são defensores também, em um nível mais profundo, da idéia de “igualdade social”; (2) por outro lado, os defensores da “justiça social” temem que a meritocracia instaure uma espécie de “darwinismo social”.

o              Vejamos cada uma dessas possibilidades.

o              (1) No que se refere ao uso da “justiça social” como uma forma de promoção da igualdade, há um problema inicial: o que é “igualdade”? Os defensores dessa idéia de modo geral são imprecisos e vagos a respeito e, dessa forma, são profundamente incoerentes. Essa imprecisão pode ser intencional ou não, mas o fato é que se pode entender a igualdade de diferentes maneiras, com resultados teóricos e práticos imensamente diversos entre si: pode ser a igualdade perante a lei (a isonomia), pode ser a presunção de igualdade moral entre os indivíduos, pode ser a igualdade de status social, pode ser a igualdade de condições materiais, pode ser a igualdade intelectual, pode ser a igualdade das condições mínimas de vida etc. etc. Como se vê, não se pode presumir que a “igualdade” é uma coisa única; mesmo defensores notáveis e realmente respeitáveis da noção de igualdade, como Norberto Bobbio, são vagos a respeito. De qualquer maneira, o que a “esquerda” – e Bobbio define a esquerda como o viés político que defende a igualdade – entende por “igualdade” é u’a mistura (confusa e vaga) das várias noções acima, em particular em seus aspectos materiais e de status: de maneira grosseira, é um desejo de que todos tenham as mesmas coisas (o que não é idêntico a que todos tenham condições mínimas dignas), que todos tenham o mesmo status e, em conseqüência disso, a igualdade também se transforma em uma rejeição do “capitalismo” (que também não é conceituado, ou, se é, é conceituado de maneira pobre).

§             (Pode-se argumentar que a “esquerda” não define a igualdade dessa forma: mas o problema é que a “esquerda” NÃO define a igualdade; a observação de que a igualdade é sempre apresentada como um conceito vago e impreciso não é acidental. A crítica reiterada ao “capitalismo”, a defesa contumaz dos regimes comunistas – que impunham, pela força, a igualdade de condições materiais -, a ênfase em grupos sociais de base etc. reforçam o fato de que a “igualdade” defendida é a material e a de status social.)

§             Ora, deixando de lado possibilidades menos óbvias (como a isonomia, o respeito à dignidade humana e as condições mínimas dignas de vida), o fato é que a meritocracia não apenas é contra as sociedades de castas, como também é contra a igualdade. Nesses termos, muitos dos defensores da “justiça social” são contra a meritocracia não devido à defesa da “justiça social” – que, em si mesma, como argumentei antes, é perfeitamente compatível com a meritocracia -, mas porque no fundo tais defensores da “justiça social” defendem a igualdade (material e de status) e não efetivamente a “justiça social”.

o              (2) Tomado isoladamente, o conceito de meritocracia pode ligar-se a uma forma de darwinismo social: neste caso, algumas queixas dos defensores da “justiça social” são absolutamente corretas. Quanto mais alto na estrutura social, maiores as chances de um indivíduo de ter sucesso em sua vida e, nesse sentido, de evidenciar excelência ou mérito; inversamente, quanto mais baixo na estrutura social, maiores as dificuldades. O pobre ou o miserável que não tem o que comer, não tem como estudar, não tem como condições financeiras de dedicar-se a lazeres mais custosos – esse indivíduo em princípio não tem como praticar uma atividade qualquer em que se possa ser chamado de “excelente”. Há exceções a isso, é claro, e como o exemplo do samba demonstra, mesmo a pobreza não impede o exercício da criatividade humana. Mas, ainda assim, é necessário deixar de lado a visão vinculada aos indivíduos e assumir perspectivas mais amplas e mais estruturais.

§             Aliás, mesmo de uma perspectiva mais ampla é necessário adotar um viés mais histórico: algumas atividades são mais valorizadas em algumas épocas, enquanto em outros momentos elas são desvalorizadas; as possibilidades de desenvolvimento de determinadas aptidões variam nesse sentido: por exemplo, as inquestionáveis habilidades militares e políticas de Júlio César seriam inaceitáveis nos dias atuais.

§             Da mesma forma, mas seguindo uma outra perspectiva, convém notar que nem todos têm interesse em ser excelentes em algo; muitos gostam de ser apenas bons, ou apenas regulares em suas atividades, sem serem medíocres.

o              Ora, u’a meritocracia pura, que valorizasse apenas e tão-somente os “melhores”, deixaria para trás uma grande massa desvalorizada: isso, sem dúvida, seria “injusto”. Essa meritocracia “pura” seria uma forma de darwinismo social.

