Ela foi publicada no jornal carioca Monitor Mercantil; o original pode ser lido aqui.
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Impeachment seria ambíguo para o PT
“A aceitação do
pedido de impeachment por Eduardo Cunha ocorreu devido a motivos mesquinhos e
estritamente pessoais da sua parte; mas o fato é que há um clima social
amplamente favorável.” A declaração é do sociólogo da Universidade Federal do
Paraná (UFPR) Gustavo Biscaia de Lacerda, doutor em Sociologia Política e
pós-doutor em Teoria Política também pela Federal de Santa Catarina (UFSC).
Para ele, entretanto, se Dilma não sair, PT e governo terão forças para
administrar isso no Congresso. Além disso, Gustavo diz que PSDB e DEM não terão
grande ganho com pensam com destituição de Dilma: “Se há algum partido político
realmente beneficiado com o impedimento de Dilma Rousseff, esse partido será o
PMDB.”
Gustavo Biscaia diz ainda que “uma guerra civil está longe
do nosso horizonte, mas não dá para descartar totalmente”. Em entrevista
exclusiva ao MONITOR MERCANTIL, o sociólogo comenta vários assuntos referentes
ao cenário político atual, como, por exemplo, a imagem do Lula, o Bolsa
Família, as “elites reacionárias” e, é claro, o impedimento de Dilma.
Com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, como fica a
divisão de forças em Brasília?
– Desde já se percebe uma polarização muito marcada no
Brasil como um todo; nesse sentido, Brasília simplesmente reproduz, em escala
menor mas mais acentuada, o que se passa no resto do Brasil. Embora esteja
longe de ser algo banal (devido aos efeitos que pode acarretar para o país), o
pedido de impedimento de um presidente, por si só, não apresenta grande
novidade: nos anos 90 o PT pediu várias vezes o impeachment de FHC. O que há de
específico no presente caso é que o presidente da Câmara dos Deputados aceitou
considerar o pedido contra Dilma; é verdade que Eduardo Cunha (PMDB-RJ) tomou
essa decisão devido a motivos muito particulares (e mesquinhos), mas, por outro
lado, convém notar que no final de 2014 a própria eleição de Cunha para
presidente da Câmara já revelava uma divisão de forças em Brasília – divisão
aliás desfavorável para Dilma, causada especificamente pela própria presidente.
O impeachment acentuará alguns traços atuais da política brasileira, no sentido
de que vários setores ficarão mais e mais polarizados – especificamente o PT e
grupos ligados a ele. Por outro lado, o novo governo fará um grande esforço
para aparecer como de união nacional, o que implica que tentará não ser radical
nem polarizar.
O PT vai sentir os reflexos na próxima eleição presidencial?
– Sem dúvida alguma, mas, no fundo, o impedimento de Dilma,
caso tenha êxito, será ambíguo para o PT, já a partir das eleições deste ano:
por um lado, permitirá que o partido adote a retórica do “golpe”, das “elites
reacionárias”, do “capitalismo internacional”, do “neoliberalismo”, ou seja,
permitirá ao PT retomar a sua tradicional retórica oposicionista, a que se
somará a partir deste ano a figura do “golpe”. Os movimentos sociais que sempre
deram apoio ao PT foram sistematicamente cooptados pelo partido ao longo dos
últimos 15 anos, por meio de generosos auxílios, além da participação direta na
estrutura do Estado; tais grupos continuarão a apoiar o PT, seja devido a seus
interesses corporativistas, seja devido a afinidades ideológicas, seja devido à
confusão entre os dois fatores; mas, por outro lado, o fato é que a própria
ocorrência do impedimento evidencia um desgaste muito grande do partido, isto
é, da imagem que o PT possui junto aos vários segmentos da sociedade.
Historicamente a taxa de rejeição ao PT sempre foi relativamente alta, em torno
de 30%; Lula ganhou sua primeira eleição em 2001 porque, naquele momento, ele
abandonou a sua tradicional retórica radical e, ao mesmo tempo, a taxa de
rejeição ao PSDB e à imagem que esse partido possui aumentou muito. Mas desde
2013 a rejeição ao PT, ao governo de modo geral e a Dilma aumentaram muito,
especialmente depois das eleições de 2014, em que a polarização aumentou e que
o governo praticou um estelionato eleitoral (ao praticar exatamente as mesmas
políticas que condenara nos seus adversários e que jurara que jamais faria). A
crise econômica e as investigações da Lava Jato aumentam ainda mais essa
insatisfação.
Em sua opinião, como fica o nome do ex-presidente Lula na
história do país?
