19 abril 2016

Teológicos criticam referências a deuses no impedimento de Dilma Rousseff

É motivo de alegria saber que inúmeras instituições teológicas manifestaram-se contra as referências aos deuses na votação do impedimento de Dilma Rousseff: é importante afirmar e fortalecer o Estado laico.

O original da matéria abaixo pode ser lido aqui.

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Religiosos criticam citações a Deus na sessão da Câmara que votou impeachment

  • 19/04/2016 06h37
  • Brasília
Isabela Vieira* - Repórter da Agência Brasil
As referências à religião e a Deus nos discursos de parte dos deputados que decidiram, no domingo (17), pela abertura de processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff incomodaram religiosos. Em defesa da separação entre a fé e a representação política, líderes de várias entidades criticaram as citações e disseram que os posicionamentos violam o Estado laico.
Durante a justificativa de voto, os parlamentares usaram a palavra “Deus” 59 vezes, quase o mesmo número de vezes que a palavra “corrupção”, citada 65 vezes. Menções aos evangélicos aparecem dez vezes, enquanto a palavra “família” surgiu 136, de acordo com a transcrição dos discursos, no site da Câmara dos Deputados. Ao votar, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, disse: “Que Deus tenha misericórdia desta Nação”. O apelo foi feito também por Cunha ao abrir a sessão: “Que Deus esteja protegendo esta Nação”.
Para o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), composto pelas igrejas Evangélica de Confissão Luterana, Episcopal Anglicana do Brasil, Metodista e Católica, que havia se manifestado contra o impeachment, assim como a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ligada à Igreja Católica, as menções não surpreenderam. A presidenta da entidade, a pastora Romi Bencke, disse que as citações distorcem o sentido das religiões. “Não concordamos com essa relação complexa e complicada entre religião e política representativa”, afirmou.
Segundo Romi, uma das preocupações dos cristãos é com o uso da religião para justificar posicionamento em questões controversas. A fé, esclareceu, pode contribuir, com uma cultura de paz, com a promoção do diálogo e com o fortalecimento das diversidades. Porém, advertiu, “tem uma faceta de perpetuar violência”, quando descontextualizada. “Infelizmente, vimos que os parlamentares que se pronunciaram em nome de Deus, ao longo do mandato, se manifestam contra mulheres, defendem a agenda do agronegócio e assim por diante. Nos preocupa bastante o fato de Deus ser invocado na defesa de pautas conservadoras – é ruim adjetivar, mas é a primeira palavra que me ocorre – e de serem colocadas citações bíblicas descontextualizadas. Não aceitamos isso e eu acho que é urgente refletir sobre o papel da religião na sociedade”.
O teólogo Leonardo Boff, que já foi sacerdote da Igreja Católica, expoente da Teologia da Libertação no Brasil e hoje é escritor, também criticou o discurso religioso dos parlamentares que, na sua opinião, colocaram em segundo plano os motivos para o pedido de impeachment, as pedaladas fiscais e a abertura de créditos suplementares pelo governo de Dilma
Golpe de 64
Em seu blog na internet, Boff disse que os argumentos apresentados se assemelharam aos da campanha da sociedade que culminou com o golpe militar em 1964, quando as marchas da religião, da família e de Deus contra a corrupção surgiram. Ele destacou o papel de parlamentares da bancada evangélica que usaram o nome de Deus inadequadamente.
“Dezenas de parlamentares da bancada evangélica fizeram claramente discursos de tom religioso e invocando o nome de Deus. E todos, sem exceção, votaram pelo impedimento. Poucas vezes se ofendeu tanto o segundo mandamento da lei de Deus que proíbe usar o santo nome de Deus em vão”, afirmou. O teólogo também criticou aqueles que citaram suas famílias.
O Interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, entidade que reúne representantes de várias religiões, o babalawó Ivanir dos Santos, comentou que os deputados transformaram o que deveria ser uma decisão política, neutra, em um ato messiânico. “As pessoas têm tentado fazer uma atuação messiânica, voltada a uma orientação religiosa, que não leva em conta a diversidade da sociedade, ao justificar ações no Congresso Nacional”, disse.
Ele alertou para os riscos de as convicções morais e religiosas, na política, serem usadas para atacar religiões com menos fiéis, como é o caso do candomblé e da umbanda.
“Parte das pessoas que falaram em Deus e religião, e que agora ganham mais força, persegue religiões de matriz africana”, denunciou. “A nossa preocupação é com as casas irresponsavelmente associadas ao diabo e incendiadas, as de candomblé, e com a educação sobre a África e a cultura afro-brasileira, onde dizem que queremos ensinar macumba”.
Budistas
Os budistas acreditam que os deputados misturaram religião e interesses particulares. O líder do Templo Hoshoji, no Rio, o monge Jyunsho Yoshikawa, se disse incomodado e lembrou que os representantes deveriam ter mais cuidado. “Não foi agradável ouvir os discursos em nome de Deus, como se representassem Deus e como se Deus estivesse falando ou decidindo”, advertiu. “Religião e política não se misturam. Política envolve interesses pessoais”.
O monge afirmou que, como seres humanos, os políticos são “imperfeitos”, e lamentou que o Congresso seja uma pequena mostra disso .“É preciso olhar no espelho. Tudo que vimos é o que a sociedade é. Se teve citação despropositada de Deus, um xingando o outro de 'bicha', se teve cusparada ou defesa do regime militar é porque nossa sociedade é assim. Não adianta querer melhorar a política se nós não buscamos nos tornar pessoas melhores”, disse Jyunsho, em relação ao episódio em que o deputado Jean Willys (PSOL) cuspiu em Jair Bolsonaro (PP).
Da mesma forma pensam ateus e agnósticos, aqueles que não acreditam em Deus ou qualquer outra divindade. O presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, Daniel Sottomaior, também questionou a postura de deputados, evangélicos principalmente. Para ele, a falta de compreensão sobre um Estado Laico, neutro, fere a liberdade da população.
Discordando dos demais religiosos, o Conselho Político da Convenção Geral das Assembleia de Deus no Brasil viu nos discursos uma demonstração de “insatisfação” com ideias liberais. “Existe um grupo que luta para manter tradição, costumes, a fé em Deus, entre eles, os evangélicos, que tem como base principal, na sua vida e na sua atuação política, a palavra de Deus. Essas manifestações traduziram isso”, disse o presidente da entidade, pastor Lelis Washington.
Os evangélicos que estão no Congresso, explicou, estão comprometidos em evitar o avanço de leis que violem a liberdade de culto e de tradição. “Eu já vi tentativa de colocar em lei [relativa ao] meio ambiente a tese da união de pessoas do mesmo sexo, então, o que acontece, conceitualmente, é que os deputados que se manifestaram contra isso também.”