§             Como evitar esse darwinismo social? Sem dúvida alguma, não é combatendo a idéia do mérito, não é combatendo a concepção de que se deve valorizar os melhores e, inversamente, que se deve incentivar a melhoria (individual e coletiva). Se não é aceitável ser-se contra a meritocracia e se a meritocracia “pura” pode ser daninha, a solução é complementar a meritocracia com algum(ns) outro(s) princípio(s) – por exemplo, o respeito à dignidade humana, a fraternidade, a tolerância. Nos termos de Augusto Comte, esse “complemento” seria um princípio – no duplo sentido de ser um valor norteador e de estar no começo: seria, precisamente, o “Amor” que está no “princípio”.

o              Ora, bem vistas as coisas, é aceitável entender a fraternidade, a dignidade, a tolerância como valores que fundamentam parte da noção (vaga) de “igualdade” da “esquerda”. Comte e Isaiah Berlin consideravam que essa fraternidade da igualdade era uma concepção deturpada da fraternidade, ao conduzir a um diagnóstico e a um programa errados. Mas, ainda assim, é aceitável considerar que a fraternidade, a dignidade, a tolerância integram parte do programa dos defensores da “justiça social”. Nesses termos, é fácil perceber o quanto são compatíveis – e, mais do que isso, são complementares – a meritocracia e a “justiça social”.

§ 3º – “Estudos críticos” como metafísica profundamente daninha e essencialmente negativa (i. e., destruidora)

 

-        A palavra “crítica”, como se sabe, tem pelo menos dois sentidos: por um lado, ela indica um período de transição e/ou de enfraquecimento generalizado dos valores de uma determinada ordem social (“crise”); por outro lado, ela também indica uma avaliação percuciente e profunda, supostamente não ingênua mas sempre “radical”

o   O segundo sentido tem sido largamente utilizado, embora de maneira “não crítica”, pois que ingenuamente ignora que a radicalidade de seu sentido associa-se à virulência das suas considerações. Dito de outra forma, as “análises críticas” não somente “profundas” e “verdadeiras”, mas são, antes de mais nada, destruidoras

o   O caráter destruidor das “críticas” baseia-se no sentido dado pela palavra originária, que é “crise”, ou seja, desestabilização profunda de uma ordem qualquer

o   Nesses termos, propor uma análise “crítica” de algo não é propor um estudo aprofundado e “realista” sobre esse algo; estudos aprofundados e realistas podem ser propostos usando-se palavras como “estudos aprofundados e realistas”; quando se propõe fazer-se uma análise crítica, o que se propõe de fato é fazer-se uma análise destruidora, virulenta

-        Assim, é necessário sistematicamente se substituir a palavra “crítica” como sinônimo de “avaliação” pela palavra... “avaliação”

o   Os pós-modernismos, os pós-estruturalismos, os “estudos pós-coloniais”, os “estudos culturais” e os estudos identitários integram de pleno direito os “estudos críticos” e seus profundos defeitos intelectuais e morais

§ 4º – Algumas anotações sobre o republicanismo

 

-        De modo geral, o republicanismo é uma teoria política, não sócio-política: com isso quero indicar que ele propõe um determinado status geral para todos os cidadãos, em caráter universal, independentemente das classes sociais. Evidentemente, é uma teoria que se põe contra, de facto e/ou de jure, diferenças formais de status, como as vigentes nas sociedades de estados e, a fortiori, nas sociedades de castas

-        É necessário reconhecer-se que, além da positivista, há pelo menos mais uma teoria republicana que mais ou menos leva em consideração as classes sociais, ou melhor, que as considera como atores ativos: é a de Maquiavel, com o choque entre as classes e, em particular, a ação dos “pequenos” contra os “grandes” como motor e garantia das liberdades

o   No caso de Maquiavel, falar-se em “classes” não deixa de ser uma grande imprecisão e, até certo ponto, mesmo um erro, na medida em que toma as categorias políticas adotadas pelo florentino (“grandes” e “pequenos”) como sinônimo de categorias sócio-econômicas; todavia, de maneira aproximativa esse procedimento de tomar as categorias como sinônimas não é totalmente errado, pois na Florença renascentista as condições políticas e sócio-econômicas eram largamente coincidentes. Ainda assim, é importante notar que é apenas um uso aproximado e que as “classes”, aí, não têm o mesmo peso que o adotado por Marx; além disso, enquanto Maquiavel admitia a manutenção da pólis, mesmo que com suas divisões, para Marx a luta de classes é guerra civil a partir das clivagens sócio-econômicas

o   Augusto Comte também defendia a ação dos proletários para cobrar dos patrícios as suas responsabilidades; dessa forma, ele falava claramente em caráter instrumental da “luta de classes” (mas, bem entendido, no sentido de “luta de classes” que empregamos a respeito de Maquiavel, acima, e não no de Marx)

-        A idéia da cidadania, como um esquema teórico político, é em tudo semelhante ao republicanismo e, inversamente, bem vistas as coisas, o republicanismo é uma teoria da cidadania. Isso se evidencia na obra de T. H. Marshall, em que a isonomia – mas não a igualdade rousseauniana – é um traço da cidadania, repelindo, dessa forma, as distinções jurídicas de status, compensatórias ou não

-        A teoria sócio-política de Augusto Comte também define um protagonismo para as classes sociais; tomando como base a isonomia, o proletariado tem a função de fiscalizar e cobrar a correção das atitudes do patriciado. Nesse sentido, a luta de classes não é valorizada por seu suposto caráter revolucionário, mas ela pode ter um caráter instrumental para a manutenção da moralidade pública, em um sentido social e republicano 





[1] Michael Watzer (Da tolerância, São Paulo, M. Fontes, 1999) propõe a existência de cinco “regimes” de tolerância: império multinacional, sociedade internacional, consociação, Estado-nação e sociedade imigrante. O quadro que consideramos é o mais habitual nas reflexões sobre a tolerância e enquadra-se no regime do Estado-nação, na terminologia de Walzer.