– Depende de quem pronuncia o seu nome. Indiscutivelmente
ele foi um dos maiores líderes do país e suas eleições para presidente indicam
um forte desejo da população brasileira de mudar alguns rumos do país, no
sentido de promover a inclusão social. Sem embargo do seu caráter de grande
líder, à medida que o tempo passa, isto é, à medida que se adota uma
perspectiva histórica, de longo prazo, percebe-se que Lula falhou, quando não
fracassou, em uma série de aspectos da vida nacional. A política econômica que
seguiu teve efeitos positivos imediatos, mas também se beneficiou de um
ambiente internacional extremamente favorável (alta do preço das commodities,
taxas internacionais de juros reduzidas): ainda assim, a despeito dos vários anos
de crescimento econômico, não ocorreram investimentos efetivos na
infraestrutura econômica do país (limitados à “privatização” de determinados
setores, na forma de concessão, como alguns aeroportos, rodovias etc.), nem se
reverteu a desindustrialização nacional (bem ao contrário: investimos
maciçamente nos setores primários e exportadores, transferindo a dependência em
relação aos EUA para a China). Com Lula investiu-se em novas parcerias
internacionais, mas, no final, essa multilateralização consistiu muito mais em
trocar os antigos parceiros comerciais por outros que em ampliar o nosso leque.
De passagem, convém notar que na década de 2000 tornamo-nos um dos principais
propulsores da “globalização”. O Mercosul, nesse período, ficou travado em suas
negociações comerciais, preso às restrições que o bloco impõe, aceitando as
reiteradas violações comerciais praticadas pela Argentina e ainda nos
sujeitando às diatribes da Venezuela de Hugo Chávez. Enquanto isso, o acordo
comercial com a União Europeia não saiu do papel, mas outros países (Chile,
México) avançaram muito em termos de comércio internacional. No que se refere à
política internacional, embora tenha mantido relações amigáveis com os EUA, o
fato é que o Brasil preferiu apoiar a aventura do bolivarianismo e
vangloriou-se de celebrar um duvidoso e desnecessário acordo nuclear com o Irã.
Ainda no que se refere à política internacional, em
2007-2008 Lula apoiou pessoalmente a celebração do acordo do Brasil com o
Vaticano – a Concordata – seguida pela aprovação do acordo no Congresso
Nacional. A Concordata é uma violação clara e brutal da laicidade do Estado, ao
conceder um caráter internacional para os numerosos privilégios que a Igreja
Católica possui junto ao Estado brasileiro. Também é importante notar que Dilma
Rousseff foi eleita e reeleita graças à indicação e ao apoio pessoais de Lula e
sempre se apresentou como fiador político e moral de sua sucessora: nesse
sentido, ele tem responsabilidade pelos destinos do país após 2010.
Mesmo em termos de políticas sociais, a atuação de Lula é
menor do que ele afirma. Sem dúvida alguma, o Bolsa Família é um projeto
importante, que encaminha alguns problemas brasileiros. Mas, por um lado, o
Bolsa Família surgiu após o fiasco do Fome Zero e a partir da reunião e
ampliação de uma série de políticas existentes pelo menos desde os anos 1990.
Por outro lado, o Bolsa Família prevê dois aspectos, um paliativo e outro
“prospectivo””: a parte paliativa é a mais visível e a mais criticada
(incorreta e injustamente, é importante indicar), que é a do pagamento de
valores financeiros para famílias de baixíssima renda; a parte “prospectiva” é
a do investimento em infraestrutura e em recursos humanos, para combater a
transmissão intergeracional da pobreza. A obrigatoriedade de as mães que
recebem o Bolsa Família de mandarem os filhos para as escolas é algo
importante, mas a falta de investimentos em infraestrutura e a má gestão
econômica minam completamente esse lado da política. Dito tudo isso, é
necessário lembrar que desde já há uma disputa sobre qual seria o “legado de
Lula”. Essa disputa verifica-se na atual conjuntura de impedimento de Dilma
Rousseff, mas é mais claramente visível, por exemplo, em livros escolares de
História: muitos desses livros, que têm que passar pela chancela do MEC, são
louvaminheiros em relação a Lula e, não por acaso, assumem o discurso
político-partidário contra FHC, de maneira dicotômica.
Esse impeachment vai refletir no pleito municipal?
– O efeito imediato – que é o que se sentirá nas eleições
municipais – é a radicalização dos discursos políticos, a favor e contra o PT,
ou “contra o golpe” e “contra a corrupção”. De qualquer maneira, o PT já se
encontra bastante enfraquecido e a tendência é que tenha resultados bastante
minguados no final deste ano.
PSDB e DEM vão sair fortalecidos, caso a destituição de
Dilma se concretize?