*Colaborou Nanna Pôssa, repórter do Radiojornalismo   //   A matéria foi ampliada às 11h16
Edição: Graça Adjuto

09 abril 2016

Entrevista sobre a crise política II

Mais uma entrevista que concedi a respeito da crise política por que passa o Brasil.

Ela foi publicada no jornal carioca Monitor Mercantil; o original pode ser lido aqui.

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Impeachment seria ambíguo para o PT

 “A aceitação do pedido de impeachment por Eduardo Cunha ocorreu devido a motivos mesquinhos e estritamente pessoais da sua parte; mas o fato é que há um clima social amplamente favorável.” A declaração é do sociólogo da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Gustavo Biscaia de Lacerda, doutor em Sociologia Política e pós-doutor em Teoria Política também pela Federal de Santa Catarina (UFSC). Para ele, entretanto, se Dilma não sair, PT e governo terão forças para administrar isso no Congresso. Além disso, Gustavo diz que PSDB e DEM não terão grande ganho com pensam com destituição de Dilma: “Se há algum partido político realmente beneficiado com o impedimento de Dilma Rousseff, esse partido será o PMDB.”

Gustavo Biscaia diz ainda que “uma guerra civil está longe do nosso horizonte, mas não dá para descartar totalmente”. Em entrevista exclusiva ao MONITOR MERCANTIL, o sociólogo comenta vários assuntos referentes ao cenário político atual, como, por exemplo, a imagem do Lula, o Bolsa Família, as “elites reacionárias” e, é claro, o impedimento de Dilma.


Com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, como fica a divisão de forças em Brasília?

– Desde já se percebe uma polarização muito marcada no Brasil como um todo; nesse sentido, Brasília simplesmente reproduz, em escala menor mas mais acentuada, o que se passa no resto do Brasil. Embora esteja longe de ser algo banal (devido aos efeitos que pode acarretar para o país), o pedido de impedimento de um presidente, por si só, não apresenta grande novidade: nos anos 90 o PT pediu várias vezes o impeachment de FHC. O que há de específico no presente caso é que o presidente da Câmara dos Deputados aceitou considerar o pedido contra Dilma; é verdade que Eduardo Cunha (PMDB-RJ) tomou essa decisão devido a motivos muito particulares (e mesquinhos), mas, por outro lado, convém notar que no final de 2014 a própria eleição de Cunha para presidente da Câmara já revelava uma divisão de forças em Brasília – divisão aliás desfavorável para Dilma, causada especificamente pela própria presidente. O impeachment acentuará alguns traços atuais da política brasileira, no sentido de que vários setores ficarão mais e mais polarizados – especificamente o PT e grupos ligados a ele. Por outro lado, o novo governo fará um grande esforço para aparecer como de união nacional, o que implica que tentará não ser radical nem polarizar.

O PT vai sentir os reflexos na próxima eleição presidencial?

– Sem dúvida alguma, mas, no fundo, o impedimento de Dilma, caso tenha êxito, será ambíguo para o PT, já a partir das eleições deste ano: por um lado, permitirá que o partido adote a retórica do “golpe”, das “elites reacionárias”, do “capitalismo internacional”, do “neoliberalismo”, ou seja, permitirá ao PT retomar a sua tradicional retórica oposicionista, a que se somará a partir deste ano a figura do “golpe”. Os movimentos sociais que sempre deram apoio ao PT foram sistematicamente cooptados pelo partido ao longo dos últimos 15 anos, por meio de generosos auxílios, além da participação direta na estrutura do Estado; tais grupos continuarão a apoiar o PT, seja devido a seus interesses corporativistas, seja devido a afinidades ideológicas, seja devido à confusão entre os dois fatores; mas, por outro lado, o fato é que a própria ocorrência do impedimento evidencia um desgaste muito grande do partido, isto é, da imagem que o PT possui junto aos vários segmentos da sociedade. Historicamente a taxa de rejeição ao PT sempre foi relativamente alta, em torno de 30%; Lula ganhou sua primeira eleição em 2001 porque, naquele momento, ele abandonou a sua tradicional retórica radical e, ao mesmo tempo, a taxa de rejeição ao PSDB e à imagem que esse partido possui aumentou muito. Mas desde 2013 a rejeição ao PT, ao governo de modo geral e a Dilma aumentaram muito, especialmente depois das eleições de 2014, em que a polarização aumentou e que o governo praticou um estelionato eleitoral (ao praticar exatamente as mesmas políticas que condenara nos seus adversários e que jurara que jamais faria). A crise econômica e as investigações da Lava Jato aumentam ainda mais essa insatisfação.

Em sua opinião, como fica o nome do ex-presidente Lula na história do país?

