Nas Ciências Sociais – e, possivelmente,
também nas demais ciências – há determinadas concepções que, embora sendo puramente
intelectuais, isto é, “teóricas”, têm um fraco estatuto propriamente teórico[1].
O que quero dizer com “fraco estatuto teórico”? Que essas concepções são representações,
idéias, formulações que funcionam como que de recordatórios, ou como guias práticos;
assim, não integram o núcleo duro de doutrinas teóricas, mas, por outro lado, ao
terem um caráter intelectual, não podem deixar de ser qualificadas de “teóricas”.
Essas concepções, conforme as entendo,
são ao mesmo tempo regras práticas para entendimento de determinadas realidades
e questões empíricas e também, por esse motivo, o começo das teorizações.
Entretanto, na medida em que elas atuam como guias para compreender determinas situações,
elas têm que se relacionar com corpos teóricos mais amplos e mais robustos, surgidos
a partir de pesquisas bastante anteriores ou derivados de investigações desenvolvidas
a partir da aplicação desses recursos. Dessa forma, embora esses artifícios intelectuais
atuem como regras práticas para as pesquisas, bem vistas as coisas eles vinculam-se
intimamente com as teorias; eles seriam mais “pontas de icebergs” que “fiapos
teóricos”.
Tais situações apresentam-se com clareza
quando se realiza investigações sociológicas empíricas com entrevistas,
sejam pesquisas qualitativas, sejam pesquisas quantitativas[2]. Nesses
casos, o que se apresenta à primeira vista é somente um conjunto maior ou menor
de indivíduos, a quem se pode (e deve) aplicar questionários sobre inúmeras questões.
Ora, o resultado dessa aplicação de questionários – novamente: quantitativos ou
qualitativos, tanto faz – consiste tão-somente em uma coleção mais ou menos dispersa
de respostas, que pode indicar qual o “perfil” desses alunos, mas que por si só
não tem nenhum caráter verdadeiramente sociológico: novamente, por si sós esses questionários apenas fornecem
uma coleção de indivíduos justapostos, não uma concepção qualquer de verdadeira
coletividade. Além disso, esse problema de falta de coletividade – esse “déficit
sociológico”, por assim dizer – aplica-se ao conjunto da pesquisa, ou seja, a todas
as suas etapas, desde a concepção geral até a aplicação dos questionários e a eventual
interpretação dos resultados.
Ora, é necessário termos clareza
de que, para uma interpretação verdadeiramente sociológica, entender os entrevistados
apenas como uma coleção de indivíduos – que porventura compartilhem características
e traços – consiste em um excesso de
empirismo; ou, por outra, insistir em entender a coleção de indivíduos resultante
da realização de entrevistas apenas como uma coleção de indivíduos é recusar-se
a abstrair e aferrar-se de maneira daninha – e profundamente equivocada – a
uma concepção estreita de objetividade. O excesso de objetividade, em detrimento
da abstração, foi denominado por Augusto Comte de “idiotismo”, a que se contrapõe
o excesso de subjetividade, que seria propriamente a loucura. A esse excesso de
empirismo (que podemos denominar por meio do terrível neologismo “empiricismo”)
com freqüência se soma uma filosofia geral (ou mesmo uma filosofia social) que
enfatiza os indivíduos e o individualismo (tanto moral quanto “filosófico”):
por certo que empiricismo e individualismo relacionam-se, ou podem
relacionar-se, intimamente, mas eles são concepções diversas em termos morais,
intelectuais e práticos.
Por outro lado, a dificuldade em realizar
a passagem (1) da objetividade e do empirismo ingênuos/radicais que consiste em
perceber apenas indivíduos (2) para a abstração (portanto, mais ou menos subjetiva) que consiste em ver aí não apenas
“indivíduos”, mas coletividades em ação
– essa dificuldade é um dos mais importantes e mais sérios (na verdade, no
fundo ele consiste no principal) “obstáculos
epistemológicos” para a imaginação sociológica e, portanto, para a própria constituição
da Sociologia[3].