– Não me parece que nenhum desses dois partidos terá um
grande ganho com o impedimento de Dilma. Há muitos anos o DEM está
enfraquecendo-se paulatinamente, com seus quadros migrando para outros
partidos, sejam eles estabelecidos ou novos (PSD, Solidariedade, Partido Novo
etc.). Já o PSDB deve ter algum ganho com o impeachment. Por um lado, ele é o
principal partido de oposição e é natural que assuma cargos em um eventual
governo Michel Temer; por outro, esse mesmo eventual Governo Temer precisará de
uma “base de apoio” e, nesse caso, o PSDB será importante. Ainda assim, o PSDB
não lucrará tanto quanto se poderia pensar à primeira vista. O PT sofre um
enorme desgaste por sua própria conta, mas isso integra um movimento mais amplo
de perda geral de legitimidade dos políticos, vistos como corruptos,
preocupados apenas com os próprios interesses, despreocupados com o bem-estar
da população etc. Além disso, vários nomes de peso do PSDB, a começar por Aécio
Neves e Geraldo Alckmin, têm sido ligados a esquemas de corrupção e/ou de
comportamento antiético (consumo de cocaína, máfia dos trens de metrô etc.).
Assim, se houver algum partido político realmente beneficiado com o impedimento
de Dilma Rousseff, esse partido será o PMDB.
Em sua opinião há uma polarização política no país
atualmente?
– Isso vem desde o início do Governo Lula, em 2002, por seu
estímulo direto, que gostava de falar em “elites brancas”, “nunca antes na
história deste país” etc. e que nunca deixou de comparar o seu governo com o de
FHC. Mas durante os governos de Lula, essa retórica da divisão permaneceu no
âmbito retórico; nas eleições presidenciais de 2010, a polarização
apresentou-se de maneira clara, pois o candidato do PT já não era o mítico Lula
e, por seu turno, o candidato do PSDB, José Serra, introduziu temas altamente
sensíveis, com o objetivo de minar a candidatura de Dilma Rousseff: foram os temas
do kit gay, tema sensível para os evangélicos, que, além disso, teve o nefasto
efeito de minar a laicidade do Estado. Em 2013, a insatisfação popular com os
políticos e com os serviços públicos resultou nas “jornadas de julho”. O
governo, por ser governo, foi imediatamente criticado e perdeu apoio popular; a
isso se soma a desastrosa reação de inúmeros políticos intelectuais ligados ou
próximos ao PT, para quem as “jornadas de julho” eram manifestação de um
(re)nascente fascismo brasileiro. Para piorar, no final desse ano divulgou-se a
prática de maquiar o orçamento federal, a fim de disfarçar o déficit público.
Em 2014, a fraqueza do PT, de Dilma e até de Lula
refletiram-se no fato de que Dilma somente foi reeleita no segundo turno e por
uma ínfima diferença de votos. Também convém lembrar que parte da polarização
de 2014 deve-se aos quase desesperados esforços de Dilma e do PT para
“desconstruir” a candidatura de Marina Silva, que ganhou projeção graças a um
acidente fatal e que era vista como uma possibilidade de “renovação na
continuidade” da política brasileira. Nos meses seguintes às eleições, PSDB e
Aécio propuseram algumas teses que, naquele momento, eram no mínimo
discutíveis: impedimento imediato de Dilma Rousseff, novas eleições, cassação
da chapa Dilma–Temer. Isso manteve o ambiente tenso. Mas, de qualquer maneira,
o estelionato eleitoral de Dilma logo reacendeu as paixões, a que se somaram o
avanço das investigações da Operação Lava Jato e os problemas das “pedaladas
fiscais”.
Segundo alguns deputados da base do governo, caso Dilma seja
destituída ou renuncie o PT pode ou não sair do mapa político do país?
– O PT não sairá do mapa político do país, simplesmente
porque é um partido legal e legítimo. Ele tem força em várias partes do país e,
de qualquer maneira, mantém uma estrutura partidária importante, com
governadores, senadores, deputados, vereadores, prefeitos eleitos, com apoio de
movimentos sociais e também de intelectuais e estudantes. Isso não equivale a
dizer que o PT manterá a mesma importância atual: é um partido que tende a
diminuir fortemente, embora isso possa demorar mais ou menos tempo. Da mesma
forma, ele atualmente tem um sério problema de identidade (na verdade, sempre
teve): não sabe se é governo ou se é socialista, se é renovação ou se é
continuidade das práticas político-sociais brasileiras. A crítica que deputados
e movimentos sociais ligados ao PT fazem à política econômica de Dilma Rousseff
desde as eleições de 2014 – combatendo o necessário ajuste fiscal que o governo
do próprio PT teria que implementar – revela o quanto o partido está confuso.