– Depende de quem pronuncia o seu nome. Indiscutivelmente ele foi um dos maiores líderes do país e suas eleições para presidente indicam um forte desejo da população brasileira de mudar alguns rumos do país, no sentido de promover a inclusão social. Sem embargo do seu caráter de grande líder, à medida que o tempo passa, isto é, à medida que se adota uma perspectiva histórica, de longo prazo, percebe-se que Lula falhou, quando não fracassou, em uma série de aspectos da vida nacional. A política econômica que seguiu teve efeitos positivos imediatos, mas também se beneficiou de um ambiente internacional extremamente favorável (alta do preço das commodities, taxas internacionais de juros reduzidas): ainda assim, a despeito dos vários anos de crescimento econômico, não ocorreram investimentos efetivos na infraestrutura econômica do país (limitados à “privatização” de determinados setores, na forma de concessão, como alguns aeroportos, rodovias etc.), nem se reverteu a desindustrialização nacional (bem ao contrário: investimos maciçamente nos setores primários e exportadores, transferindo a dependência em relação aos EUA para a China). Com Lula investiu-se em novas parcerias internacionais, mas, no final, essa multilateralização consistiu muito mais em trocar os antigos parceiros comerciais por outros que em ampliar o nosso leque. De passagem, convém notar que na década de 2000 tornamo-nos um dos principais propulsores da “globalização”. O Mercosul, nesse período, ficou travado em suas negociações comerciais, preso às restrições que o bloco impõe, aceitando as reiteradas violações comerciais praticadas pela Argentina e ainda nos sujeitando às diatribes da Venezuela de Hugo Chávez. Enquanto isso, o acordo comercial com a União Europeia não saiu do papel, mas outros países (Chile, México) avançaram muito em termos de comércio internacional. No que se refere à política internacional, embora tenha mantido relações amigáveis com os EUA, o fato é que o Brasil preferiu apoiar a aventura do bolivarianismo e vangloriou-se de celebrar um duvidoso e desnecessário acordo nuclear com o Irã.

Ainda no que se refere à política internacional, em 2007-2008 Lula apoiou pessoalmente a celebração do acordo do Brasil com o Vaticano – a Concordata – seguida pela aprovação do acordo no Congresso Nacional. A Concordata é uma violação clara e brutal da laicidade do Estado, ao conceder um caráter internacional para os numerosos privilégios que a Igreja Católica possui junto ao Estado brasileiro. Também é importante notar que Dilma Rousseff foi eleita e reeleita graças à indicação e ao apoio pessoais de Lula e sempre se apresentou como fiador político e moral de sua sucessora: nesse sentido, ele tem responsabilidade pelos destinos do país após 2010.

Mesmo em termos de políticas sociais, a atuação de Lula é menor do que ele afirma. Sem dúvida alguma, o Bolsa Família é um projeto importante, que encaminha alguns problemas brasileiros. Mas, por um lado, o Bolsa Família surgiu após o fiasco do Fome Zero e a partir da reunião e ampliação de uma série de políticas existentes pelo menos desde os anos 1990. Por outro lado, o Bolsa Família prevê dois aspectos, um paliativo e outro “prospectivo””: a parte paliativa é a mais visível e a mais criticada (incorreta e injustamente, é importante indicar), que é a do pagamento de valores financeiros para famílias de baixíssima renda; a parte “prospectiva” é a do investimento em infraestrutura e em recursos humanos, para combater a transmissão intergeracional da pobreza. A obrigatoriedade de as mães que recebem o Bolsa Família de mandarem os filhos para as escolas é algo importante, mas a falta de investimentos em infraestrutura e a má gestão econômica minam completamente esse lado da política. Dito tudo isso, é necessário lembrar que desde já há uma disputa sobre qual seria o “legado de Lula”. Essa disputa verifica-se na atual conjuntura de impedimento de Dilma Rousseff, mas é mais claramente visível, por exemplo, em livros escolares de História: muitos desses livros, que têm que passar pela chancela do MEC, são louvaminheiros em relação a Lula e, não por acaso, assumem o discurso político-partidário contra FHC, de maneira dicotômica.

Esse impeachment vai refletir no pleito municipal?

– O efeito imediato – que é o que se sentirá nas eleições municipais – é a radicalização dos discursos políticos, a favor e contra o PT, ou “contra o golpe” e “contra a corrupção”. De qualquer maneira, o PT já se encontra bastante enfraquecido e a tendência é que tenha resultados bastante minguados no final deste ano.

PSDB e DEM vão sair fortalecidos, caso a destituição de Dilma se concretize?

– Não me parece que nenhum desses dois partidos terá um grande ganho com o impedimento de Dilma. Há muitos anos o DEM está enfraquecendo-se paulatinamente, com seus quadros migrando para outros partidos, sejam eles estabelecidos ou novos (PSD, Solidariedade, Partido Novo etc.). Já o PSDB deve ter algum ganho com o impeachment. Por um lado, ele é o principal partido de oposição e é natural que assuma cargos em um eventual governo Michel Temer; por outro, esse mesmo eventual Governo Temer precisará de uma “base de apoio” e, nesse caso, o PSDB será importante. Ainda assim, o PSDB não lucrará tanto quanto se poderia pensar à primeira vista. O PT sofre um enorme desgaste por sua própria conta, mas isso integra um movimento mais amplo de perda geral de legitimidade dos políticos, vistos como corruptos, preocupados apenas com os próprios interesses, despreocupados com o bem-estar da população etc. Além disso, vários nomes de peso do PSDB, a começar por Aécio Neves e Geraldo Alckmin, têm sido ligados a esquemas de corrupção e/ou de comportamento antiético (consumo de cocaína, máfia dos trens de metrô etc.). Assim, se houver algum partido político realmente beneficiado com o impedimento de Dilma Rousseff, esse partido será o PMDB.

Em sua opinião há uma polarização política no país atualmente?

– Isso vem desde o início do Governo Lula, em 2002, por seu estímulo direto, que gostava de falar em “elites brancas”, “nunca antes na história deste país” etc. e que nunca deixou de comparar o seu governo com o de FHC. Mas durante os governos de Lula, essa retórica da divisão permaneceu no âmbito retórico; nas eleições presidenciais de 2010, a polarização apresentou-se de maneira clara, pois o candidato do PT já não era o mítico Lula e, por seu turno, o candidato do PSDB, José Serra, introduziu temas altamente sensíveis, com o objetivo de minar a candidatura de Dilma Rousseff: foram os temas do kit gay, tema sensível para os evangélicos, que, além disso, teve o nefasto efeito de minar a laicidade do Estado. Em 2013, a insatisfação popular com os políticos e com os serviços públicos resultou nas “jornadas de julho”. O governo, por ser governo, foi imediatamente criticado e perdeu apoio popular; a isso se soma a desastrosa reação de inúmeros políticos intelectuais ligados ou próximos ao PT, para quem as “jornadas de julho” eram manifestação de um (re)nascente fascismo brasileiro. Para piorar, no final desse ano divulgou-se a prática de maquiar o orçamento federal, a fim de disfarçar o déficit público.

