28 junho 2020

Relativismo histórico, anti-racismo e memórias históricas

Antes de mais uma nada, um preâmbulo contextualizador necessário.

No dia 25 de maio de 2020, na cidade de Minneapolis (capital de Minnesota), um negro de 46 anos chamado George Floyd foi parado pela polícia. Floyd foi imobilizado e, durante quase dez minutos, seu pescoço foi pressionado pelo joelho de um policial branco, resultando em sua morte, mesmo após dizer várias vezes que “I can’t breathe” (“eu não consigo respirar”) e também que não podia mover-se; a ação foi amplamente filmada e teve a assistência passiva de outros policiais que nada fizeram em benefício da vítima. O vídeo da ação evidencia que George Floyd – trabalhador desempregado devido à pandemia de covid-19 – foi realmente um assassinato, um exercício de brutalidade policial com conotações racistas, em um país que é historicamente dividido em termos raciais (em particular “brancos” vs. “negros”). As cenas são claras e brutais (como se pode ver aqui) e tudo isso gerou imediatamente reações e manifestações pelo mundo inteiro, incluindo manifestações presenciais (a despeito da pandemia), contra a violência policial e, ainda mais, contra o racismo.

Parte dos protestos anti-racistas dirigiu-se para os símbolos institucionais do racismo, isto é, para estátuas homenageando homens que foram racistas e/ou que promoveram a escravidão (negra em particular); tais estátuas foram depredadas, vandalizadas e mesmo retiradas de suas bases. Nesse sentido, não apenas monumentos de mercadores de escravos foram atingidas, como também as de líderes como o rei belga Leopoldo II (que explorou de maneira vil o Congo no início do século XX), o primeiro-ministro britânico Winston Churchill (que tinha preconceitos de raça e liderou a Inglaterra na resistência contra o nazismo na II Guerra Mundial), os exploradores europeus Cristóvão Colombo (que descobriu as Américas) e James Cook (que descobriu a Oceania e a Polinésia), além de muitos outros. Mais recentemente, nos Estados Unidos, a direção da Universidade de Princeton decidiu mudar o nome da Escola de Relações Internacionais, suprimindo a referência ao ex-Presidente dos EUA e ex-professor dessa faculdade Woodrow Wilson: embora tenha sido o responsável pelo decisivo ingresso dos EUA na I Guerra Mundial e a favor da Tríplice Entente (ou seja, do lado da França e da Inglaterra) e, depois da guerra, tenha sido o grande patrocinador político e moral da Liga das Nações (a predecessora do que, após 1945, viria a ser a Organização das Nações Unidas), além de ter lançado as bases do que se chamou, depois, de “teoria idealista de relações internacionais”, o sulista Wilson era racista e a favor da segregação racial dos negros.

Essa decisão de Princeton, bem como os ataques às estátuas, merecem várias reflexões a partir do Positivismo. Senão, vejamos.

Antes de mais nada, o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade sempre foi radicalmente contra o racismo e a favor da integração das “raças”. Em termos teóricos, o Positivismo sempre afirmou que as raças devem ser entendidas em termos sociológicos e nunca biológicos; aliás, no que se refere à Biologia, a Religião da Humanidade sempre teve enorme clareza de que existe apenas uma espécie, a espécie humana, ou, como se diz em inglês, “there is only one race, the human race” (“há apenas uma raça, a raça humana”). Em termos práticos, os positivistas sempre combateram a escravidão e afirmaram a importância da mistura das “raças”: no Brasil, por exemplo, ser dono de escravos antes de 13 de maio de 1888 era motivo para expulsão sumária dos grêmios positivistas; além disso, após a gloriosa Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, os positivistas foram os responsáveis pela transformação do 13 de maio em feriado nacional, celebrando a união nacional e a contribuição de todas as “raças” para a ordem e o progresso nacional; por fim, sempre fomos a favor de medidas públicas com vistas à integração dos negros e, de modo mais amplo, dos ex-escravos à sociedade, em vez de deixá-los largados à própria sorte (como acabou ocorrendo).

Os comentários do parágrafo anterior são necessários para que não haja absolutamente a menor dúvida quanto ao sentido do que escreverei abaixo e, de modo específico, para que não haja a menor dúvida de que sou contra o racismo e de que sou a favor da integração social e política dos “negros” à sociedade.

Considerando a decisão tomada pela Universidade de Princeton, ela parece-me pura e simplesmente errada. Como comentei antes, não defendo nem defenderei, nunca, o racismo; da mesma forma, não defenderei jamais comentários racistas que W. Wilson tenha feito sobre os negros. Na verdade, eu nem sabia que ele era racista. Mas essa ignorância a respeito do racismo de Wilson é indicador de o quanto ele é homenageado por outros motivos e apesar do racismo.

