27 maio 2009

Augusto Comte "no cotidiano”



O livro Os clássicos no cotidiano, de Fernanda Henrique Cupertino Alcântara (ALCÂNTARA, 2008) é um manual de introdução à Sociologia, por meio da apresentação das principais idéias de alguns dos clássicos da disciplina[1]. Entretanto, em vez de limitar-se ao trio Marx, Weber e Durkheim, a autora incluiu também Augusto Comte e Alexis de Tocqueville (repetindo com felicidade, ainda que em parte, o procedimento de Aron (1999)). Como a autora comenta na “Introdução”, seu interesse era escrever uma obra que permitisse a compreensão sociológica do cotidiano a partir dos autores discutidos e que mantivesse o caráter de um livro didático, isto é, acessível. Nesse sentido, o intento da autora foi coroado de êxito, pois que o texto é interessante, despertando a atenção e a curiosidade do leitor. Da mesma forma, para o que nos interessa aqui – a apresentação das idéias de Comte (ALCÂNTARA, 2008, cap. 1) – a autora apresenta diversos elementos importantes do pensamento comtiano – elementos que costumam não aparecer em livros didáticos de ambições iguais ou superiores.

Dito isso, o fato é que várias informações que a autora apresentou a respeito de Comte estão simplesmente erradas ou enviesadas. Por um lado, a quantidade desses erros e sua gravidade são tão grandes que exigem uma discussão pormenorizada; por outro lado, embora evidentemente haja inúmeras e às vezes acerbas discussões sobre o pensamento dos outros clássicos da Sociologia, o fato é que há um efetivo conhecimento sobre o que esses outros autores pensaram – o que, como veremos, não é a situação de Comte, em particular no Brasil. Por esses motivos, em vez de tratarmos do livro como um todo, concentrar-nos-emos apenas no capítulo 1, dedicado ao fundador da Sociologia.

Antes de mais nada, face à afirmação de que há inúmeros problemas no texto, em correspondência particular a autora perguntou: “como não ser enviesado?” (ALCÂNTARA, 2009). Não adianta dizer que o tudo que temos à mão são interpretações, pois isso não resolve nada e serve apenas para um ultrarrelativismo quietista e politicamente inconseqüente. Não há mistérios teóricos ou metodológicos nessa questão: se é para apresentarmos um autor, é importante ler de fato esse autor e fazer um esforço efetivo para entender o que ele disse e o que quis dizer. É dessa forma que se controlam os vieses e obtêm-se “interpretações” mais ou menos autorizadas dos pensadores.

As referências básicas a respeito de Comte (ALCÂNTARA, 2008, p. 44) são Donald Levine (1997) e Anthony Giddens (1998); além disso, a autora indica Lelita Benoit (1999) e R. Aron (1999). Deixando de lado o fato de que isso é pouco e ignora importantes obras de referência[2], o livro de Aron é um clássico da história da Sociologia e, no que se refere a Comte, é bastante competente; o mesmo pode-se dizer a respeito de Levine, que sem dúvida alguma é uma das melhores obras de mapeamento da Sociologia. Já o artigo de Giddens é entre fraco e ruim: o conhecimento que ele tem de Comte é péssimo, é pouco; para Giddens, Comte é apenas um prenunciador do Círculo de Viena (opinião que a autora sutilmente repete e, portanto, compartilha[3]). Ao apresentar essa opinião, Giddens evidencia suas fortes limitações no que se refere a Comte. Por fim, o livro de Lelita Benoit apresenta igualmente sérios problemas. Décio Saes, marxista como Benoit, fez uma resenha favorável do livro (SAES, 1999); mas Arthur Lacerda, profundo conhecedor da obra de Comte, fez uma resenha extremamente crítica e desfavorável desse livro (LACERDA NETO, 2003b) – aliás, merecidamente, pois que ela adota o sofisma do espantalho, apresentando Comte de maneira a ele ser o arqui-inimigo burguês do marxismo. Na verdade, muito dos erros que a autora de Os clássicos no cotidiano cometeu devem-se às falhas de Giddens e de outros “críticos”.

A autora afirma que o Positivismo comtiano “influenciou os militares no Brasil” (ALCÂNTARA, 2008, p. 31). Mas quais militares? Definir quais militares foram “influenciados pelo Positivismo” não é uma questão secundária; em todo caso, como a autora não esclareceu essa questão, infere-se que sejam os de 1964 (mas, aliás, quais militares de 1964? Os linhas-duras, os sorbonistas ou as várias outras subclivagens?). De qualquer forma, os militares que foram influenciados pelo Positivismo foram os que proclamaram a República, em 1889, e cuja influência fez-se sentir de maneira mais ou menos intensa até 1930 e, de maneira mais fraca, até 1964. A separação entre “militares de 1889” e “militares de 1964” pode ser estabelecida com clareza no processo de mudança curricular por que, na década de 1920, passaram as academias militares, no sentido de os militares profissionalizarem-se (cf. CARVALHO, 2005, cap. 1). O que significava a profissionalização? Mudar a orientação humanista, civilista e pacifista prevalecente até então. Essa orientação pacifista, humanista e civilista era a dos positivistas, em particular Benjamin Constant, e foi em reação a ela que se constituíram os novos currículos militares. Esses novos currículos eram particularmente influenciados pelas doutrinas alemãs, o que aproximou os militares brasileiros da Alemanha, afastando-os da França. Pois bem: os militares que deram o golpe de 1964 (ou, mais precisamente, os golpes de 1930 em diante) foram os formados na nova tradição, de origem alemã e que, não por acaso, foram próximos ao nazismo e ao fascismo, como Góes Monteiro e Olympio Mourão Filho, jurados inimigos dos militares positivistas. Em suma: a autora claramente dá a entender que o Positivismo serviu de lastro ideológico para os golpistas de 1964, o que é simplesmente falso.