Alguns petistas estão comparando o atual momento político
com o que o Jango passou em 1964; já linhas bem mais à esquerda, como o
Partidão, não veem semelhança e dizem que a situação é outra. Em sua opinião,
há ou não?
– A retórica do golpe é claramente exagero e pura retórica.
O problema é que a retórica produz efeitos concretos na política, especialmente
em momentos de grande tensão, como atualmente. Mas é necessário reconhecer que
a comparação com 1964 – certa ou errada – acaba sendo inevitável: em 1964 a
sociedade brasileira dividia-se em termos de direita e esquerda, em termos de
anticomunismo e pró-comunismo; a isso se somava o caráter que as Forças Armadas
de modo geral, e do Exército em particular, tinham de “Poder Moderador” da
República. Nada disso se verifica hoje, a despeito dos rompantes
anticapitalistas da extrema esquerda e dos desejos de intervenção militar da
recém-surgida extrema direita. As manifestações atualmente são contra o PT, sem
dúvida; mas são majoritariamente contra o PT porque se entende que esse partido
não entregou o que prometeu em termos de progresso político e social e, ao
contrário, produziu crise econômica e gigantescos escândalos políticos. Em suma,
as manifestações atuais, em última análise, são mais contra a corrupção e
contra um sistema político que se vê fortemente deslegitimado que contra uma
proposta mais abstrata de sistema social e político.
Essa crise política pode dividir o país, uma vez que o
ex-presidente Lula já deu declaração dizendo que pode convocar o “exército de
Stédile” (MST) para proteger o PT e a Dilma?
– As chances de isso ocorrer são um tanto remotas, mas não
podem ser desprezadas. Quais as variáveis importantes para evitar uma
conflagração geral? Que os extremos políticos sejam controlados e permaneçam
sob controle. No caso específico da declaração de Lula, ela foi, no mínimo,
irresponsável. É claro que sempre é possível dizer que foi uma frase dita em um
momento de arroubo, ou que ela deve(ria) ser entendida de maneira figurada etc.
O problema é que Lula é uma pessoa que não faz a menor questão de controlar
seus arroubos retóricos, ao mesmo tempo em que esse tipo de afirmação pode ser
entendida de maneira literal por muitos grupos, resultando em problemas sociais
mais adiante.
Então, essa declaração coloca mais lenha na fogueira ou é só
uma figura de retórica?
– O Brasil precisa de apaziguamento, não de aumento das
tensões – que, diga-se de passagem, são tensões que não se referem a clivagens
profundas da sociedade brasileira, como ocorreu em outros momentos da nossa
história.
Há possibilidade de o país viver uma ditadura? Ou sua
primeira guerra civil? Ou guerra civil e ditadura no final?
– Antes de mais nada, é necessário notar que o Brasil já
viveu guerras civis antes: a Revolução Farroupilha (1835-1845), as Revoltas da
Armada e a Revolução Federalista (1892-1894), a Guerra de Canudos (1896-1897) e
Revolução Constitucionalista (1932). No que se refere a uma ditadura, parece-me
improvável. Como comentei antes, deixando de lado os grupos extremistas à
esquerda e, principalmente, à direita, ninguém defende o fim da ordem
constitucional vigente nem a interrupção das liberdades públicas; bem ao
contrário, as manifestações que se vê baseiam-se nessas liberdades e
celebram-nas. Uma guerra civil está longe do nosso horizonte, mas não dá para
descartar totalmente. As conclamações ao “exército do Stédile”, as reiteradas
afirmações dos apoiadores do PT de que o processo de impedimento é “golpe” e
manifestações desse tipo estimulam a polarização política do país; essa
polarização, por sua vez, se se mantiver ao longo do tempo, pode cristalizar-se
e aumentar ainda mais, resultando em conflitos físicos de grandes proporções
entre os grupos opostos.
Se nada disso se concretizar e Dilma não sair do governo, PT
e governo terão forças para administrar isso no Congresso?
– Infelizmente, não. É bem verdade que a aceitação do pedido
de impedimento pelo presidente da Câmara ocorreu devido a motivos mesquinhos e
estritamente pessoais da sua parte; mas o fato é que há um clima social
amplamente favorável ao impedimento, Dilma já se mostrou incapaz de dirigir o
seu governo e de negociar com o Congresso e uma parte expressiva, para não
dizer a maior parte, dos atuais deputados federais já demonstrou uma grande
venalidade no trato da coisa pública e do Estado brasileiro. Não que um
eventual Governo Temer vá enfrentar uma situação muito diferente, ainda que a
saída de Dilma via impedimento (ou renúncia) teria um efeito catártico na maior
parte da população brasileira, a que se somaria um esforço de Michel Temer para
constituir um governo de união nacional e de transição até 2018.
Marcelo Bernardes
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