Em 2014, a fraqueza do PT, de Dilma e até de Lula refletiram-se no fato de que Dilma somente foi reeleita no segundo turno e por uma ínfima diferença de votos. Também convém lembrar que parte da polarização de 2014 deve-se aos quase desesperados esforços de Dilma e do PT para “desconstruir” a candidatura de Marina Silva, que ganhou projeção graças a um acidente fatal e que era vista como uma possibilidade de “renovação na continuidade” da política brasileira. Nos meses seguintes às eleições, PSDB e Aécio propuseram algumas teses que, naquele momento, eram no mínimo discutíveis: impedimento imediato de Dilma Rousseff, novas eleições, cassação da chapa Dilma–Temer. Isso manteve o ambiente tenso. Mas, de qualquer maneira, o estelionato eleitoral de Dilma logo reacendeu as paixões, a que se somaram o avanço das investigações da Operação Lava Jato e os problemas das “pedaladas fiscais”.

Segundo alguns deputados da base do governo, caso Dilma seja destituída ou renuncie o PT pode ou não sair do mapa político do país?

– O PT não sairá do mapa político do país, simplesmente porque é um partido legal e legítimo. Ele tem força em várias partes do país e, de qualquer maneira, mantém uma estrutura partidária importante, com governadores, senadores, deputados, vereadores, prefeitos eleitos, com apoio de movimentos sociais e também de intelectuais e estudantes. Isso não equivale a dizer que o PT manterá a mesma importância atual: é um partido que tende a diminuir fortemente, embora isso possa demorar mais ou menos tempo. Da mesma forma, ele atualmente tem um sério problema de identidade (na verdade, sempre teve): não sabe se é governo ou se é socialista, se é renovação ou se é continuidade das práticas político-sociais brasileiras. A crítica que deputados e movimentos sociais ligados ao PT fazem à política econômica de Dilma Rousseff desde as eleições de 2014 – combatendo o necessário ajuste fiscal que o governo do próprio PT teria que implementar – revela o quanto o partido está confuso.

Alguns petistas estão comparando o atual momento político com o que o Jango passou em 1964; já linhas bem mais à esquerda, como o Partidão, não veem semelhança e dizem que a situação é outra. Em sua opinião, há ou não?

– A retórica do golpe é claramente exagero e pura retórica. O problema é que a retórica produz efeitos concretos na política, especialmente em momentos de grande tensão, como atualmente. Mas é necessário reconhecer que a comparação com 1964 – certa ou errada – acaba sendo inevitável: em 1964 a sociedade brasileira dividia-se em termos de direita e esquerda, em termos de anticomunismo e pró-comunismo; a isso se somava o caráter que as Forças Armadas de modo geral, e do Exército em particular, tinham de “Poder Moderador” da República. Nada disso se verifica hoje, a despeito dos rompantes anticapitalistas da extrema esquerda e dos desejos de intervenção militar da recém-surgida extrema direita. As manifestações atualmente são contra o PT, sem dúvida; mas são majoritariamente contra o PT porque se entende que esse partido não entregou o que prometeu em termos de progresso político e social e, ao contrário, produziu crise econômica e gigantescos escândalos políticos. Em suma, as manifestações atuais, em última análise, são mais contra a corrupção e contra um sistema político que se vê fortemente deslegitimado que contra uma proposta mais abstrata de sistema social e político.

Essa crise política pode dividir o país, uma vez que o ex-presidente Lula já deu declaração dizendo que pode convocar o “exército de Stédile” (MST) para proteger o PT e a Dilma?

– As chances de isso ocorrer são um tanto remotas, mas não podem ser desprezadas. Quais as variáveis importantes para evitar uma conflagração geral? Que os extremos políticos sejam controlados e permaneçam sob controle. No caso específico da declaração de Lula, ela foi, no mínimo, irresponsável. É claro que sempre é possível dizer que foi uma frase dita em um momento de arroubo, ou que ela deve(ria) ser entendida de maneira figurada etc. O problema é que Lula é uma pessoa que não faz a menor questão de controlar seus arroubos retóricos, ao mesmo tempo em que esse tipo de afirmação pode ser entendida de maneira literal por muitos grupos, resultando em problemas sociais mais adiante.

Então, essa declaração coloca mais lenha na fogueira ou é só uma figura de retórica?

– O Brasil precisa de apaziguamento, não de aumento das tensões – que, diga-se de passagem, são tensões que não se referem a clivagens profundas da sociedade brasileira, como ocorreu em outros momentos da nossa história.

Há possibilidade de o país viver uma ditadura? Ou sua primeira guerra civil? Ou guerra civil e ditadura no final?

– Antes de mais nada, é necessário notar que o Brasil já viveu guerras civis antes: a Revolução Farroupilha (1835-1845), as Revoltas da Armada e a Revolução Federalista (1892-1894), a Guerra de Canudos (1896-1897) e Revolução Constitucionalista (1932). No que se refere a uma ditadura, parece-me improvável. Como comentei antes, deixando de lado os grupos extremistas à esquerda e, principalmente, à direita, ninguém defende o fim da ordem constitucional vigente nem a interrupção das liberdades públicas; bem ao contrário, as manifestações que se vê baseiam-se nessas liberdades e celebram-nas. Uma guerra civil está longe do nosso horizonte, mas não dá para descartar totalmente. As conclamações ao “exército do Stédile”, as reiteradas afirmações dos apoiadores do PT de que o processo de impedimento é “golpe” e manifestações desse tipo estimulam a polarização política do país; essa polarização, por sua vez, se se mantiver ao longo do tempo, pode cristalizar-se e aumentar ainda mais, resultando em conflitos físicos de grandes proporções entre os grupos opostos.

Se nada disso se concretizar e Dilma não sair do governo, PT e governo terão forças para administrar isso no Congresso?