Assim, temos que ter clareza de
que, partindo-se do empiricismo individualista descrito acima, é virtualmente impossível resolver o problema
da passagem teórica da “coleção de indivíduos” para uma “coletividade”; a única
forma de resolvê-lo é evitá-lo. Em outras palavras, é necessário ultrapassar
liminarmente o obstáculo epistemológico do excesso de objetividade e adotar, desde
o começo da pesquisa (ou desde antes dela), o conjunto de concepções segundo as
quais o homem é um animal social, que ele vive em sociedade, que o indivíduo é um
produto social, que para entender o indivíduo é necessário estudar e entender o
contexto em que ele surge e vive. A bem da verdade, algumas concepções adicionais
também são necessárias: a de que a vida em sociedade consiste em relações
mútuas entre grupos e indivíduos e a de que a sociedade vive em processos
ao longo do tempo[4].
Em suma: o erro que origina a
dificuldade que vimos comentando, quando se tenta relacionar o indivíduo à
sociedade, está em querer reduzir a sociedade ao indivíduo, quando o correto
consiste em contextualizar e sociabilizar teoricamente o indivíduo[5]. Em
outras palavras, tanto nas reflexões puramente teóricas quanto – para os casos
que aqui consideramos – nas considerações metodológicas e sobre pesquisas
empíricas, deve-se sempre explicar o indivíduo pela sociedade e não o inverso[6].
O caráter de “obstáculo
epistemológico” desse preceito, que é ao mesmo tempo teórico e metodológico[7],
evidencia que ele não é tão evidente quanto se pode considerar à primeira
vista. Nesse sentido, é sempre necessário afirmá-lo e reafirmá-lo, seja para o
público em geral (tanto das classes inferiores quanto os profissionais
liberais, de classe média), seja para estudantes (de Ensino Médio, de Ensino
Superior, de pós-graduação), seja para pesquisadores habituados (das mais
diferentes áreas), seja enfim para filósofos e publicistas em geral. A
importância e a centralidade dessa concepção não escaparam do fundador da
Sociologia: Augusto Comte (1934, p. 77) afirmou-o com clareza e didatismo em
meados do século XIX:
[...] Basta reconhecer que, posto que[8] o conjunto da
humanidade constitua sempre o principal motor de nossas operações quaisquer,
físicas, intelectuais ou morais, o Grande Ser [a Humanidade] nunca pode agir
senão por intermédio de órgãos individuais. É por isso que a população
objetiva, apesar de sua subordinação crescente à população subjetiva, continua
necessariamente indispensável a toda influência desta. Decompondo, porém, essa
participação coletiva, vê-se, afinal, que ela resulta de um livre concurso
entre esforços puramente pessoais. Eis aí o que deve reerguer cada digna
individualidade em presença do novo Ente Supremo [a Humanidade], ainda mais que
perante o antigo [a divindade cristã]. [...]
A citação seguinte é ainda mais
clara e decisiva para os nossos propósitos (Comte, 1934, p. 325; sem itálico no
original): “Posto que cada função
humana se exerça necessariamente por um órgão individual, sua verdadeira
natureza é sempre social; pois que a participação pessoal subordina-se aí
constantemente ao concurso indecomponível dos contemporâneos e dos precedentes”.
Uma última observação para
concluirmos: as reflexões desenvolvidas acima se tornam plenamente
compreensíveis quando se realiza pesquisas empíricas com seres humanos vivos,
de carne e osso. Mas quando se passa a lidar com fontes documentais e não mais com
o presente, mas com o passado, o caráter sociológico de todo ser humano cada
vez mais salta à vista – o que equivale a dizer que o processo de abstração que
constitui a Sociologia apresenta-se e desenvolve-se mais natural e facilmente[9]. Em
outras palavras, para desenvolver-se uma pesquisa sociológica, é necessário
adotar-se à partida uma concepção sociológica, com todas as conseqüências
teóricas e metodológicas que isso acarreta.
Referências
bibliográficas
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fundamentos metodológicos, potencialidades e limites. Revista da SPAGESP, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 74-80.
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CASTRO, Celso.
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COMTE, Augusto. 1934. Catecismo positivista, ou sumária exposição
da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do
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Princeton University.
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Epistemologia das Ciências Humanas e Naturais. Marília: Poiesis.
SCHLUCHTER, Wolfgang. 2014. O desencantamento do mundo:
seis estudos sobre Max Weber. Rio de Janeiro: UFRJ.
SILVA, Tomaz T. 1990.
A Sociologia da Educação entre o funcionalismo e o pós-modernismo: os temas e os
problemas de uma tradição. Em Aberto, Brasília, ano 9, n. 46, abr.-jun.
WRIGHT
MILLS, Charles. 1972. A imaginação
sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar.