Como observei antes, ele foi o responsável pela participação (decisiva) dos EUA na I Guerra Mundial, pela criação da Liga das Nações e pela proposição do que se chama de “teoria idealista”: só isso já é título de glória perene e imorredoura para Wilson. Não há dúvida de que tais títulos vinculados à política externa não negam nem apagam o racismo interno, mas há que se pesar isso. Há que se ter o devido relativismo histórico e considerar (1) que o que hoje é (corretamente) inaceitável, um século atrás era desgraçadamente mais aceitável; (2) que as ações de Wilson pelas quais ele é (ou era) homenageado na Escola de Relações Internacionais de Princeton não se vinculam à política interna, mas à política internacional; (3) que ele era, no final das contas, apenas um ser humano e um ser humano de sua época e de seu lugar.

Essa decisão parece-me um erro que é motivado por uma paixão do momento; uma paixão justa, não há dúvida, mas, ainda assim, por mais justa que seja – e ela é, de fato, extremamente justa (“I can't breathe”, se duvidar, ficará marcado na história um pouco abaixo do “I have a dream” de Martin Luther King) –, nada muda o fato de que se trata (1) de uma paixão, (2) de uma paixão do momento e (3) que desconsidera princípios filosóficos humanistas mais amplos – no caso, o relativismo histórico necessário para avaliar as atuações de indivíduos em momentos que não os nossos. Não consigo deixar de pensar que essa decisão consiste em uma espécie de versão “ideológica” e invertida da “one-drop rule” (“regra da gota única”), em que um desgraçado racismo contamina de maneira indelével, permanente e irremissível todo o caráter e toda a vida do indivíduo.

O problema é que, afinal, quem é totalmente isento de máculas? Poucos são – e, a bem da verdade, mudando os pensamentos e até os preconceitos, sempre é possível encontrarmos defeitos insuspeitos em indivíduos até então considerados perfeitos. Vejamos: Gandhi foi o responsável por uma guerra civil entre hindus e muçulmanos na Índia e em Bangladesh. Nos EUA, Lincoln também era racista e contrário ao fim da escravidão, a despeito da 13ª Emenda. Mesmo Martinho Lutero Rei Filho era um pastor da religião dos brancos opressores.

No Brasil, há algumas décadas, tivemos a verdadeira histeria contra Monteiro Lobato. Eu gosto muito dos livros infantis dele, mas ele era cristão e em sua História do mundo para crianças ele fez apologia do cristianismo, o que me parece uma bobagem completa: por isso eu jogaria no lixo toda a sua obra? Ele também reforçou o estereótipo contra os caboclos, com o Jeca Tatu: deveríamos jogar no lixo toda a sua obra? No que se refere ao suposto racismo da Emília contra a tia Nastácia, deveríamos jogar fora o Sítio do Picapau Amarelo e condenar Monteiro Lobato? (De passagem, as propostas para jogar na lata do lixo toda a obra de Monteiro Lobato vieram do movimento negro informado pelos EUA – o mesmo movimento que considera a miscigenação uma forma de genocídio!) O que o relativismo histórico recomendava, e recomenda, para uma situação com essa? Evidentemente, manter a obra de Monteiro Lobato e indicar que é inaceitável o racismo demonstrado naquela passagem específica.

Esse relativismo histórico a que estamos referindo-nos consiste em entender que cada indivíduo integra sua época e, portanto, está condicionado pelos valores, pelas idéias e pelas práticas dessa época. Esse “condicionamento” o mais das vezes significa que os indivíduos estão limitados por suas épocas, embora os grandes indivíduos sejam justamente aqueles que conduzem, orientam, guiam os demais para além de suas épocas. Os valores, as idéias e as práticas de cada época, por mais que possam ser condenáveis em outros momentos (anteriores ou posteriores) devem ser entendidos como próprios àquele momento e, portanto, muitas vezes simplesmente não faz o menor sentido criticarmo-los. Um exemplo banal: o gigante intelectual que foi Aristóteles (384 aec-322 aec), em sua grande obra Política, afirma que a escravidão é algo natural e que, em particular, é própria aos “bárbaros”, isto é, àqueles que não eram gregos: nada disso seria aceitável nos dias atuais, mas, por outro lado, não faz sentido, não é justo criticarmos Aristóteles por ele ter tido essa concepção, datada de quase 2450 anos atrás.