[2] Bem vistas as coisas, ainda no âmbito da história das religiões, a tolerância é uma virtude que acabou impondo-se devido ao específico absolutismo próprio aos monoteísmos; os politeísmos apresentam maior plasticidade teórica, sendo capazes de incorporar diferentes credos, seja pela simples expansão do panteão, seja pela assunção de que vários deuses teriam apenas diferentes nomes. É claro que os politeísmos progressistas, próprios às sociedades guerreiras, apresentam essa maior plasticidade; os politeísmos conservadores, de sociedades dominadas pelos sacerdócios, são um pouco mais refratárias.

Outra observação do âmbito da história das religiões: muitos apóstolos afirmaram a importância da tolerância e do respeito mútuo, especialmente no sentido de que as conversões não poderiam nunca ser feitas por meio da violência. São Paulo é um exemplo disso; Maomé, por outro lado, foi bastante ambíguo a respeito, havendo uma fase tolerante e outra fase impositiva no Corão.

[3] Os limites são o maior ou menor egoísmo, a maior ou menor competência técnica, a maior ou menor sagacidade etc.

[4] Nas disputas atuais, que se têm caracterizado pela forte e agressiva politização, pela intensa polarização, muitos grupos afirmam que a mera crítica é sinal de intolerância: ora, se criticar algo ou alguém é ser intolerante, isso se converte em intolerância à manifestação das idéias. Dessa forma, é importante insistir: a simples crítica (por mais dura que possa ser tal crítica) não é, em si mesma, intolerância. A pregação e a realização da destruição do que é criticado, isso, sim, é intolerante. Em outras palavras, a intolerância vincula-se de verdade ao estímulo e ao emprego à violência.

[5] Historicamente, tais líderes agressivos existiram em todas as sociedades e em todas as épocas; freqüentemente foram chamados de populistas, demagogos, fanáticos: deveria ser bastante claro, mas a dificuldade em tais denominações é que, se os intolerantes podem, de fato, ser chamados de populistas, demagogos e fanáticos, a recíproca não é necessariamente verdadeira.

Modernamente, os líderes fascistas e totalitários – de direita ou de esquerda – correspondem a eles. No Brasil recente podemos identificá-los em partidos da extrema esquerda, embora também em partidos da esquerda moderada – Lula e seu entorno podem ser incluídos nessa categoria. Entretanto, é no lado da direita, de uma nova direita, que se pode identificar com clareza meridiana esse perfil: Olavo de Carvalho é o grande campeão desse gênero humano que desponta atualmente no país. Não deixa de ser surpreendente – e, talvez, também revelador – o fato de que esse astrólogo mudou-se há muitos anos para os Estados Unidos, de onde pode xingar impunemente políticos, pesquisadores e grupos sociais no Brasil.

[6] Deveria ser apenas uma ironia, mas é um sinal poderoso da degradação de certos círculos sociais, morais e intelectuais o fato de que é justamente na “direita”, que costumava citar Ortega y Gasset para criticar os homens-massa, que se verifica o maior estímulo à (e a maior exploração política da) ação dos homens-massa. Afinal de contas, não é possível qualificar de outra maneira os agressivos (contra os outros) e dóceis (em relação ao seu guru) seguidores de Olavo de Carvalho.

[7] Com o aprofundamento do uso das “redes sociais”, esse clima também deve aprofundar-se. Nesse quadro, os famosos algoritmos das redes sociais, isto é, os mecanismos eletrônicos responsáveis pela atribuição de possíveis interesses a cada um dos usuários, também assumem grande importância. Não por acaso, as empresas que controlam as redes sociais têm sido intensamente cobradas, com razão, pelo aperfeiçoamento desses mecanismos, chegando mesmo a interferir em casos evidentes de incitação à violência, à intolerância e à discriminação. 

28 junho 2020

Ainda o relativismo histórico, o anti-racismo e as memórias históricas


Em postagem anterior, intitulada “Relativismo histórico, anti-racismo e memórias históricas”, indiquei vários motivos que justificam a preservação de estátuas comemorativas de personagens como Winston Churchill (no mundo inteiro) e a manutenção do nome de Woodrow Wilson na Escola de Relações Internacionais da Universidade Princeton (nos Estados Unidos). Embora essa postagem tenha sido extensa e tenha coberto uma ampla gama de temas, uma nova reflexão levou-me a perceber que eu não havia esgotado o tema e que há, portanto, outros aspectos que merecem ser apresentados. De maneira específica, quero comentar pelo menos mais dois aspectos: (1) o caráter metafísico e (2) o antiprogressivismo do combate às memórias históricas; o segundo aspecto é uma decorrência do primeiro, embora ambos sejam em si mesmos distintos um do outro.