[1] Esta
postagem foi originalmente feita em 11 de março de 2016. Em 1º de março de 2024
ela foi atualizada, por meio de uma revisão que incluiu uma ampliação
substancial.
[2]
Quando redigimos a primeira versão deste documento, em 11 de março de 2016,
considerávamos a questão do ponto de vista estritamente das entrevistas
estruturadas e semiestruturadas. Entretanto, bem vistas as coisas, ainda que
com um pouco de exagero, podemos considerar que todas as pesquisas sociológicas empíricas, quando lidam com pessoas
de carne e osso, envolvem sempre entrevistas ou processos assemelhados, mesmo
que sejam grupos focais, pesquisas-ação, observações participantes etc. Por
fim, vale notar que, no caso específico do grupo focal, ele adota um
procedimento metodológico que se aproxima bastante das considerações que
desenvolvemos aqui (a esse respeito, cf. Gondim (2003) e Borges e Santos
(2005)).
[3] A
idéia de “obstáculo epistemológico” foi proposta por Gaston Bachelard (1996), a
propósito da constituição da Física e da Química. Como se vê, ela também é
perfeitamente aplicável à Sociologia.
[4] Essas duas concepções adicionais – como, aliás, as concepções básicas
sobre o caráter social do ser humano – não se desenvolveram apenas por meio do
raciocínio, isto é, da pura introspecção; elas têm um forte caráter histórico,
no sentido de que o desenvolvimento e o acúmulo de pesquisas sobre as
sociedades e os seres humanos indicaram que elas são corretas, tanto teórica
quanto metodologicamente (e mesmo moralmente) (cf. Comte, 1934, 6ª Conferência).
Essa observação, cujo valor intrínseco parece indiscutível, também é importante
para evitar e combater algumas afirmações feitas a partir dos anos 1960-1970 no
sentido de que essas reflexões seriam “metafísicas” – evidentemente um despropósito,
com frequência dito e redito com má-fé. Sobre a metafísica no sentido positivista,
cf. Lacerda (2022).
Por fim, vale notar que a ênfase nos processos e não nas pessoas é uma
sugestão de H. Becker (2007).
[5] Tomaz
Silva (1990) fez uma observação absolutamente concorde com essa nossa.
[6] A chamada “Sociologia weberiana”
padece precisamente do defeito da redução da sociedade ao indivíduo. Ou melhor:
na verdade, ao aferrar-se às principais características da filosofia alemã
(romântica, individualista e eivada de metafísica e misticismo), Max Weber não
conseguiu jamais ultrapassar esse obstáculo epistemológico, chegando mesmo ao
ponto de recusar-se a definir o conceito de “sociedade” (Schluchter, 2014)!
Nesses termos, é pelo menos estranho, para não dizer chocante, que ele seja
considerado um “sociólogo” e seja popularmente chamado de criador da “moderna”
(!) Sociologia.
Da mesma forma, por outro lado, seja devido à forte tradição empírica – excessivamente
empírica, bem vistas as coisas – que recebeu da Inglaterra, seja devido à
influência de pensadores alemães (entre os quais se incluem não apenas Max
Weber, mas também Franz Boas), as Ciências Sociais dos Estados Unidos padecem
de vícios semelhantes aos indicados para a “Sociologia” weberiana, como a
recusa a abstrair, o apego à noção de “indivíduo” e, de maneira correlata, uma
certa repulsa à teorização (como Howard Becker indica a respeito de vários de
seus professores e colegas). Mesmo o uso que fizemos acima da expressão
“imaginação sociológica”, aliás, afasta-se de maneira importante da formulação
originalmente dada a ela por seu criador, Charles Wright Mills, que, a despeito
de dizer-se “radical” e “crítico” da sociedade e das Ciências Sociais
estadunidenses, entendia a imaginação sociológica como a interpretação
individual da situação de cada indivíduo
na sociedade (Wright Mills, 1972).