A autora também afirma, por exemplo, que “Comte criticou os socialistas, chamando-os equivocadamente de comunistas” (ALCÂNTARA, 2008, p. 42). Por que “equivocadamente”? Isso é um completo anacronismo! Surge a questão: o que é um “anacronismo”? É a atribuição de valores contemporâneos a situações passadas, sem considerar os contextos específicos do passado. Dessa forma, Comte estava corretíssimo em falar em “comunistas”, pois essa era a terminologia da época, que ele simplesmente seguiu[4]. Apenas após a atuação política de Marx e Engels e, em particular, após a Revolução Russa de 1917 é que a expressão “comunista” tornou-se mais ou menos sinônima de “marxista”. Esse erro é o mesmo que afirmar que não se pode falar em “hereditariedade” antes da divulgação das pesquisas de Mendel, pois teria sido Mendel o primeiro a definir as leis da hereditariedade: mas falava-se, sim, em hereditariedade pelo menos desde o final do século XVIII, com Lamarck – e é precisamente esse o uso que Augusto Comte fazia dessa expressão.

A autora afirma que “o poder Temporal é autoritário e hierárquico” (ALCÂNTARA, 2008, p. 39). Que o Estado é “autoritário” e hierárquico qualquer sociólogo ou politólogo reconhece: o problema é que a autora dá a entender que para Comte o Estado tem que ser “autoritário”, isto é, alguma coisa próxima a “despótico”. Ora, Marx, Weber, Durkheim concordavam que o Estado baseia-se, em última instância, na força física, embora não seja esse o seu meio básico nem preferencial de ação: só porque Comte diz a mesma coisa fazendo referência a Hobbes ele é “autoritário”? Isso é tolice, quando não ingenuidade: como o próprio Comte afirmava (COMTE, 1890, t. II, cap. II), por acaso desejar-se-ia que o Estado baseasse-se na fraqueza? Por outro lado, mesmo o grande teórico moderno da democracia, Rousseau, afirmava que há uma separação entre o governo e os governados, que seria possível “ultrapassar” por meio do artifício – altamente retórico, diga-se de passagem – da “soberania popular”. Por outro lado, considerando que há uma separação entre governantes e governados, em que, weberianamente, aqueles detêm o monopólio do uso legítimo da violência física, é claro que a relação entre uns e outros é hierárquica! Novamente, há no mínimo ingenuidade ao imputar a Comte um “Estado hierárquico”. Mas vamos ao argumento do próprio Comte: ele sempre foi muito explícito ao afirmar que deve haver a separação entre os poderes Temporal e Espiritual (cf., por ex., COMTE, 1890, t. II, cap. IV), o que, em termos correntes, é o mesmo que afirmar a separação entre a Igreja e o Estado. Isso quer dizer que o Estado não deve ter doutrina oficial, não deve doutrinar seus cidadãos, limitando-se a manter a ordem civil, ao mesmo tempo que resguardando a mais completa e total liberdade de pensamento e de expressão. O Estado deve ser forte para ser capaz de fazer frente às necessidades sociais, entre as quais citamos nominalmente a inclusão social do proletariado: é o mesmíssimo discurso que vemos (e que apoiamos) hoje a respeito da reforma do Estado! Por outro lado, se o poder Espiritual é separado do Temporal, ele é livre para criticar e (des)legitimar o poder Temporal. Esse relacionamento entre os dois poderes não se encaixa em qualquer definição que se tem de “autoritarismo”[5].

A autora também afirma que Comte era o sociólogo da unidade humana, em contraposição à diversidade (ALCÂNTARA, 2008, p. 29). A autora está correta no que se refere à unidade humana, mas está errada no que se refere à diversidade. Se ele contra a proposta de uma “igualdade social” (em moldes rousseuanianos), como seria contrário à diversidade? Ele sempre foi muito claro ao afirmar que um dos índices de desenvolvimento social é a divisão social do trabalho, o que equivale à diversidade. Ele era radicalmente favorável à diversidade (bem como ao que chamaríamos hoje de “eqüidade” ou de “justiça social”), mas era contrário às tendências puramente centrífugas e antissociais. Mas isso ainda é insuficiente, pois não esclarece o que significa isso. Mais precisamente, Comte era contrário àqueles que, em nome da “crítica” ou da “criticidade”, destruíam tudo que podiam, sem sugerir nada no lugar e, principalmente, sem ter a menor preocupação, explícita ou implícita, nesse sentido[6]. Assim, essa unidade, que afirma e confirma a diversidade, deve ocorrer por meio dos esforços em comum para o melhoramento da Humanidade, de que o poder Espiritual seria principalmente a consciência.

Mas isso ainda é insuficiente. A autora reiteradas vezes enfatizou a busca comtiana do consenso (ALCÂNTARA, 2008, p. 32 et passim). Ora, o que significa isso? Para Comte, o consenso é o compartilhamento de opiniões, valores e idéias, não a unanimidade. Se cada ser humano é ativo e deve ser convencido, cada qual pensa com sua própria cabeça. As diferenças de opiniões, valores e idéias não dependem da situação abstrata de cada um, mas variam de acordo com a família, com a classe social, com o país e até mesmo com a “ideologia” (ou religião, ou filosofia). Cada uma dessas situações específicas gera perspectivas específicas que devem ser harmonizadas para o benefício comum. Os conflitos de classe são exemplares nesse sentido: trabalhadores e patrões desempenham suas funções particulares para o benefício comum, mas a posição de classe deles tende a fazê-los naturalmente entrar em conflito. Esses conflitos têm que ser resolvidos, por todos os meios disponíveis: via arbitramento, via negociação coletiva, via legislação social e assim por diante. Mas se, por exemplo, os proletários virem-se em condições injustas, podem e devem até mesmo realizar greves (pacíficas). Não é difícil de perceber que, para conciliar as diversas perspectivas específicas, são necessários valores, idéias e opiniões em comum, a fim de permitir que haja um terreno comum sobre o qual negociar ou para o qual apelar. Além disso, o momento histórico (“contexto”) de Comte não se caracterizava por um liberalismo triunfante (ALCÂNTARA, 2008, p. 41ss.), mas pela anarquia moral e política da França posterior à Revolução Francesa e à Restauração, em que não havia nenhum terreno moral e filosófico comum capaz de servir de base para os conflitos sociais e, mais do que isso, para a constituição de um “projeto de sociedade” socialmente legítimo e legitimado.