No Positivismo, na Religião da Humanidade, o que se opõe ao “relativo” é o “absoluto”. O absoluto é a forma de encarar a realidade, o mundo, o ser humano, que pretende que tudo isso seja entendido de uma vez por todas, por todo o sempre; em oposição ao que é “relativo”, o absoluto rejeita relações, vínculos; assim, o absoluto permitiria a compreensão de tudo a partir de algum princípio externo ao que existe e que não dependeria de nada para existir e para permitir o entendimento. De maneira exemplar, a concepção de uma divindade, em particular no monoteísmo, representa(ria) a concepção do absoluto: supostamente o deus monoteísta existe em si e para si, independentemente de quem e do que quer que seja, mas, por outro lado, tudo o que existe, existiu e existirá depende dele e por ele seria explicado. As perguntas finalísticas – “de onde viemos?”, “para onde vamos”, “por que existimos?” – são as questões que dão origem à concepção teológica e suas respostas conduzem ao absoluto.

Ora, como vimos, o absoluto tem sua melhor representação na teologia, em particular no monoteísmo. Como Augusto Comte indicou desde o início de sua carreira, as idéias são históricas e alteram-se ao longo do tempo; essas alterações de cada concepção seguem uma evolução específica, que consiste na passagem da teologia para a sua concepção corrompida, que é a metafísica; da metafísica (que possui um caráter meramente transitório) passa-se à positividade, cuja grande característica é o relativismo. (Não é necessário insistir em que a transição do absolutismo teológico-metafísico para o relativismo positivo é uma verdadeira revolução mental e moral, com um caráter extremamente profundo e, por isso mesmo, de realização complicada.)

A metafísica, portanto, é absoluta; ela visa a responder de uma vez por todas as questões que considera. Mas, como indicamos, a metafísica também é mera transição entre a teologia e a positividade; essa transição em particular assume a característica de ser “crítica”, isto é, destruidora, corrosiva. Ainda mais: embora compartilhe com a teologia seu caráter absoluto, a metafísica opõe-se à teologia, em particular assumindo-se o título de “progressista” contra o “conservadorismo” imputado à teologia. Em face da metafísica, não há dúvida de que a teologia torna-se realmente conservadora; além disso, quando surge, a metafísica consiste na própria realização do progresso, na medida em que a decomposição da teologia em direção à positividade é a própria marcha do progresso.

O conservadorismo teológico e o progressivismo metafísico são ambos absolutos; eles afirmam seus princípios de uma vez por todas e rejeitando as concepções de vínculos, de relações, de limitações, de contextos. Quando a metafísica passa a atuar sobre e contra a teologia, logo se instala uma dinâmica (os marxistas e os hegelianos diriam uma “dialética”) que opõe a ordem e o progresso, comprometendo tanto a ordem quanto o progresso, em que a ordem torna-se reacionária e o progresso torna-se anárquico. O que está em questão nessa dinâmica, portanto, é o papel concedido à liberdade e, em decorrência disso, a forma como a sociedade organiza-se (se de maneira espontânea, se de maneira forçada; se com princípios compartilhados, se sem tais princípios).

Assim, embora ela inicialmente ela corresponda ao progresso e afirme-se como sendo a representante do progresso, entregue a si mesma a metafísica acaba agindo de tal maneira que combate exatamente aquilo que afirma defender. Entretanto, o problema vai mesmo além da dinâmica suicida entre a ordem retrógrada e o progresso anárquico: fiel ao seu caráter dissolvente, ou, para usar uma palavra que todos conhecem, empregam e mais ou menos entendem, fiel ao seu caráter crítico, a metafísica é incapaz de manter quaisquer instituições, quaisquer conquistas. Em outras palavras, por si mesma a metafísica acaba resultando no fim do mesmo progresso que ela supostamente representa e defende.

Trazendo essas reflexões filosóficas e sociológicas para o caso que consideramos anteriormente – as estátuas e as homenagens a tipos considerados atualmente como racistas –, o resultado é que a falta de relativismo histórico a respeito dessas personagens deve-se antes de mais nada a seu caráter metafísico, crítico, destruidor, absoluto. Deseja-se de uma vez por todas, de maneira radical, ou melhor, de maneira brutal avaliar todas as carreiras desses tipos, baseando-se em parâmetros estritamente atuais e desprezando-se as atuações dessas personagens nos momentos em que viveram e, de modo específico, pelas quais tornaram-se famosas. Não há dúvida de que é motivo do mais profundo pesar, do mais profundo lamento, que Churchill e Wilson – para ficarmos nas duas personagens que estou considerando de maneira particular – tenham sido racistas; esse traço constitui uma nódoa profunda na biografia de cada um: ainda assim, a despeito disso, nenhum dos dois é lembrado, celebrado, cultuado devido ao racismo, mas devido às suas decisivas ações políticas ao longo do século XX – ações aliás francamente progressistas e libertárias. Aparentemente, há bustos e estátuas de outras personagens cujas carreiras consistiram basicamente no comércio de escravos, na manutenção da escravidão: nesse caso, não há atenuantes, não há justificativas plausíveis para a celebração de suas memórias; mas, como argumentamos, são muito diferentes as situações de personagens como Churchill, Wilson e vários outros.

Doravante, quando nos referirmos ao ex-primeiro-ministro britânico e ao ex-presidente estadunidense (e a muitos, muitos outros), teremos que indicar claramente seus lamentáveis racismos, com bem mais que eventuais notas de rodapé: isso, entretanto, é muito diferente de desprezar suas importantes ações devido ao racismo; no final das contas, empregar o racismo como critério único para julgar a inteireza da vida de alguém não deixa de ser uma inesperada e lamentável vitória do próprio racismo sobre a liberdade, a fraternidade e a tolerância.