Há um sentido adicional para o relativismo e que consiste em percebermos que cada um vive e age em diversos âmbitos; alguns podem caracterizar-se mais por elementos “progressistas”, enquanto outros podem ser mais “conservadores” e outros ainda podem ser mais “reacionários”. Há que se pesar cada um deles e considerar-se se qual desses aspectos apresenta um saldo positivo, isto é, superior aos demais. Aliás, ainda mais do que isso, é necessário considerar se um determinado aspecto da ação de um indivíduo foi mais progressista em um momento histórico determinado, mesmo que esse aspecto tenha ocorrido a despeito de outros elementos entendidos como menos positivos ou progressistas. As vidas de Woodrow Wilson e de Winston Churchill são exemplares nesse sentido: embora tenham sido racistas, eles foram centrais para a defesa das liberdades no século XX e para a vitória dos países e dos princípios que afirmam as liberdades, a dignidade humana, a tolerância, o respeito mútuo. Nesse sentido, é importante realçar que esses princípios defendidos por Wilson e Churchill, seja em termos teóricos (por meio de palavras), seja em termos práticos (por meio de suas ações e de suas lideranças), vão exatamente na contramão do racismo por eles defendido. Por fim, também é importante reforçar que os títulos de glória e de celebração de suas memórias foram estabelecidos apesar do racismo que eles defenderam e que esse mesmo racismo foi sempre posto de lado – sinal de que ele é motivo de vergonha e opróbrio.

O relativismo histórico defendido pelo Positivismo, portanto, não nega os defeitos que os indivíduos eventualmente possam ter e que de fato têm; entretanto, ao mesmo tempo, ele não deixa de perceber que esses mesmos defeitos têm que ser inseridos, sempre, nos momentos específicos em que cada indivíduo viveu e vive. Por fim, o relativismo também nos lembra que, no final das contas, somos todos seres humanos, isto é, seres falhos e limitados: o objetivo da religião é aperfeiçoar-nos, melhorar-nos, a partir dos progressos historicamente cumulativos; rejeitar os seres humanos de uma vez por todas e para sempre porque todos temos defeitos é o mesmo que negar a nós, seres humanos, essa mesma característica que nos torna humanos.

Duas observações finais para concluir este longo texto – observações à primeira vista secundárias mas que, bem vistas, revelam-se centrais.

Em primeiro lugar, as reflexões acima só fazem sentido se considerarmos que o ser humano é um ser histórico, que essa historicidade em grandes linhas é cumulativa e também que essa historicidade tem uma direção, que vai de um desconhecimento geral do mundo e do ser humano para o conhecimento cada vez maior do mundo e do ser humano e, daí, para uma valorização cada vez maior do próprio ser humano. Em outras palavras, é necessária o que se chama de uma “filosofia da história”; essa filosofia não é meramente um jogo de palavras, uma abstração altamente idealizada, mas consiste em um resultado de uma Sociologia histórica e comparativa; em outras palavras, é o resultado de uma investigação científica que considera a natureza humana e suas mudanças ao longo da história.

Em segundo lugar, o desenvolvimento do relativismo histórico é um dos resultados do estudo cotidiano do famoso calendário concreto, também conhecido apenas como “calendário positivista”, aquele que tem seus 13 meses nomeados por tipos como Moisés, Homero, São Paulo, Carlos Magno, Dante, Descartes etc. O objetivo desse calendário não é fornecer ao público (ocidental) um enorme catálogo de nomes, selecionados conforme as idiossincrasias de Augusto Comte: muito ao contrário, seu objetivo é no mínimo duplo. Por um lado, ele visa a promover o culto moral a grandes tipos históricos, que, com suas ações em seus contextos históricos específicos, permitiram, ao longo do tempo, que chegássemos aonde estamos; por outro lado, o estudo da vida e da ação de cada um desses tipos permite-nos – e, na verdade, exige – o desenvolvimento do relativismo histórico, no sentido que indicamos ao longo deste texto. Em outras palavras, o calendário histórico é ao mesmo tempo um profundo exercício cultual e um profundo exercício histórico e sociológico. Um de seus resultados é, precisamente, evitarmos uma “criticidade crítica”, destruidora, sem outros parâmetros que sua raiva constitutiva, ainda que bem intencionada e motivada por uma justíssima indignação.

Um comentário:

  1. É muito curioso ver as alegações dos que temem o relativismo histórico. Parecem crer que a menos que qualquer questão seja traduzida sempre e necessariamente em termos de um "tudo ou nada", ficaremos à mercê de uma suposta confusão onde sempre se poderia encontrar justificativa para qualquer coisa. No entanto, é justamente quando se pode situar as coisas, que elas se tornam compreensíveis; e em se tornando melhor compreensíveis, também melhor mais profunda e maduramente julgáveis. Fisiologicamente não me parece coincidência que essa filosofia do tudo ou nada seja também aquela que emerge em momentos de crise social e de forte tensão nervosa. A adrenalina tende a reduzir o que poderíamos chamar de visão periférica das idéias, evitando-nos distrações e ao mesmo tempo mobilizando o corpo para uma ou outra de duas situações: ataque ou fuga. No entanto esse "clareamento" da mente, facilitado pela adrenalina e que nos permite reações mais rápidas com menor intervenção cortical tem seu preço. Transformada numa filosofia, seremos por ela guiados até o cúmulo da intolerância, e com tanto maior velocidade quando acabamos por chegar à própria condição de viciados nessa substância.

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