Há ainda mais a comentar a respeito desse tema. O consenso em si não é a idéia fundamental, mas a convergência de propósitos. Esses propósitos não são quaisquer uns, mas são propósitos muito claros, muito precisos: é a constituição de uma sociedade pacífica, justa, esclarecida, irmanada por todos os povos do mundo o que almeja Comte. Assim, uma sociedade cujo Estado seja autoritário, embora force um “consenso”, é uma sociedade ruim, isto é, não é uma “sociedade positivista” . Da mesma forma, para que uma pessoa desenvolva um talento, uma habilidade, freqüentemente apresentará um comportamento antissocial, pois será obrigada a desenvolver suas próprias idéias, suas próprias habilidades: isso é o que diz literalmente Pierre Laffitte (1876), o principal discípulo de Comte e conselheiro do Presidente da França, Jules Ferry, que foi quem implantou a lei do ensino público, gratuito, universal e laico na França[7].

Aliás, correlatamente à idéia de consenso, a autora reiterou a de reforma (ALCÂNTARA, 2008, p. 28). A “reforma” comtiana, segundo a autora, seria oposta à revolução marxista, em uma reedição da dicotomia que a esquerda forçava nos anos 1960; essas reformas seriam “lentas, graduais e seguras”, de acordo com as leis naturais e não poderiam violar ou violentar as sociedades. Dessa forma, segundo a sua exposição, Comte seria o próprio ideólogo do status quo, de preferência burguês, a favor do capitalismo. Como já disse, isso é a aplicação do sofisma do espantalho, que não corresponde de maneira alguma à letra e ao espírito de Comte. Sem dúvida alguma que Comte opunha-se às revoluções, mas ele era contrário a elas como mudanças sociais violentas: por isso sua ênfase nas mudanças morais, no sentido de legitimar sociedades pacíficas, generosas, justas e esclarecidas. Mas isso não é o mesmo que afirmar, como a autora fez, que Comte era pela passividade ou pela omissão. O ser humano é ativo, isto é, deve agir: uma coisa é valorizar a paz e o entendimento, outra é ser burro de carga, humilhado ou enganado – ou viver em regimes ilegítimos, corruptos e/ou anacrônicos. Assim, por exemplo, em 1848 Comte estava completamente a favor do proletariado que se revoltava em Paris, assim como foi um dos primeiros, talvez um dos únicos, pensadores que glorificou a revolta dos escravos haitianos que no final do século XVIII e início do século XIX massacrou os senhores de engenhos franceses, em particular na figura de seu líder, Toussaint Louverture. O médico particular de Comte e seu discípulo direto, Robinet, foi um dos grandes defensores dos communards de 1871, tendo feito por eles muito mais do que Marx, que apenas disse que a comuna era o exemplo do comunismo futuro. Por fim, mas longe de esgotar os exemplos possíveis, no Brasil os positivistas foram a favor da abolição da escravatura imediata, sem transições ou compensações econômicas, muito antes de 1888[8], defendendo ainda que o Estado imperial criasse as condições sociais para que os negros alforriados fossem integrados de verdade à sociedade brasileira, denunciando o processo que hoje chamamos de “favelização”.

Os exercícios que a autora propôs, de análise de filmes e de situações concretas (ALCÂNTARA, 2008, p. 44-49), ao enfatizar situações degradantes e de exclusão social – sutilmente sugerindo que o Positivismo comtiano é favorável a tais degradações e exclusões – são totalmente enviesados, orientados claramente para que se conclua que o consenso de Comte é a mesma coisa que o autoritarismo social, o obscurantismo ou uma odiosa uniformidade de valores e opiniões – exatamente o contrário do que Comte afirmava e defendia. Aliás, diga-se de passagem, a uniformidade, autoritária, de opiniões e valores foi defendida convictamente por Rousseau e aplicada por Robespierre, não por Augusto Comte e seus discípulos.

Mas o ponto principal, para a autora, é a suposta “desresponsabilização” dos indivíduos que as idéias de Comte proporiam, o que estaria vinculado ao “determinismo” das leis sociológicas naturais defendidas pelo sistema comtiano (ALCÂNTARA, 2008, p. 35 et passim). Não deve ser difícil perceber, a partir dos comentários acima, que isso simplesmente não procede e que é um erro difundido por quem não conhece nem a letra nem o espírito da obra de Comte. Mas é importante ir diretamente à questão. Pois bem: a autora mesma indicou que, para Comte, o ser humano é sentimental, intelectual e ativo. Se é ativo, deve agir, deve fazer coisas. A autora também comentou, repetindo Giddens, que a Sociologia de Comte constituiu-se como conseqüência direta de sua concepção de ciência. Giddens fala isso apenas para dizer que Comte prenunciou o Círculo de Viena – o que significa pouco ou nada para quem conhece Comte e o Círculo de Viena, mas que impressiona quem não conhece nem um nem outro. A concepção de ciência para Comte era de um sistema de conhecimento que fosse relativo (isto é, anti-absolutista, em termos filosóficos), capaz de prever os acontecimentos. Para que prever os acontecimentos? Para agir em benefício da sociedade, isto é, dos seres humanos. A ciência é um sistema de conhecimentos que o ser humano elabora para benefício do próprio ser humano: isso inclui não apenas a satisfação de necessidades materiais, mas também e principalmente as necessidades intelectuais e morais. Dessa forma, embora a ciência ocorra por meio da objetivação, é para satisfação da subjetividade que ela deve desenvolver- se; se ela não satisfizer essa subjetividade, ela é inútil. Isso é o que significa a “síntese subjetiva”: o conhecimento é coordenado pelo ser humano para benefício do ser humano.