Relativismo histórico, anti-racismo e memórias históricas

Antes de mais uma nada, um preâmbulo contextualizador necessário.

No dia 25 de maio de 2020, na cidade de Minneapolis (capital de Minnesota), um negro de 46 anos chamado George Floyd foi parado pela polícia. Floyd foi imobilizado e, durante quase dez minutos, seu pescoço foi pressionado pelo joelho de um policial branco, resultando em sua morte, mesmo após dizer várias vezes que “I can’t breathe” (“eu não consigo respirar”) e também que não podia mover-se; a ação foi amplamente filmada e teve a assistência passiva de outros policiais que nada fizeram em benefício da vítima. O vídeo da ação evidencia que George Floyd – trabalhador desempregado devido à pandemia de covid-19 – foi realmente um assassinato, um exercício de brutalidade policial com conotações racistas, em um país que é historicamente dividido em termos raciais (em particular “brancos” vs. “negros”). As cenas são claras e brutais (como se pode ver aqui) e tudo isso gerou imediatamente reações e manifestações pelo mundo inteiro, incluindo manifestações presenciais (a despeito da pandemia), contra a violência policial e, ainda mais, contra o racismo.

Parte dos protestos anti-racistas dirigiu-se para os símbolos institucionais do racismo, isto é, para estátuas homenageando homens que foram racistas e/ou que promoveram a escravidão (negra em particular); tais estátuas foram depredadas, vandalizadas e mesmo retiradas de suas bases. Nesse sentido, não apenas monumentos de mercadores de escravos foram atingidas, como também as de líderes como o rei belga Leopoldo II (que explorou de maneira vil o Congo no início do século XX), o primeiro-ministro britânico Winston Churchill (que tinha preconceitos de raça e liderou a Inglaterra na resistência contra o nazismo na II Guerra Mundial), os exploradores europeus Cristóvão Colombo (que descobriu as Américas) e James Cook (que descobriu a Oceania e a Polinésia), além de muitos outros. Mais recentemente, nos Estados Unidos, a direção da Universidade de Princeton decidiu mudar o nome da Escola de Relações Internacionais, suprimindo a referência ao ex-Presidente dos EUA e ex-professor dessa faculdade Woodrow Wilson: embora tenha sido o responsável pelo decisivo ingresso dos EUA na I Guerra Mundial e a favor da Tríplice Entente (ou seja, do lado da França e da Inglaterra) e, depois da guerra, tenha sido o grande patrocinador político e moral da Liga das Nações (a predecessora do que, após 1945, viria a ser a Organização das Nações Unidas), além de ter lançado as bases do que se chamou, depois, de “teoria idealista de relações internacionais”, o sulista Wilson era racista e a favor da segregação racial dos negros.

Essa decisão de Princeton, bem como os ataques às estátuas, merecem várias reflexões a partir do Positivismo. Senão, vejamos.

Antes de mais nada, o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade sempre foi radicalmente contra o racismo e a favor da integração das “raças”. Em termos teóricos, o Positivismo sempre afirmou que as raças devem ser entendidas em termos sociológicos e nunca biológicos; aliás, no que se refere à Biologia, a Religião da Humanidade sempre teve enorme clareza de que existe apenas uma espécie, a espécie humana, ou, como se diz em inglês, “there is only one race, the human race” (“há apenas uma raça, a raça humana”). Em termos práticos, os positivistas sempre combateram a escravidão e afirmaram a importância da mistura das “raças”: no Brasil, por exemplo, ser dono de escravos antes de 13 de maio de 1888 era motivo para expulsão sumária dos grêmios positivistas; além disso, após a gloriosa Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, os positivistas foram os responsáveis pela transformação do 13 de maio em feriado nacional, celebrando a união nacional e a contribuição de todas as “raças” para a ordem e o progresso nacional; por fim, sempre fomos a favor de medidas públicas com vistas à integração dos negros e, de modo mais amplo, dos ex-escravos à sociedade, em vez de deixá-los largados à própria sorte (como acabou ocorrendo).

Os comentários do parágrafo anterior são necessários para que não haja absolutamente a menor dúvida quanto ao sentido do que escreverei abaixo e, de modo específico, para que não haja a menor dúvida de que sou contra o racismo e de que sou a favor da integração social e política dos “negros” à sociedade.

Considerando a decisão tomada pela Universidade de Princeton, ela parece-me pura e simplesmente errada. Como comentei antes, não defendo nem defenderei, nunca, o racismo; da mesma forma, não defenderei jamais comentários racistas que W. Wilson tenha feito sobre os negros. Na verdade, eu nem sabia que ele era racista. Mas essa ignorância a respeito do racismo de Wilson é indicador de o quanto ele é homenageado por outros motivos e apesar do racismo.

Como observei antes, ele foi o responsável pela participação (decisiva) dos EUA na I Guerra Mundial, pela criação da Liga das Nações e pela proposição do que se chama de “teoria idealista”: só isso já é título de glória perene e imorredoura para Wilson. Não há dúvida de que tais títulos vinculados à política externa não negam nem apagam o racismo interno, mas há que se pesar isso. Há que se ter o devido relativismo histórico e considerar (1) que o que hoje é (corretamente) inaceitável, um século atrás era desgraçadamente mais aceitável; (2) que as ações de Wilson pelas quais ele é (ou era) homenageado na Escola de Relações Internacionais de Princeton não se vinculam à política interna, mas à política internacional; (3) que ele era, no final das contas, apenas um ser humano e um ser humano de sua época e de seu lugar.