– Infelizmente, não. É bem verdade que a aceitação do pedido de impedimento pelo presidente da Câmara ocorreu devido a motivos mesquinhos e estritamente pessoais da sua parte; mas o fato é que há um clima social amplamente favorável ao impedimento, Dilma já se mostrou incapaz de dirigir o seu governo e de negociar com o Congresso e uma parte expressiva, para não dizer a maior parte, dos atuais deputados federais já demonstrou uma grande venalidade no trato da coisa pública e do Estado brasileiro. Não que um eventual Governo Temer vá enfrentar uma situação muito diferente, ainda que a saída de Dilma via impedimento (ou renúncia) teria um efeito catártico na maior parte da população brasileira, a que se somaria um esforço de Michel Temer para constituir um governo de união nacional e de transição até 2018.


Marcelo Bernardes

30 março 2016

Entrevista sobre a crise política brasileira

No dia 28 de março de 2016, participei do programa Curitiba & Você, da TV Transamérica. Foi uma entrevista de cerca de 15 minutos, muito tranqüila e agradável, com a jornalista Eliz Porfílio, sobre minha interpretação política e sociológica das sérias crises que o Brasil enfrenta atualmente.

O vídeo está disponível por meio destes vínculos:

- TV Transaméricahttp://transamerica.tv.br/variedade/curitiba-e-voce-crise-politica-brasileira/

- Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=-mpB4rYy0xQ.

11 março 2016

Sociologização do indivíduo ou reducionismo da sociedade?

 

Nas Ciências Sociais – e, possivelmente, também nas demais ciências – há determinadas concepções que, embora sendo puramente intelectuais, isto é, “teóricas”, têm um fraco estatuto propriamente teórico[1]. O que quero dizer com “fraco estatuto teórico”? Que essas concepções são representações, idéias, formulações que funcionam como que de recordatórios, ou como guias práticos; assim, não integram o núcleo duro de doutrinas teóricas, mas, por outro lado, ao terem um caráter intelectual, não podem deixar de ser qualificadas de “teóricas”.

Essas concepções, conforme as entendo, são ao mesmo tempo regras práticas para entendimento de determinadas realidades e questões empíricas e também, por esse motivo, o começo das teorizações. Entretanto, na medida em que elas atuam como guias para compreender determinas situações, elas têm que se relacionar com corpos teóricos mais amplos e mais robustos, surgidos a partir de pesquisas bastante anteriores ou derivados de investigações desenvolvidas a partir da aplicação desses recursos. Dessa forma, embora esses artifícios intelectuais atuem como regras práticas para as pesquisas, bem vistas as coisas eles vinculam-se intimamente com as teorias; eles seriam mais “pontas de icebergs” que “fiapos teóricos”.

Tais situações apresentam-se com clareza quando se realiza investigações sociológicas empíricas com entrevistas, sejam pesquisas qualitativas, sejam pesquisas quantitativas[2]. Nesses casos, o que se apresenta à primeira vista é somente um conjunto maior ou menor de indivíduos, a quem se pode (e deve) aplicar questionários sobre inúmeras questões. Ora, o resultado dessa aplicação de questionários – novamente: quantitativos ou qualitativos, tanto faz – consiste tão-somente em uma coleção mais ou menos dispersa de respostas, que pode indicar qual o “perfil” desses alunos, mas que por si só não tem nenhum caráter verdadeiramente sociológico: novamente, por si sós esses questionários apenas fornecem uma coleção de indivíduos justapostos, não uma concepção qualquer de verdadeira coletividade. Além disso, esse problema de falta de coletividade – esse “déficit sociológico”, por assim dizer – aplica-se ao conjunto da pesquisa, ou seja, a todas as suas etapas, desde a concepção geral até a aplicação dos questionários e a eventual interpretação dos resultados.

Ora, é necessário termos clareza de que, para uma interpretação verdadeiramente sociológica, entender os entrevistados apenas como uma coleção de indivíduos – que porventura compartilhem características e traços – consiste em um excesso de empirismo; ou, por outra, insistir em entender a coleção de indivíduos resultante da realização de entrevistas apenas como uma coleção de indivíduos é recusar-se a abstrair e aferrar-se de maneira daninha – e profundamente equivocada – a uma concepção estreita de objetividade. O excesso de objetividade, em detrimento da abstração, foi denominado por Augusto Comte de “idiotismo”, a que se contrapõe o excesso de subjetividade, que seria propriamente a loucura. A esse excesso de empirismo (que podemos denominar por meio do terrível neologismo “empiricismo”) com freqüência se soma uma filosofia geral (ou mesmo uma filosofia social) que enfatiza os indivíduos e o individualismo (tanto moral quanto “filosófico”): por certo que empiricismo e individualismo relacionam-se, ou podem relacionar-se, intimamente, mas eles são concepções diversas em termos morais, intelectuais e práticos.

Por outro lado, a dificuldade em realizar a passagem (1) da objetividade e do empirismo ingênuos/radicais que consiste em perceber apenas indivíduos (2) para a abstração (portanto, mais ou menos subjetiva) que consiste em ver aí não apenas “indivíduos”, mas coletividades em ação – essa dificuldade é um dos mais importantes e mais sérios (na verdade, no fundo ele consiste no principal) “obstáculos epistemológicos” para a imaginação sociológica e, portanto, para a própria constituição da Sociologia[3].

Assim, temos que ter clareza de que, partindo-se do empiricismo individualista descrito acima, é virtualmente impossível resolver o problema da passagem teórica da “coleção de indivíduos” para uma “coletividade”; a única forma de resolvê-lo é evitá-lo. Em outras palavras, é necessário ultrapassar liminarmente o obstáculo epistemológico do excesso de objetividade e adotar, desde o começo da pesquisa (ou desde antes dela), o conjunto de concepções segundo as quais o homem é um animal social, que ele vive em sociedade, que o indivíduo é um produto social, que para entender o indivíduo é necessário estudar e entender o contexto em que ele surge e vive. A bem da verdade, algumas concepções adicionais também são necessárias: a de que a vida em sociedade consiste em relações mútuas entre grupos e indivíduos e a de que a sociedade vive em processos ao longo do tempo[4].