A idéia, ou acusação, de “determinismo” vincula-se intimamente ao problema anterior e igualmente improcede. De acordo com ela (ou melhor, de acordo com a interpretação usual dos seus críticos), os seres humanos seriam marionetes das forças históricas, sem qualquer capacidade autônoma da ação. Sem possibilidade de ação e de decisão, a política não existiria nem seriam possíveis mudanças sociais devidas a alterações nas idéias, nos valores e nas opiniões (ALCÂNTARA, 2008, p. 34). Já vimos que é incorreta a afirmação de que as idéias e os valores são desimportantes politicamente para Comte, mas é recorrente a sugestão de que os seres humanos são joguetes das forças históricas. Ora, a escala enciclopédica de Comte engloba sete ciências fundamentais: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral. Os critérios de organização dessa escala são dois: teórico e histórico. O histórico é o mais simples, pois corresponde à ordem em que essas ciências constituíram-se ao longo do tempo. O critério teórico é mais importante e, inclusivamente, explica o critério histórico: da Matemática à Moral, as ciências tornam-se menos simples e menos gerais, o que é a mesma coisa que afirmar que se tornam mais complexas e mais específicas. Além disso, à medida que se avança na escala, os fenômenos subseqüentes subordinam-se aos anteriores, no sentido de que, por exemplo, as leis da vida dependem das leis gerais da matéria, em termos físicos e químicos. Dessa forma, nessa escala ascendente, as ciências que ocupam os degraus mais altos tratam de fenômenos em que as variáveis intervenientes são em maior número, o que é a mesma coisa que afirmar que a possibilidade de sua modificação é maior. Maior possibilidade de modificação significa, muito simplesmente, maior capacidade humana de intervenção intencional na realidade.

No que se refere aos fenômenos humanos, em particular os sociais e os “psicológicos” (de que trataremos na seqüência), as possibilidades de modificação são muito maiores. Mas afirmar que existem mais possibilidades de modificação não é a mesma coisa que afirmar que essas modificações são infinitas ou que ocorrem ao bel-prazer dos seres humanos: não apenas porque as sociedades (como cada um dos seres humanos) não são plásticas, ou seja, modificáveis como é, por exemplo, uma argila, como porque toda sociedade apresenta necessariamente alguns elementos: é o que Augusto Comte chamava de Sociologia Estática, composta por cinco instituições (família, linguagem, governo, propriedade e religião).

O problema que se apresenta, portanto, é conjugar as possibilidades de modificação da sociedade com os limites históricos e sociológicos que tais modificações necessariamente enfrentam. Convém notar que essa conjugação é tanto teórica quanto prática, mas aqui nos ateremos à parte teórica. Comte rejeitava explicitamente a idéia de “determinismo”, em particular no que se referia aos fenômenos humanos (sociais e psicológicos); em seu lugar propunha a expressão “fatalidades modificáveis”, procurando com ela realizar a conjugação entre as leis naturais e a liberdade humana de ação e de decisão. Isso não é uma incoerência no sistema, mas importante observação teórica necessária à constituição das “ciências humanas”. Aliás, o já citado discípulo de Comte, Pierre Laffitte, em uma obra de epistemologia baseada no Positivismo comtiano, disse com todas as letras que, embora a idéia de lei natural seja e deva ser aplicável a todas as ciências da escala enciclopédica, é evidente que o seu rigor diminui à medida que se afasta da Matemática e que se aproxima da Moral (LAFFITTE, 1928)[9].

Há mais, muito mais. Comte (1899) afirmava que, para completar as leis, são necessárias vontades. O que isso quer dizer? Que devemos querer agir para que as coisas aconteçam. Disse acima que o ideal de ciência comtiano era o de saber para prever, a fim de prover. O que a ciência ensina, antes de mais nada, é que o ser humano é frágil e que a natureza é imperfeita; que a vida é dura e que o desenvolvimento das sociedades permite que desenvolvamos o altruísmo. A ciência, dessa forma, é o grande e, no final das contas, o único instrumento de que dispomos para intervir na realidade e melhorá-la. Como dissemos, esse melhoramento é material, intelectual e moral. Em termos intelectuais, o que importa é termos uma visão de conjunto, homogênea e coerente, capaz de satisfazer nossas necessidades psicológicas e de ação. Em termos materiais, é a ação humana no mundo, englobando a “natureza” (isto é, as plantas, os animais e até o espaço... a hipótese Gaia, de James Lovelock, bem como a teoria do xamanismo, de Lévi-Strauss, são imensamente próximas a Comte), para a constituição de sociedades pacíficas e justas. Em termos morais, o aperfeiçoamento humano é a compressão do egoísmo e o desenvolvimento do altruísmo, no processo que chamamos de educação. Para tudo isso é necessário que o ser humano queira, isto é, que aja de maneira ativa e responsável.