Essa decisão parece-me um erro que é motivado por uma paixão do momento; uma paixão justa, não há dúvida, mas, ainda assim, por mais justa que seja – e ela é, de fato, extremamente justa (“I can't breathe”, se duvidar, ficará marcado na história um pouco abaixo do “I have a dream” de Martin Luther King) –, nada muda o fato de que se trata (1) de uma paixão, (2) de uma paixão do momento e (3) que desconsidera princípios filosóficos humanistas mais amplos – no caso, o relativismo histórico necessário para avaliar as atuações de indivíduos em momentos que não os nossos. Não consigo deixar de pensar que essa decisão consiste em uma espécie de versão “ideológica” e invertida da “one-drop rule” (“regra da gota única”), em que um desgraçado racismo contamina de maneira indelével, permanente e irremissível todo o caráter e toda a vida do indivíduo.

O problema é que, afinal, quem é totalmente isento de máculas? Poucos são – e, a bem da verdade, mudando os pensamentos e até os preconceitos, sempre é possível encontrarmos defeitos insuspeitos em indivíduos até então considerados perfeitos. Vejamos: Gandhi foi o responsável por uma guerra civil entre hindus e muçulmanos na Índia e em Bangladesh. Nos EUA, Lincoln também era racista e contrário ao fim da escravidão, a despeito da 13ª Emenda. Mesmo Martinho Lutero Rei Filho era um pastor da religião dos brancos opressores.

No Brasil, há algumas décadas, tivemos a verdadeira histeria contra Monteiro Lobato. Eu gosto muito dos livros infantis dele, mas ele era cristão e em sua História do mundo para crianças ele fez apologia do cristianismo, o que me parece uma bobagem completa: por isso eu jogaria no lixo toda a sua obra? Ele também reforçou o estereótipo contra os caboclos, com o Jeca Tatu: deveríamos jogar no lixo toda a sua obra? No que se refere ao suposto racismo da Emília contra a tia Nastácia, deveríamos jogar fora o Sítio do Picapau Amarelo e condenar Monteiro Lobato? (De passagem, as propostas para jogar na lata do lixo toda a obra de Monteiro Lobato vieram do movimento negro informado pelos EUA – o mesmo movimento que considera a miscigenação uma forma de genocídio!) O que o relativismo histórico recomendava, e recomenda, para uma situação com essa? Evidentemente, manter a obra de Monteiro Lobato e indicar que é inaceitável o racismo demonstrado naquela passagem específica.

Esse relativismo histórico a que estamos referindo-nos consiste em entender que cada indivíduo integra sua época e, portanto, está condicionado pelos valores, pelas idéias e pelas práticas dessa época. Esse “condicionamento” o mais das vezes significa que os indivíduos estão limitados por suas épocas, embora os grandes indivíduos sejam justamente aqueles que conduzem, orientam, guiam os demais para além de suas épocas. Os valores, as idéias e as práticas de cada época, por mais que possam ser condenáveis em outros momentos (anteriores ou posteriores) devem ser entendidos como próprios àquele momento e, portanto, muitas vezes simplesmente não faz o menor sentido criticarmo-los. Um exemplo banal: o gigante intelectual que foi Aristóteles (384 aec-322 aec), em sua grande obra Política, afirma que a escravidão é algo natural e que, em particular, é própria aos “bárbaros”, isto é, àqueles que não eram gregos: nada disso seria aceitável nos dias atuais, mas, por outro lado, não faz sentido, não é justo criticarmos Aristóteles por ele ter tido essa concepção, datada de quase 2450 anos atrás.

Há um sentido adicional para o relativismo e que consiste em percebermos que cada um vive e age em diversos âmbitos; alguns podem caracterizar-se mais por elementos “progressistas”, enquanto outros podem ser mais “conservadores” e outros ainda podem ser mais “reacionários”. Há que se pesar cada um deles e considerar-se se qual desses aspectos apresenta um saldo positivo, isto é, superior aos demais. Aliás, ainda mais do que isso, é necessário considerar se um determinado aspecto da ação de um indivíduo foi mais progressista em um momento histórico determinado, mesmo que esse aspecto tenha ocorrido a despeito de outros elementos entendidos como menos positivos ou progressistas. As vidas de Woodrow Wilson e de Winston Churchill são exemplares nesse sentido: embora tenham sido racistas, eles foram centrais para a defesa das liberdades no século XX e para a vitória dos países e dos princípios que afirmam as liberdades, a dignidade humana, a tolerância, o respeito mútuo. Nesse sentido, é importante realçar que esses princípios defendidos por Wilson e Churchill, seja em termos teóricos (por meio de palavras), seja em termos práticos (por meio de suas ações e de suas lideranças), vão exatamente na contramão do racismo por eles defendido. Por fim, também é importante reforçar que os títulos de glória e de celebração de suas memórias foram estabelecidos apesar do racismo que eles defenderam e que esse mesmo racismo foi sempre posto de lado – sinal de que ele é motivo de vergonha e opróbrio.