Em suma: o erro que origina a dificuldade que vimos comentando, quando se tenta relacionar o indivíduo à sociedade, está em querer reduzir a sociedade ao indivíduo, quando o correto consiste em contextualizar e sociabilizar teoricamente o indivíduo[5]. Em outras palavras, tanto nas reflexões puramente teóricas quanto – para os casos que aqui consideramos – nas considerações metodológicas e sobre pesquisas empíricas, deve-se sempre explicar o indivíduo pela sociedade e não o inverso[6].

O caráter de “obstáculo epistemológico” desse preceito, que é ao mesmo tempo teórico e metodológico[7], evidencia que ele não é tão evidente quanto se pode considerar à primeira vista. Nesse sentido, é sempre necessário afirmá-lo e reafirmá-lo, seja para o público em geral (tanto das classes inferiores quanto os profissionais liberais, de classe média), seja para estudantes (de Ensino Médio, de Ensino Superior, de pós-graduação), seja para pesquisadores habituados (das mais diferentes áreas), seja enfim para filósofos e publicistas em geral. A importância e a centralidade dessa concepção não escaparam do fundador da Sociologia: Augusto Comte (1934, p. 77) afirmou-o com clareza e didatismo em meados do século XIX:

[...] Basta reconhecer que, posto que[8] o conjunto da humanidade constitua sempre o principal motor de nossas operações quaisquer, físicas, intelectuais ou morais, o Grande Ser [a Humanidade] nunca pode agir senão por intermédio de órgãos individuais. É por isso que a população objetiva, apesar de sua subordinação crescente à população subjetiva, continua necessariamente indispensável a toda influência desta. Decompondo, porém, essa participação coletiva, vê-se, afinal, que ela resulta de um livre concurso entre esforços puramente pessoais. Eis aí o que deve reerguer cada digna individualidade em presença do novo Ente Supremo [a Humanidade], ainda mais que perante o antigo [a divindade cristã]. [...]

A citação seguinte é ainda mais clara e decisiva para os nossos propósitos (Comte, 1934, p. 325; sem itálico no original): “Posto que cada função humana se exerça necessariamente por um órgão individual, sua verdadeira natureza é sempre social; pois que a participação pessoal subordina-se aí constantemente ao concurso indecomponível dos contemporâneos e dos precedentes”.

Uma última observação para concluirmos: as reflexões desenvolvidas acima se tornam plenamente compreensíveis quando se realiza pesquisas empíricas com seres humanos vivos, de carne e osso. Mas quando se passa a lidar com fontes documentais e não mais com o presente, mas com o passado, o caráter sociológico de todo ser humano cada vez mais salta à vista – o que equivale a dizer que o processo de abstração que constitui a Sociologia apresenta-se e desenvolve-se mais natural e facilmente[9]. Em outras palavras, para desenvolver-se uma pesquisa sociológica, é necessário adotar-se à partida uma concepção sociológica, com todas as conseqüências teóricas e metodológicas que isso acarreta.

 

Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. 1996. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto.

BECKER, Howard S. 2007. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar.

BORGES, Camila D. & SANTOS, Manoel A. 2005. Aplicações da técnica do grupo focal: fundamentos metodológicos, potencialidades e limites. Revista da SPAGESP, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 74-80.

BOTELHO, André. 2013. Essencial Sociologia. São Paulo: Companhia das Letras.

CASTRO, Celso. 2014. Textos básicos de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar.

COMTE, Augusto. 1934. Catecismo positivista, ou sumária exposição da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.

FREITAS, Renan S. 2003. Sociologia do Conhecimento. Pragmatismo e pensamento evolutivo. Bauru: USC.

GONDIM, Sônia M. G. 2003. Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios metodológicos. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 12, n. 24, p. 149-161.

KING, Gary; KEOHANE, Robert O. & VERBA, Sidney. 1994. Designing Social Inquiry: Scientific Inference in Qualitative Research. New Jersey: Princeton University.

Lacerda, Gustavo B. 2022. O Positivismo e o conceito de “metafísica”. In: _____. Positivismo, Augusto Comte e Epistemologia das Ciências Humanas e Naturais. Marília: Poiesis.

SCHLUCHTER, Wolfgang. 2014. O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber. Rio de Janeiro: UFRJ.

SILVA, Tomaz T. 1990. A Sociologia da Educação entre o funcionalismo e o pós-modernismo: os temas e os problemas de uma tradição. Em Aberto, Brasília, ano 9, n. 46, abr.-jun.

WRIGHT MILLS, Charles. 1972. A imaginação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar.



[1] Esta postagem foi originalmente feita em 11 de março de 2016. Em 1º de março de 2024 ela foi atualizada, por meio de uma revisão que incluiu uma ampliação substancial.

[2] Quando redigimos a primeira versão deste documento, em 11 de março de 2016, considerávamos a questão do ponto de vista estritamente das entrevistas estruturadas e semiestruturadas. Entretanto, bem vistas as coisas, ainda que com um pouco de exagero, podemos considerar que todas as pesquisas sociológicas empíricas, quando lidam com pessoas de carne e osso, envolvem sempre entrevistas ou processos assemelhados, mesmo que sejam grupos focais, pesquisas-ação, observações participantes etc. Por fim, vale notar que, no caso específico do grupo focal, ele adota um procedimento metodológico que se aproxima bastante das considerações que desenvolvemos aqui (a esse respeito, cf. Gondim (2003) e Borges e Santos (2005)).

[3] A idéia de “obstáculo epistemológico” foi proposta por Gaston Bachelard (1996), a propósito da constituição da Física e da Química. Como se vê, ela também é perfeitamente aplicável à Sociologia.

[4] Essas duas concepções adicionais – como, aliás, as concepções básicas sobre o caráter social do ser humano – não se desenvolveram apenas por meio do raciocínio, isto é, da pura introspecção; elas têm um forte caráter histórico, no sentido de que o desenvolvimento e o acúmulo de pesquisas sobre as sociedades e os seres humanos indicaram que elas são corretas, tanto teórica quanto metodologicamente (e mesmo moralmente) (cf. Comte, 1934, 6ª Conferência). Essa observação, cujo valor intrínseco parece indiscutível, também é importante para evitar e combater algumas afirmações feitas a partir dos anos 1960-1970 no sentido de que essas reflexões seriam “metafísicas” – evidentemente um despropósito, com frequência dito e redito com má-fé. Sobre a metafísica no sentido positivista, cf. Lacerda (2022).