A ação, por outro lado, é sempre individual. Embora haja um único verdadeiro ser – a Humanidade –, ela age e existe por meio de órgãos individuais. Esses órgãos individuais, os indivíduos, as pessoas, têm responsabilidades proporcionais aos poderes de que dispõem, mas, de qualquer forma, todos são responsáveis pelas suas condutas, de todo para com todos. A rejeição da idéia metafísica e altamente egoísta de “direitos” e a defesa dos “deveres” não tem outro fundamento: todos somos responsáveis por todos (embora a responsabilidade de alguns seja maior que a de outros) e somos e seremos todos avaliados e julgados pela nossa atuação para o benefício comum.

Em apoio à sua tese de “desresponsabilização” dos seres humanos (ou, o que dá na mesma, de negação da “agência humana”), a autora repete um erro de Giddens: Giddens afirma que tanto Comte desprezava os “indivíduos” e as capacidades (e responsabilidades) humanas que nem chegou a incluir a Psicologia na sua escala enciclopédica, isto é, que a teria concluído na Sociologia. Isso é um erro devido aos seguintes motivos: 1) como ilustramos acima, Comte afirmava com todas as letras as responsabilidades individuais e as capacidades com que cada qual tem de agir; 2) a escala enciclopédica de Comte não parou na Sociologia, mas avançou mais um degrau; 3) se Comte não incluiu a “Psicologia” na sua escala enciclopédica, foi porque a “Psicologia” de sua época (e, sendo francos, enorme parte do que há ainda hoje) era pura metafísica; em seu lugar, ele incluiu a Moral, que trata precisamente do estudo do ser humano tomado individualmente; 4) Comte desenvolveu a sua sétima ciência, dedicada aos seres humanos tomados individualmente, a Moral, nos volumes finais do seu Sistema de política positiva, publicado entre 1851 e 1854 mas bem pouco conhecido pelo público acadêmico, que se detém no Sistema de filosofia positiva, de 1830 a 1842; 5) a última obra de Comte, chamada de Síntese subjetiva, teria quatro volumes, dos quais os últimos dois tratariam de modo específico do estudo do ser humano individualmente considerado: entretanto, ele morreu após publicar o primeiro desses quatro volumes[10].

Na verdade, não faz sentido que uma filosofia e uma religião que, reconhecidamente, preza fortemente a coerência, e que, segundo a autora (e Giddens et alii), favorece o quietismo, a omissão e a irresponsabilidade, produza um resultado prático tão incoerente quanto um também reconhecidamente fortíssimo ativismo social, político, econômico, intelectual e religioso no mundo inteiro. Das duas, uma: ou o ativismo dos positivistas é uma fantástica excrescência (talvez semelhante ao ativismo de Lênin, face ao marxismo), ou a idéia de “desresponsabilização” é errada. Em termos empíricos (com base em investigações históricas) e lógicos (adotando a navalha de Ockham), não restam dúvidas: o correto é a segunda hipótese.

O que se lê no livro Os clássicos no cotidiano representa muito que se aprende academicamente sobre Augusto Comte, não apenas no Ensino Superior, como também no Ensino Médio; não apenas nos cursos de graduação, como também nos vários níveis de pós-graduação. Dessa forma, ele não é a exceção, mas a regra – ou melhor, um caso exemplar dessa regra. Não deixa de ser irônico que ocorra uma forma extremamente perversa de consenso a respeito do autor a que se imputa a valorização do “consenso”. Como se pôde perceber pelos inúmeros e sérios problemas comentados aqui, as idéias difundidas no Brasil a respeito de Comte estão em claro desacordo com o espírito e a letra de sua obra; o fato de o livro em questão ser didático (ALCÂNTARA, 2008, p. 20-21) – nas palavras da autora, no duplo sentido de “direcionado ao ensino” e “legível pelo grande público (não-especialista)” – é acima de tudo motivo de preocupação com a memória da Sociologia e, assim, com a própria produção sociológica brasileira. Esse tema, entretanto, é questão para outro artigo.

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RIBEIRO JR., J. 2006. Augusto Comte e o Positivismo. Campinas: Edicamp.
SAES, D. 1999. As lições de Comte. Um comentário sobre Sociologia comteana. Gênese e devir, de Lelita Oliveira Benoit). Crítica Marxista, Campinas, n. 9, p. 124-131.
SOARES, M. P. 1999. O Positivismo no Brasil. 200 anos de Augusto Comte. Porto Alegre: UFRS.
TISKI, S. 2006. A questão da moral em Augusto Comte. Londrina: UEL.
TRINDADE, H. 2007. O Positivismo. Teoria e prática. 3ª ed. Porto Alegre: UFRS.