O relativismo histórico defendido pelo Positivismo, portanto, não nega os defeitos que os indivíduos eventualmente possam ter e que de fato têm; entretanto, ao mesmo tempo, ele não deixa de perceber que esses mesmos defeitos têm que ser inseridos, sempre, nos momentos específicos em que cada indivíduo viveu e vive. Por fim, o relativismo também nos lembra que, no final das contas, somos todos seres humanos, isto é, seres falhos e limitados: o objetivo da religião é aperfeiçoar-nos, melhorar-nos, a partir dos progressos historicamente cumulativos; rejeitar os seres humanos de uma vez por todas e para sempre porque todos temos defeitos é o mesmo que negar a nós, seres humanos, essa mesma característica que nos torna humanos.

Duas observações finais para concluir este longo texto – observações à primeira vista secundárias mas que, bem vistas, revelam-se centrais.

Em primeiro lugar, as reflexões acima só fazem sentido se considerarmos que o ser humano é um ser histórico, que essa historicidade em grandes linhas é cumulativa e também que essa historicidade tem uma direção, que vai de um desconhecimento geral do mundo e do ser humano para o conhecimento cada vez maior do mundo e do ser humano e, daí, para uma valorização cada vez maior do próprio ser humano. Em outras palavras, é necessária o que se chama de uma “filosofia da história”; essa filosofia não é meramente um jogo de palavras, uma abstração altamente idealizada, mas consiste em um resultado de uma Sociologia histórica e comparativa; em outras palavras, é o resultado de uma investigação científica que considera a natureza humana e suas mudanças ao longo da história.

Em segundo lugar, o desenvolvimento do relativismo histórico é um dos resultados do estudo cotidiano do famoso calendário concreto, também conhecido apenas como “calendário positivista”, aquele que tem seus 13 meses nomeados por tipos como Moisés, Homero, São Paulo, Carlos Magno, Dante, Descartes etc. O objetivo desse calendário não é fornecer ao público (ocidental) um enorme catálogo de nomes, selecionados conforme as idiossincrasias de Augusto Comte: muito ao contrário, seu objetivo é no mínimo duplo. Por um lado, ele visa a promover o culto moral a grandes tipos históricos, que, com suas ações em seus contextos históricos específicos, permitiram, ao longo do tempo, que chegássemos aonde estamos; por outro lado, o estudo da vida e da ação de cada um desses tipos permite-nos – e, na verdade, exige – o desenvolvimento do relativismo histórico, no sentido que indicamos ao longo deste texto. Em outras palavras, o calendário histórico é ao mesmo tempo um profundo exercício cultual e um profundo exercício histórico e sociológico. Um de seus resultados é, precisamente, evitarmos uma “criticidade crítica”, destruidora, sem outros parâmetros que sua raiva constitutiva, ainda que bem intencionada e motivada por uma justíssima indignação.

Augusto Comte: o cão doméstico e o leão enjaulado

O trecho abaixo é um dos mais famosos escritos pela pena de Augusto Comte. Ele foi redigido em 1852 no v. 2 do seu Sistema de política positiva, que foi dedicado à exposição da estática social, isto é, da teoria da ordem; em particular, ele está no cap. 1, que por sua vez é dedicado à teoria geral da religião, ou "teoria positiva da unidade humana". 

(Vale notar que a teoria positivista da religião é de fato uma teoria geral da religião, pois não se limita a considerar que a "religião" é apenas a teologia, como aliás todos os filósofos e cientistas sociais fazem quase desde sempre: para Augusto Comte, a religião é o "re-ligare", é cada indivíduo ligar-se duas vezes, a primeira internamente (produzindo a harmonia mental individual) e a segunda externamente (resultando na harmonia social). Nesses termos, a religião para Augusto Comte pode ser teológica, metafísica ou positiva: a religião positiva, ou seja, o Positivismo, a Religião da Humanidade, é uma religião humanista, imanente, altruísta, histórica, relativa... todos esses predicados permitem que ela consagre o progresso social sendo também um elemento da ordem.)

O trecho abaixo apresenta uma belíssima comparação entre o cachorro doméstico e o leão enjaulado, a título de ilustrar a idéia de que a verdadeira harmonia mental e moral, por um lado, tem que ser voluntária e, por outro lado, tem que incluir a veneração pelos mais velhos, pelos superiores, pelos mais fortes. O caráter voluntário é condição para que a veneração não se torne abjeta nem desprezível; inversamente, a submissão dos mais fracos, dos inferiores e dos posteriores tem que ser complementada sempre e necessariamente pelo respeito e pela dedicação dos mais fortes, dos superiores e dos anteriores. Em outras palavras, a submissão - como todos os verdadeiros laços sociais - implica sempre um sistema de mútuos deveres, de complementaridades.

A comparação entre o cachorro doméstico - que é um dos melhores, se não o melhor, exemplo de dedicação voluntária de um animal para seu dono - e o leão enjaulado serve de ilustração preparatória para a comparação entre os proletários antigos (isto é, da Antigüidade clássica, greco-romana) e modernos. A referência aos animais não busca degradar os trabalhadores, como deve(ria) ser evidente; o que importa aí é indicar que as características afetivas e morais do ser humano são compartilhadas por vários animais superiores e que, assim, é possível ao mesmo tempo entendermos um pouco de nossa própria natureza ao comparar-nos com alguns animais superiores e também deixar de lado o orgulho - de origem teológica e mantido pela metafísica - de que apenas o ser humano teria características morais (o que é vertido pela teologia na concepção de que apenas os seres humanos, e apenas algumas "raças" entre nós, teriam "alma").