Por fim, vale notar que a ênfase nos processos e não nas pessoas é uma sugestão de H. Becker (2007).

[5] Tomaz Silva (1990) fez uma observação absolutamente concorde com essa nossa.

[6] A chamada “Sociologia weberiana” padece precisamente do defeito da redução da sociedade ao indivíduo. Ou melhor: na verdade, ao aferrar-se às principais características da filosofia alemã (romântica, individualista e eivada de metafísica e misticismo), Max Weber não conseguiu jamais ultrapassar esse obstáculo epistemológico, chegando mesmo ao ponto de recusar-se a definir o conceito de “sociedade” (Schluchter, 2014)! Nesses termos, é pelo menos estranho, para não dizer chocante, que ele seja considerado um “sociólogo” e seja popularmente chamado de criador da “moderna” (!) Sociologia.

Da mesma forma, por outro lado, seja devido à forte tradição empírica – excessivamente empírica, bem vistas as coisas – que recebeu da Inglaterra, seja devido à influência de pensadores alemães (entre os quais se incluem não apenas Max Weber, mas também Franz Boas), as Ciências Sociais dos Estados Unidos padecem de vícios semelhantes aos indicados para a “Sociologia” weberiana, como a recusa a abstrair, o apego à noção de “indivíduo” e, de maneira correlata, uma certa repulsa à teorização (como Howard Becker indica a respeito de vários de seus professores e colegas). Mesmo o uso que fizemos acima da expressão “imaginação sociológica”, aliás, afasta-se de maneira importante da formulação originalmente dada a ela por seu criador, Charles Wright Mills, que, a despeito de dizer-se “radical” e “crítico” da sociedade e das Ciências Sociais estadunidenses, entendia a imaginação sociológica como a interpretação individual da situação de cada indivíduo na sociedade (Wright Mills, 1972).

Por fim, é necessário dizê-lo com muita clareza: a maior parte das Ciências Sociais que se desenvolvem atualmente, pelo menos no Brasil, adotam precisamente esses parâmetros e concepções antissociológicos, como se evidencia em duas recentes coletâneas organizadas por cientistas sociais brasileiros extremamente influentes (Botelho, 2013; Castro, 2014), que incluem Weber e teóricos assemelhados – Schultz, Simmel, Goffmann, mesmo Howard Becker e Bauman, todos eles aproximando-se muito mais da Psicologia Social que própria e verdadeiramente da Sociologia –, mas recusam-se de maneira clara, até militante, a incluir e/ou a considerar Augusto Comte e os teóricos propriamente científicos da Sociologia em suas coletâneas. Essa recusa tem um significado muito claro, cujo efeito, por motivos evidentes, é maior no grande público e em todos os interessados nas Ciências Sociais que não são profissionais da área: conforme se depreende dessas coletâneas, a “verdadeira” Sociologia corresponde à Psicologia Social praticada pelos organizadores desses livros, com doses enormes de subjetividade, de antiobjetivismo e de descritivismo empiricista que rejeita a busca de generalizações, de regularidades e, portanto, de leis naturais. Como o próprio Augusto Comte era o primeiro a afirmar com todas as letras (Comte, 1934), é claro que a Sociologia exige a subjetividade concreta; mas, ao mesmo tempo, e ao contrário do que essas coletâneas dão a entender, a Sociologia exige também a objetividade abstrata. Certamente esses organizadores fazem questão de desconhecer as importantes reflexões teórico-metodológicas desenvolvidas por King, Keohane e Verba (1994), unificando teoricamente os resultados das orientações metodológicas qualitativas e quantitativas, propostas inicialmente apenas para a Ciência Política mas, como facilmente se percebe, válidas para todas as Ciências Sociais; da mesma forma, os organizadores dessas coletâneas fazem questão de ignorar a dura e eficaz crítica que o também sociólogo e também brasileiro Renan Springer de Freitas (2003) fez à falta de resultados teóricos e práticos das pesquisas de Clifford Geertz, tão próximas da Psicologia Social exaltada nas coletâneas acima indicadas.

[7] O caráter ao mesmo tempo teórico e metodológico desse princípio não é algo banal. Se fosse apenas um princípio metodológico, talvez ele fosse bastante importante mas não fizesse tanta diferença afirmá-lo para diversos públicos: o relativismo próprio à Antropologia é um bom exemplo de princípio metodológico que – ao contrário daquilo que nos interessa aqui – deve manter-se como metodológico e não se ampliar para um aspecto teórico. No caso que nos interessa, ao insistirmos no aspecto teórico do princípio de que devemos sempre entender sociologicamente os indivíduos, queremos indicar que ele, também e acima de tudo, descreve a realidade – no caso, a realidade própria ao ser humano –; essa afirmação intelectual resulta, em seguida, em importantes conseqüências morais e políticas.

[8] Um esclarecimento gramatical: ao contrário do que se considera atualmente, em parte devido a um uso incorreto feito por Vinícius de Morais no penúltimo verso do Soneto de fidelidade, a expressão “posto que” tem um sentido adversativo e significa “embora”, ao contrário do entendimento corrente, que a entende como significando “portanto”.

[9] Como o objetivo destas anotações é afirmar a importância teórica e metodológica do princípio do caráter radicalmente social do ser humano, limitamo-nos aqui a refletir e a insistir nessa idéia, entendendo-a como, por vezes, um esforço a realizar-se para ultrapassar o que pode ser (mas não necessariamente é) um “obstáculo epistemológico”. Dito isso, devemos notar que essa eventual dificuldade de abstração com freqüência deve-se a um viés paroquial das nossas observações: afinal, quando qualquer pessoa viaja para um algum lugar cuja cultura é minimamente diferente da sua própria, o aspecto social do comportamento, dos usos e dos costumes desse outro lugar com grande rapidez salta à vista (é o que se caracteriza por vezes com a expressão “é uma cultura diferente”). Mais do que isso: ao viajarmos, nossa tendência é percebermos antes as sociedades e depois os indivíduos. Esse instinto naturalmente sociológico – que, como também já indicava Augusto Comte (1934, p. 192-194), já funda, ou reafirma, também nesse âmbito o relativismo cognitivo, sociológico e histórico – não por acaso é o fundamento da Antropologia, que, também não por acaso, muito mais que vinculada ao estudo de sociedades tribais, primitivas, simples etc., vincula-se à necessidade do deslocamento geográfico como condição para o contato com diferentes sociedades, ou, em outras palavras, vincula-se precisamente às viagens como procedimento metodológico.