[1] O texto consiste em uma versão modificada de uma carta-resposta circunstanciada à autora (LACERDA, 2009b).
[2] Considerando apenas os livros disponíveis em português, no Brasil, e publicados nos últimos dez anos ou pouco mais, podemos indicar também Arana (2007), Coelho (2005), Cunha (2004), Fédi (2008), Graebin e Leal (1998), Lacerda Neto (2003a; 2004), Lacroix (2003), Ribeiro Jr. (2006), Soares (1999), Tiski (2006) e Trindade (2007), além de vários artigos de minha autoria (Lacerda, 2007; 2008a; 2008b) e o já clássico de Ivan Lins (1967). Essas referências, longe de serem exageros eruditos, são o mínimo que se pode esperar de uma obra didática sobre Comte no Brasil.
[3] Na verdade, não é tão sutil esse compartilhamento, pois que a autora justifica a permanência de Comte pela importância do “Positivismo jurídico” e das discussões “pós-positivistas” nas Ciências Sociais (ALCÂNTARA, 2008, p. 18n1): em ambos os casos ela comete erros grosseiros, pois que o Positivismo jurídico tem em comum com o de Augusto Comte apenas o nome, sendo ele devido a Hans Kelsen e não devendo nada a Comte (cf. BOBBIO, 2001); já o chamado “pós-positivismo” é um conjunto de perspectivas teóricas e metodológicas que superariam não conseqüências do Positivismo de Comte, mas sim do neopositivismo, devido ao Círculo de Viena, cujas ligações com o Positivismo comtiano, a despeito do argumento forçado de Giddens (1998), são poucas ou nenhuma, como se pode verificar na rarefação de citações a ele na coletânea de Ayer (1959) (apenas duas, de caráter histórico, en passant); ou ainda, como dizem literalmente por Pickering (1993, Introduction) ou Fédi (2008), o “pós-positivismo” na verdade recupera elementos do Positivismo comtiano.
[4] Aliás, em diversas ocasiões notamos que, se o uso da palavra “comunista” da parte de Comte refere-se ao que chamamos hoje, em virtude da interpretação de Marx no Manifesto do Partido Comunista, de “socialistas utópicos”, o conteúdo das críticas comtianas aos “seus” comunistas pode ser aplicado sem grandes dificuldades aos “nossos” comunistas (cf. LACERDA, 2003b, p. 84; 2008b; 2009).
[5] É notável o fato de que, embora a autora inclua nas referências bibliográficas um artigo de nossa autoria em que tratamos dessas questões (LACERDA, 2004), ela não o cita no texto nem extrai dele qualquer indicação a respeito da teoria política de Comte.
[6] Os autores pós-modernos – Deleuze, Gattari e colegas à frente –, tão preocupados com as “descontruções”, são os melhores exemplos contemporâneos dessa tendência.
[7] Diferentemente, portanto, da referência que a autora tira de Mucchielli (ALCÂNTARA, 2008, p. 30), segundo a qual a influência do Positivismo diminuiu após a morte de Littré, o “principal discípulo de Comte”.
[8] Aliás, a posse de escravos era motivo suficiente para a expulsão dos grêmios positivistas, como de fato ocorreu no início da década de 1880 (cf. LINS, 1967).
[9] O Cours de philosophie première de Laffitte, em dois volumes (LAFFITTE, 1894 ; 1928), é um excelente tratado de epistemologia e de teoria do conhecimento e deveria ter sido traduzido há muito tempo para o português, mormente no Brasil. Não o ter sido deve-se, por um lado, ao fato de que os seus leitores básicos – os positivistas – são versados no francês, mas, por outro lado, deve-se à simples falta de preocupação presente no Brasil de esclarecer aspectos centrais do pensamento comtiano. Deixando de lado os modismos intelectuais do país – que têm sua importância na obstrução de uma tal tradução –, o fato de serem os livros de Comte e de Laffitte obras mais que centenárias não é motivo para justificar a ausência de traduções, face às versões vernáculas de, por exemplo, Rousseau, Diderot, Hegel e Marx.
[10] Ainda assim, podemos indicar dois livros brasileiros dedicados à “Psicologia” baseada em Comte: Escobar (1979) e Coelho (1982). Além dessas duas obras teóricas, houve toda uma escola de Psicologia clínica baseada em Comte, a partir das pesquisas do médico paulista Aníbal da Silveira.

03 maio 2009

Contra o Ensino Médio fragmentário: por um Ensino Médio positivista



O ensino médio fragmentário, de disciplinas desconexas e que se pautam pela coleção de fatos, não é apenas um erro ao mesmo tempo pedagógico, filosófico e científico: acima de tudo, é um projeto político que visa a tornar o ensino irracional e ilógico, esvaziando a sua importância política.

O ensino que chamamos hoje de “médio” visa, ou deve visar, a fornecer elementos científicos aos estudantes. Esses “elementos científicos” não podem, não devem corresponder à acumulação de “fatos”, “dados”, fórmulas e informações, apresentadas apenas para serem decoradas. O problema não é apenas o decorar (embora, como alguns pensadores têm comentado, o simples decorar é inescapável) e o “empirismo” vulgar e vulgarmente associado a ele: o problema é que a fragmentação do conhecimento, via fragmentação do ensino, mina radicalmente a importância filosófica – e, portanto, política – que o ensino médio deve ter.

Qual essa importância filosófica? Em primeiro lugar, uma visão de conjunto sobre a realidade humana (cósmica e social). Em segundo lugar, a percepção de que o conhecimento humano é 1) relativo, 2) social, 3) histórico e 4) que somente pode existir na medida em que for assim (pois é dessa forma que ele é constituído). Em terceiro lugar, a percepção de que o conhecimento – especificamente científico – não se constitui pela acumulação de “fatos”, “dados” e fórmulas, mas pelas leis que ligam os fenômenos – sendo que tais leis são relações lógicas que os seres humanos criam.

A importância filosófica do ensino médio é, em si mesma, uma forma de utilidade. O conhecimento científico da realidade, por outro lado, oferece elementos para a ação prática; dessa forma, esse programa não é “literário”, no sentido de oferecer apenas elementos “teóricos”, sugerindo com isso que o único conhecimento digno é o da “vida do espírito”; mas também não considera que o único parâmetro válido de utilidade é o do mais grosseiro utilitarismo, em que o conhecimento somente seria válido a partir de sua aplicação prática imediata, na forma de algum tipo de tecnologia oriunda das ciências naturais.

Esse projeto de ensino, filosófico em sua essência e filosoficamente orientado, evita a fragmentação entre, por um lado, as chamadas “humanidades” e as Ciências Humanas e, por outro lado, as Ciências Naturais. O ser humano – ou melhor, a Humanidade – é o sujeito do conhecimento e o objetivo desse conhecimento: o ensino médio deve oferecer uma visão de conjunto disso, incluindo, além da realidade cósmica (Matemática, Astronomia, Física, Química e Biologia), a realidade propriamente humana (Sociologia, línguas, Filosofia e questões de cidadania). Esse programa, longe de ser inexeqüível, é na verdade o ideal a que mais ou menos se almeja atualmente; esse programa é positivista, de Augusto Comte, proposto pelo fundador do Positivismo desde o início de sua carreira madura, em 1830, quando se iniciou a redação do Curso de filosofia positiva – e, na verdade, foi das idéias-mestras de toda a elaboração positivista.