Adicionalmente, o trecho abaixo expõe de maneira clara que o Positivismo não é uma forma de mecanicismo moral e social, que ele não é contra a afetividade, que ele não é contra a subjetividade, que ele não é contra o estudo das intencionalidades humanas - mais uma vez, ao contrário do que diz a quase totalidade dos filósofos e cientistas sociais que se referem ao Positivismo e que apenas fingem conhecê-lo.

Após a citação em português incluímos o texto original em francês.

*   *   *

“Para melhor caracterizá-la [a disposição afetiva e coletiva do ser humano], retomemos por um momento a disposição teórica que prevaleceu mais ou menos até a época muito recente em que a Biologia demonstrou suficientemente a existência natural das afeições benevolentes. A unidade moral não poderia então resultar senão de um princípio egoísta. Ora, já provei suficientemente a inaptidão espontânea de um tal regulador. O sentimento de dependência exterior não poderia realmente o substituir. Por mais profunda que possa ser essa crença, ela inspira no máximo uma resignação forçada, se o exterior opuser uma resistência evidentemente intransponível. Mas essa triste situação moral difere muito da verdadeira disciplina afetiva, que deve sempre ser livre para tornar-se plenamente eficaz. É fácil senti-lo ao comparar o estado moral de um cachorro doméstico com o de um leão cativo. Quando uma longa experiência inspira ao segundo uma resignação passiva, a unidade moral não existe nele: ele flutua sem cessar entre uma luta impotente e um ignóbil torpor. Ao contrário, o desenvolvimento emocional do primeiro torna-se direto e contínuo assim que ele é capaz de subordinar suas inclinações egoístas aos seus instintos simpáticos. A comparação torna-se ainda mais decisiva ao opor-se o escravo antigo ao proletário moderno. Ainda que ambos, em termos materiais, apresentem quase a mesma existência pessoal, tanto ativa quanto passiva, a liberdade deste é unicamente o que o torna suscetível à verdadeira unidade moral, ao permitir o desenvolvimento de seus afetos benevolentes. A condição mais dura da escravidão antiga consistia, nas belas almas, em não poder nunca realmente viver para outrem, suas funções sendo sempre forçadas ou, pelo menos, sendo supostas assim. Também sentimos até que ponto a convicção usual da sujeição externa está longe de bastar para a unidade humana, embora seja indispensável até certo ponto. Afinal, quando essa dependência torna-se intensa demais, ela impede mesmo a disciplina afetiva que tende a resultar de um desenvolvimento espontâneo dos instintos altruístas. A felicidade e a dignidade de todos os seres animados requerem, portanto, o concurso habitual de uma necessidade sentida e de uma livre simpatia” (Augusto Comte, Sistema de política positiva, 1929 (1852), v. II, p. 15).


“Afin de mieux caractériser, reprenons un moment la disposition théorique qui prévalut plus ou moins jusqu’à l’époque trés-récente où la biologie démontra suffisamment l’existence naturelle des affections bienveillantes. L’unité morale ne pouvait alors résulter que d’un principe égoïste. Or, j’ai assez prouvé déjà l’inaptitude spontanée d’un tel régulateur. Le sentiment de la dépéndance extérieure ne saurait y suppléer réellement. Quelque profonde que puisse être cette croyance, elle inspire tout au plus une résignation forcée, si le dehors oppose une résistance évidemment insurmontable. Mais cette triste situation morale diffère beaucoup d’une véritable discipline affective, qui doit toujours être libre pour devenir pleinement efficace. Il est aisé de le sentir en comparant l’état moral d’un chien domestique avec celui d’un lion captif. Quand une longue expérience inspire au second une passive résignation, l’unité morale n’existe point en lui : il flotte sans cesse entre une lutte impuissante et une ignoble torpeur. Au contraire, l’essor affectif du premier devient direct et continu aussitôt qu’il a pu subordonner ses penchants égoïstes à ses instincts sympathiques. La comparaison se trouve encore plus décisive en opposant l’esclave antique au prolétaire  moderne. Quoique tous deux, sous le rapport matériel, présentent à peu près la même existence personnelle, tant active que passive, la liberté de celui-ci le rend seul susceptible d’une véritable unité morale, en permettant l’essor de ses affections bienveillantes. La plus dure condition de l’ancien esclavage devait consister, chez les belles âmes, à ne pouvoir jamais vivre réellement pour autrui, leur office étant toujours forcé, ou du moins supposé tel. On sent aussi combien la conviction habituelle de l’assujettissement extérieur est loin de suffire à l’unité humaine, quoiqu’elle y soit indispensable à un certain degré. Car, lorsque cette dépendance devient trop intense, elle empêche même la discipline affective qui tend à résulter d’un essor spontané des instincts altruistes. Le bonheur et la dignité de tout être animé exigent donc le concours habituel d’une nécessité sentie et d’une libre sympathie”.