Por
fim, é necessário dizê-lo com muita clareza: a maior parte das Ciências Sociais
que se desenvolvem atualmente, pelo menos no Brasil, adotam precisamente esses
parâmetros e concepções antissociológicos, como se evidencia em duas recentes
coletâneas organizadas por cientistas sociais brasileiros extremamente
influentes (Botelho, 2013; Castro, 2014), que incluem Weber e teóricos
assemelhados – Schultz, Simmel, Goffmann, mesmo Howard Becker e Bauman, todos
eles aproximando-se muito mais da Psicologia Social que própria e
verdadeiramente da Sociologia –, mas recusam-se de maneira clara, até
militante, a incluir e/ou a considerar Augusto Comte e os teóricos propriamente
científicos da Sociologia em suas coletâneas. Essa recusa tem um significado
muito claro, cujo efeito, por motivos evidentes, é maior no grande público e em
todos os interessados nas Ciências Sociais que não são profissionais da área: conforme
se depreende dessas coletâneas, a “verdadeira” Sociologia corresponde à
Psicologia Social praticada pelos organizadores desses livros, com doses
enormes de subjetividade, de antiobjetivismo e de descritivismo empiricista que
rejeita a busca de generalizações, de regularidades e, portanto, de leis
naturais. Como o próprio Augusto Comte era o primeiro a afirmar com todas as letras
(Comte, 1934), é claro que a Sociologia exige a subjetividade concreta; mas, ao
mesmo tempo, e ao contrário do que essas coletâneas dão a entender, a
Sociologia exige também a objetividade abstrata. Certamente esses organizadores
fazem questão de desconhecer as importantes reflexões teórico-metodológicas
desenvolvidas por King, Keohane e Verba (1994), unificando teoricamente os
resultados das orientações metodológicas qualitativas e quantitativas,
propostas inicialmente apenas para a Ciência Política mas, como facilmente se
percebe, válidas para todas as
Ciências Sociais; da mesma forma, os organizadores dessas coletâneas fazem
questão de ignorar a dura e eficaz crítica que o também sociólogo e também
brasileiro Renan Springer de Freitas (2003) fez à falta de resultados teóricos
e práticos das pesquisas de Clifford Geertz, tão próximas da Psicologia Social
exaltada nas coletâneas acima indicadas.
[7] O
caráter ao mesmo tempo teórico e metodológico desse princípio não é algo banal.
Se fosse apenas um princípio metodológico, talvez ele fosse bastante importante
mas não fizesse tanta diferença afirmá-lo para diversos públicos: o relativismo
próprio à Antropologia é um bom exemplo de princípio metodológico que – ao
contrário daquilo que nos interessa aqui – deve manter-se como metodológico e não se ampliar para um
aspecto teórico. No caso que nos
interessa, ao insistirmos no aspecto teórico do princípio de que devemos sempre
entender sociologicamente os indivíduos, queremos indicar que ele, também e
acima de tudo, descreve a realidade –
no caso, a realidade própria ao ser
humano –; essa afirmação intelectual resulta, em seguida, em importantes
conseqüências morais e políticas.
[8] Um
esclarecimento gramatical: ao contrário do que se considera atualmente, em
parte devido a um uso incorreto feito por Vinícius de Morais no penúltimo verso
do Soneto de fidelidade, a expressão
“posto que” tem um sentido adversativo
e significa “embora”, ao contrário do
entendimento corrente, que a entende como significando “portanto”.
[9]
Como o objetivo destas anotações é afirmar a importância teórica e metodológica
do princípio do caráter radicalmente social do ser humano, limitamo-nos aqui a
refletir e a insistir nessa idéia, entendendo-a como, por vezes, um esforço a
realizar-se para ultrapassar o que pode ser (mas não necessariamente é) um
“obstáculo epistemológico”. Dito isso, devemos notar que essa eventual
dificuldade de abstração com freqüência deve-se a um viés paroquial das nossas observações: afinal, quando qualquer pessoa
viaja para um algum lugar cuja cultura é minimamente diferente da sua própria,
o aspecto social do comportamento, dos usos e dos costumes desse outro lugar
com grande rapidez salta à vista (é o que se caracteriza por vezes com a
expressão “é uma cultura diferente”). Mais do que isso: ao viajarmos, nossa
tendência é percebermos antes as sociedades e depois os indivíduos. Esse instinto
naturalmente sociológico – que, como também já indicava Augusto Comte (1934, p.
192-194), já funda, ou reafirma, também nesse âmbito o relativismo cognitivo,
sociológico e histórico – não por acaso é o fundamento da Antropologia, que, também
não por acaso, muito mais que vinculada ao estudo de sociedades tribais,
primitivas, simples etc., vincula-se à necessidade do deslocamento geográfico
como condição para o contato com diferentes sociedades, ou, em outras palavras,
vincula-se precisamente às viagens
como procedimento metodológico.
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