Um programa universalista, que enfatiza o ensino filosófico das ciências conjugado com o conhecimento de realidades humanas e sociais, deixa clara sua preocupação ao mesmo tempo psicológica (ao buscar a harmonia mental do ser humano) e política (ao defender o conhecimento científico da realidade e, portanto, a afirmação de que a ciência é uma forma mais adequada para o conhecimento da realidade e para a intervenção nessa mesma realidade). De passagem, convém indicar que esse programa, laico, é fortemente inspirado pelo Iluminismo e pela Enciclopédia, agregando-se a ele o caráter histórico do ser humano (e, portanto, da razão).

A fragmentação desse ensino, ou melhor, a não realização do projeto acima indicado, não é algo fortuito, bem como não é fortuita a reiterada afirmação de que justamente o ensino fragmentário é “positivista”. Não sendo fortuitos esses acontecimentos, importa saber a quais interesses atendem.

O que parece mais decisivo é a busca da neutralização política do conhecimento positivo, no sentido amplo e integrado indicado acima. A variável importante aqui é religiosa: sendo inescapável o conhecimento racional e humano da realidade, a melhor forma de neutralizá-lo é combater a sua apresentação articulada e coerente, propondo, em seu lugar, uma coleção de fatos e idéias fragmentárias, marcadas por uma racionalidade instrumental bastante rasteira. Essa forma de ensino é mais ou menos independente do “grande capital” e dos “grandes poderes”: tanto em um caso como em outro, o que importa é manter a acumulação de capital ou a dominação, mas eles acontecem em qualquer regime; por outro lado, são auxiliados poderosamente por um ensino (e, daí, por uma visão de mundo) incoerente e que não aponta para lugar algum. Ainda assim, o capital e o poder em si não têm nada a dizer a respeito do ensino, pois o que está em questão são idéias; dessa forma, os “interesses” filosóficos ou “ideológicos” mais atingidos pela visão de mundo científica são aqueles que opinam sobre questões de ensino e, dessa forma, podem combater a visão integrada do ser humano baseada no conhecimento da realidade social e cósmica. Considerando esses elementos, não é difícil perceber que são as forças religiosas, ou melhor, as teológicas aquelas que mais têm a lucrar com a fragmentação do ensino (atuando, secundariamente, como se sabe, como linhas de força favoráveis a interesses econômicos e políticos).

Em termos mais concretos, não é difícil perceber que as igrejas teológicas exercem de fato uma atividade desse tipo no Brasil republicano: desde pelo menos a Revolução de 1930, a Igreja Católica e, nas últimas décadas, também as igrejas evangélicas pentecostais têm exercido uma pressão crescente sobre o Estado brasileiro, tanto a favor de privilégios religiosos oficiais (especialmente no caso da Igreja Católica), quanto a favor seja do “ensino religioso” oficial e obrigatório nos currículos, seja de uma visão de mundo teológica nos currículos. Isso é perceptível pela presença maciça de representantes das igrejas nas mais variadas instâncias decisórias da educação de membros das várias igrejas cristãs presentes no Brasil.

A realidade desses fatos é mascarada nas discussões acadêmicas e políticas sobre ensino no Brasil por duas séries de motivos, que não poucas vezes unem-se em uma terceira série. A primeira e mais evidente é que, sendo muitos dos operadores e dos “analistas” de questões educacionais no Brasil vinculados (passiva ou ativamente, implícita ou explicitamente) a essas igrejas, o favorecimento a elas fica obscurecido ou escamoteado. Em segundo lugar, há no Brasil também uma tradição analítica que enfatiza os elementos “materiais” (políticos e, acima de tudo, econômicos) na compreensão da realidade social, de tal sorte que as questões especificamente intelectuais e morais – educacionais, em outras palavras – são “contraditoriamente” postas em segundo plano, pois consideradas como variáveis dependentes. (Essa visão de mundo, claro, é basicamente marxista, mas há uma série de derivações filosóficas que se informam nela mas sem serem propriamente marxistas: Habermas entraria nessa categoria, assim como, até certo ponto, Lyotard e vários pós-modernos.) A terceira série de motivos é a fusão das duas séries anteriores, em que há cristãos ocultando ou disfarçando suas motivações profundas a partir de perspectivas “críticas” (“contra o capitalismo e a exploração”): não é difícil perceber esses gêneros de discurso e de prática nas universidades e nos conselhos de educação.

Essas atuações político-pedagógicas são visíveis de uma perspectiva que enfatiza as instituições, mas o fato é que não podemos deixar de lado as simples modas acadêmicas e intelectuais que a cada momento desempenham seu papel. Nesse sentido, uma das modas intelectuais atuais é o pós-modernismo, com seu elogio da fragmentação intelectual e política como virtudes sociais e lógicas – e, daí, com o irracionalismo, com uma posição contrária à ciência e com o seu conservadorismo. O pós-modernismo tornou-se aliado da teologia, ao associar a ela o multiculturalismo como afirmação ultrarrelativista de que todos os conhecimentos têm epistemologicamente o mesmo valor e que, portanto, suas validades teóricas e políticas são idênticas para a sociedade. Isso é diferente do respeito devido às diferentes culturas, sejam elas próprias à nossa sociedade, sejam elas de culturas estrangeiras: é a afirmação social, política e científica de que a ciência não tem maior valor que outras formas de “conhecimento” e, não raras vezes, que a ciência é “irracional”. Bem percebidas as coisas, isso tudo equivale a que o obscurantismo deve ser cientificamente validado.