23 fevereiro 2016

Gazeta do Povo: "Tributação contra a imoralidade"

Artigo de minha autoria publicado em 23.2.2016 na Gazeta do Povo. O original pode ser lido aqui.

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Tributação contra a imoralidade

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Texto publicado na edição impressa de 23 de fevereiro de 2016

Consideremos duas situações históricas. A primeira: quando da Proclamação da República no Brasil, em 1889, os positivistas tinham uma preocupação particular: garantir que o governo e o Estado não interferissem no chamado “poder espiritual” (as diversas religiões e igrejas) e nas liberdades de pensamento e expressão. O fundamento da ação do Estado é o uso da violência, mesmo que essa violência atue sob o amparo da lei; assim, o Estado pode interferir na liberdade de pensamento de diferentes maneiras, das quais duas mais óbvias são a censura e a imposição de currículos escolares específicos. Isso não é novidade e mesmo neste início do século 21 vemos como tais possibilidades são bastante concretas.
Mas outra forma de o Estado interferir na liberdade religiosa, menos evidente, é via tributação. Para pagar os impostos é necessário ter recursos; como o “poder espiritual” não gera riquezas, os impostos podem ser uma forma extremamente eficaz e simples de impedir que organizações da sociedade civil manifestem suas perspectivas. Foi levando em consideração essa possibilidade, também não desprezível, que os positivistas foram favoráveis à isenção tributária das igrejas, em uma regra que se manteve desde então.
A justificativa político-moral da isenção tributária perde intensidade face à imoralidade da situação eclesiástico-religiosa brasileira




A outra situação é a da enorme e crescente riqueza material da Igreja Católica no fim da Idade Média. Recebendo donativos de seus fiéis, bem como tendo o apoio oficial dos governantes, os clérigos acumulavam cada vez mais bens, na forma de dinheiro ou de terras. Com isso, o clero tornava-se cada vez mais venal, preocupado mais com suas posses que com o bem-estar material e moral dos fiéis (que, por sua vez, eram em sua maioria pobres ou miseráveis). Contra tal estado de coisas levantou-se Francisco de Assis, que não por acaso defendeu a necessária pobreza do clero e fundou uma ordem religiosa mendicante. Como tal situação não se tenha modificado, a reação a ela foi um dos motivos para que, alguns séculos mais tarde, a Igreja Católica tenha sofrido um abalo mais sério, do qual jamais se recuperou e que foi o início da derrocada do monoteísmo no Ocidente: trata-se, é claro, do protestantismo, com as teses de Lutero.
Essas duas situações compõem a moldura histórica para o debate teórico-político que se apresenta atualmente no Brasil, em que se propõe a tributação de igrejas. Por que essa proposta? No Brasil, há uma situação consolidada há tempos e de que as igrejas – Católica e protestantes – se aproveitam, buscando, aliás, aumentar cada vez mais suas prerrogativas, com frequência sem entender que essa isenção é um gigantesco privilégio e sem se preocupar em fazer jus a ele. Vê-se proliferarem igrejas com templos cada vez maiores e ostentatórios, pregando o enriquecimento a qualquer custo e sendo proprietárias de enormes conglomerados comerciais, industriais, de serviços e financeiros; da mesma forma, sob as alegações mais estapafúrdias, auferem diariamente pequenas fortunas, cujos destinos, devido à isenção tributária, não podem ser controlados pelo governo (ou seja, com facilidade são canais para lavagem de dinheiro e evasão de divisas). Em outras palavras, a justificativa político-moral – e é disso que se trata aqui: de um problema político com um intenso fundamento moral – da isenção tributária perde intensidade, ou relevância, face à imoralidade da situação eclesiástico-religiosa brasileira.
É claro que as liberdades de pensamento e de expressão têm de ser preservadas, mas a imoralidade atual – que se agrava diante da crise financeira por que passa o país, que tende a piorar nos próximos anos – também tem de ser combatida com seriedade. Assim, um meio-termo é necessário, com várias medidas: fiscalização pública dos “rendimentos” eclesiásticos; tributação progressiva, com isenção para pequenas igrejas e índices crescentes para “rendas” maiores; proibição sumária de igrejas (e sacerdotes!) possuírem empresas de qualquer tipo. Por fim, proibição completa de que sacerdotes possam disputar cargos políticos.
Essas poucas medidas podem corrigir (ou evitar) alguns problemas seculares que o Brasil enfrenta. Irônico ou não, é necessário moralizar muitas (mas não todas) as instituições que, justamente, deveriam zelar pela moralidade pública e privada.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e pós-doutor em Teoria Política pela UFSC.

08 fevereiro 2016

Participação no livro "Unila - consulta internacional"

Desde há alguns anos existe a Universidade da Integração Latino-Americana, a Unila, com sede em Foz do Iguaçu e com corpos discente e docente dos países do Cone Sul.

Pois bem: em 2008 o então Reitor Pro-Tempore da Unila, Prof. Hélgio Trindade, remeteu a vários pesquisadores de diversas partes do mundo uma consulta sobre qual deveria, ou poderia, ser o perfil da futura universidade.

Tive a felicidade de integrar o rol de pesquisadores consultados; minhas respostas, juntamente com as demais, foram compendiadas em um volume único, intitulado justamente "Unila – Consulta Internacional – Contribuições à concepção, organização e proposta político-pedagógica da Unila".

Esse volume está disponível aqui. Entre as páginas 148 e 157 encontram-se as minhas considerações (páginas 75 a 79 do arquivo PDF).