Há um outro aspecto das filosofias pós-modernas que se baseia nesse irracionalismo e que produz conseqüências diretas para os currículos, em particular no sentido que vimos discutindo e criticando até aqui: a idéia de que tudo é luta e apenas luta (pelo poder), não havendo espaço para a discussão racional e para uma visão racional, coerente e positiva da realidade; na verdade, essa perspectiva considera que a visão racional e generosa é apenas mais um instrumento na disputa pelo poder de uns grupos sobre outros. Se a lei da jungle é o que regula a sociedade, não há porque pretender que os currículos caracterizem-se por qualquer tipo de coerência ou racionalidade; no final das contas, eles serão refletirão apenas e tão-somente os resultados instáveis das lutas pelo poder, representando as visões de mundo dos dominadores de plantão.

Tornando-se fragmentário e sem sentido, o ensino médio torna-se mais vulnerável a ser modificado em função do vestibular. Evidentemente, o vestibular tem que se basear nos conhecimentos adquiridos pelos candidatos a vagas nas universidades durante o ensino médio; por outro lado, como os estudantes universitários devem estar minimamente preparados em termos teóricos e metodológicos para ingressar no ensino superior, é claro que o ensino médio não pode ignorar as exigências do ingresso na universidade. Todavia, uma coisa é reconhecer essas relações entre ensino superior e ensino médio; outra coisa, muito distinta, é orientar o ensino médio para a realização do vestibular. Ora, o ensino médio tem uma função filosófica (pedagógica e cívica) toda própria, que deve ser respeitada; além disso, nem todos os estudantes secundaristas querem seguir estudos de nível superior. Dessa forma, não há justificativa para modelar um complexo programa de estudos em função de uma prova seletiva a que apenas alguns estudantes desejam submeter-se: bem ao contrário, é o vestibular que, a partir das habilidades requeridas para o acesso ao nível superior, tem que se adequar aos conhecimentos do ensino médio[1].





[1] Um exemplo de perspectivas que vão em parte na direção oposto ao que esboçamos acima é a recente decisão do Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais a favor da criação de duas linhas para o ensino médio mineiro – uma voltada para as humanidades, outra para as ciências naturais –, em função dos cursos superiores a que os secundaristas podem, talvez, concorrer. Essa decisão fragmenta da pior maneira possível o ensino médio, ao opor duas séries de conhecimentos que têm validade intrínseca e que devem ser ensinados em conjunto, além de independentemente do vestibular.

30 março 2009

A pedantocracia ataca A. Comte (de novo)

A carta abaixo foi escrita para J.-B. Enthoven, que comentou e anotou uma edição de 1975 do Système de philosophie positive (mais conhecido como Cours de philosophie positive), de Augusto Comte. Os comentários do Prof° Enthoven foram todos (isso mesmo: todos) negativos e depreciadores de Comte, o que, além de uma falta de respeito para com o pensador que se comenta, também é um indício de mau-caratismo, de carreirismo, em que se utiliza um pensador como trampolim para a própria carreira (acadêmica, no caso); em outras palavras, é uma realização do que A. Comte chamava de "pedantocracia".

Mesmo tendo sido feitos há mais de 30 anos, esses comentários são odiosos e representam, como afirmei, o que há de pior nas universidades e em vários círculos intelectuais. É por esses motivos que escrevi a carta abaixo e que a reproduzo aqui.

* * *



Dear professor Enthoven:

My name is Gustavo Biscaia de Lacerda and I am a Brazilian researcher of Comtean thought. I was reading the two-volume edition of Comte’s Système de philosophie positive. Actually, I read the second volume, which has been commented by you.

The very initiative of republishing such a work is, of course, full of merits and, albeit it has happened more than 30 year ago, it must be celebrated.

However, as my reading goes on, I became more and more astonished with the commentaries by you: besides those which are simply biographical, your “substantive” comments (political and philosophical ones) were all negative and in order to depreciate Comte.

Not only you and your associates committed two basic errors in the name of both volumes – naming the first as “Philosophie première” and the second as “Physique Sociale”, which don’t correspond to Comte’s ideas and clearly indicate how (little) careful were you in the preparation of the volumes –, but every note of you was destructive and, so, generally unfair. A single example: somewhere you’ve said Comte had no political theory (i. e., theory of the State) at all. However, not only disciples of Comte (from Brazil, France, England, USA, Argentina, Chile, Turkey and many other countries) have noticed, developed and applied such a theory, but also researchers not committed to Positivism in a personal level have done that too. Moreover, not only right-wing politicians applied Comte’s ideas: it is astonishing that you quoted Ch. Maurras, but strangely “forgot” Léon Gambetta, Jules Ferry and many important progressive leaders of the French III Republic. I quote only these examples because presently I am researching Comte’s political thought and I’ve found not only a theory of the State, but a complete theory of Political Sociology, which owes nothing to Marx, Weber or Tocqueville (to name only some political thinkers of the XIXth Century). Actually, all over the books anyone can read misunderstandings and interpretations burdened with the worst intellectual prejudices.

During the reading of the volumes and of your commentaries, an impression has developed slowly, until the point when the simple impression became a certainty: you and your colleagues used Comte just as a jumping board to your academic careers. Such an enterprise you may call “an exercise of ‘criticism’”, but, indeed, the words of Comte are completely adequate: it is a demonstration of “pedantocratie” and the “criticism” as a synonym of “destruction”. (By the way: thank you very much for being a contemporary illustration of Comte’s idea of “pedantocratie”!)

Sincerely yours,

Gustavo Biscaia de Lacerda

http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/

deus prefere os ateus

Fonte: http://talktohimselfshow.zip.net/