20 março 2024

Henri Gouhier: Augusto Comte, ordem social e críticas à economia política

Henri Gouhier comenta Augusto Comte sobre a noção de ordem social e as críticas à economia política

 

O trecho abaixo corresponde à tradução de um trecho do capítulo VI, “La Sociologie”, seção IV, “La préhistoire de la Religion de l’Humanité”, presente no livro La Jeunesse d’Auguste Comte et la formation du Positivisme – v. III: “Auguste Comte et Saint Simon”, de Henri Gouhier (Paris, J. Vrin, 1970, 2e ed., p. 328-330). (Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda.)

De modo específico, os trechos abaixo afirmam a importância irrecorrível do poder espiritual (ou dos elementos morais, ou dos valores e das idéias) na constituição de qualquer sociedade. Essa afirmação ocorre em contraposição às concepções dos economistas, segundo quem a sociedade constitui-se somente da justaposição dos interesses materiais individuais; além disso, ainda para os economistas, essa justaposição dos interesses individuais constituiria uma ordem natural que, por ser natural, não precisaria de regularização nem de disciplina – nem, em particular, da afirmação das perspectivas sociais contra os interesses individuais. Em outras palavras, trata-se ao mesmo tempo da afirmação do poder espiritual e, em conseqüência, da rejeição do “Estado mínimo” propugnado pelo liberalismo econômico.

Nos trechos abaixo, Henri Gouhier comenta o opúsculo Considerações sobre o poder espiritual, de 1826, escrito como continuação tanto do Conjunto dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade, de 1822 (com reedição aumentada em 1824), quanto do opúsculo Considerações sobre as ciências e os cientistas, de 1825. Esses documentos foram publicados durante a fase adulta jovem de Augusto Comte (dos seus 21 aos 30 anos de idade), embora sejam popularmente conhecidos como “opúsculos de juventude”. Elas são seis publicações em um total de dezenas mais publicadas nessa época; eles correspondem aos únicos textos que Augusto Comte julgou dignos de serem preservados e que, de qualquer maneira, indicam com clareza sua preocupação precoce com o poder espiritual. Esses textos foram publicados como “Apêndice geral” do v. IV do Sistema de política positiva, de 1854. Em português há duas traduções desses textos: a primeira é de Dinarte Ribeiro (Porto Alegre, Globo, 1899) e a segunda é de Ivan Lins e de João Francisco de Souza (São Paulo, USP, 1972).

As notas de rodapé abaixo são de Henri Gouhier. A paginação indicada por H. Gouhier nessas notas de rodapé, por sua vez, refere-se a esta edição dos opúsculos de juventude de Augusto Comte: Opuscules de philosophie sociale –1819-1828 (Paris, E. Leroux, 1883 – disponível por exemplo aqui: https://archive.org/details/opusculesdephil00comtgoog).


Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Henri_Gouhier


Fonte: https://www.amazon.com.br/Jeunesse-DAuguste-Comte-Formation-Positivisme/dp/271160313X

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A ordem é de essência moral. Seu princípio é o interesse geral; ele transcende o plano do temporal em que a utilidade é a lei dos indivíduos e das classes[1]. Economistas e industrialistas têm o defeito de remeterem-se demasiadamente de bom grado à natureza porque eles conhecem-na mal.

A moral positiva é terrestre; ela reina sobre uma humanidade virada para este mundo e destinada a viver o melhor possível ao explorar suas riquezas; não há mais pecado original; não há mais superstições angustiantes. O homem sem alma é entretanto um ser dividido; a sociedade inscreve em sua existência mesmo uma transcendência dramática; se não há nada acima da natureza, a exigência de superação subsiste no seio da natureza: ela revela-se no sacrifício. Quaisquer que sejam os progressos da civilização, a legítima preocupação do interesse pessoal torna-se normalmente uma tendência antissocial; entre a ordem e a felicidade, o conflito é então toda uma outra coisa que um acidente: a necessidade do sacrifício é uma lei da natureza[2].

À dualidade do bem geral e da utilidade particular corresponde a do espiritual e do temporal. É uma ilusão acreditar que os interesses industriais vão, por si sós, constituir uma ordem social: interesses temporais são interesses temporais; o espírito industrial “é como todo outro espírito puramente temporal”: o egoísmo é sua lógica[3]. Assim, os economistas desconhecem a natureza. Eles bem reconheceram nos agrupamentos humanos uma tendência espontânea e permanente de organização: eles supuseram rapidissimamente que ela coincidia com o interesse bem entendido; ela não tem então nenhuma necessidade, a seus olhos, de instituições governamentais e espirituais para assegurar sua predominância; bastaria esclarecer os produtores sobre as verdadeiras condições de sua felicidade. “Isso seria contar demais com o poder das demonstrações da economia política, retruca Augusto Comte, para provar a conformidade necessária dos diversos interesses industriais, que de esperar que ela possa bastar para sempre para discipliná-los”. Essas demonstrações talvez não tenham a eficácia que seus autores prometem; de uma outra parte, “o homem não é sempre, nem mesmo com freqüência, suscetível de calcular com justiça”; sobretudo, “ele não se conduz unicamente, nem mesmo principalmente, com base em cálculos”, como se ele estivesse “conduzido apenas pelo móvel do interesse pessoal”[4]. A sociabilidade é natural; o interesse pessoal é naturalmente antissocial; há uma contradição na natureza: os economistas não podem superá-la pois eles não a vêm.

A tendência muito real da humanidade para a ordem significa simplesmente que a ordem é possível e não que ela deva naturalmente se estabelecer apenas pelo jogo dos interesses econômicos bem compreendidos. A sociedade não se organiza no nível da produção. Não há ordem no plano temporal. Ter desconhecido a transcendência do princípio moral, tal é, no fundo, “o vício fundamental da economia política, vista como teoria social”[5]: em outras palavras, é isso que impede a economia política de tornar-se a ciência social.

  


[1] Considerações sobre o poder espiritual, p. 247-248, 282.

[2] Ibidem. Eis aqui este texto importantíssimo para compreender o poderoso impulso moral que conduzirá Comte na direção do positivismo religioso: “Quaisquer que possam ser os progressos da civilização, será sempre verdadeiro que, se o estado social é, em certos aspectos, um estado contínuo de satisfação individual, ele é também, sob outros aspectos não menos necessários, um estado contínuo de sacrifício. Em termos mais precisos, há para cada um, em todo ato particular, um certo grau de satisfação sem o qual a sociedade não seria possível e um certo grau de sacrifício sem o qual ela não poderia manter-se, vista a oposição das tendências individuais, que é absolutamente inevitável em uma proporção qualquer” (p. 273).

E ainda, p. 274: “A maior perfeição social imaginável consistiria evidentemente em que cada um cumpra sempre no sistema geral a função particular que lhe é mais apropriada. Ora, mesmo nesse exato extremo e que é puramente fictício (ainda que nos aproximemos dele sem cessar), os homens teriam necessidade de um governo moral, pois que ninguém saberia conter espontaneamente seus pendores pessoais nos limites conformes às suas próprias condições”. A natureza e a sociedade diversificam os papéis e, em conseqüência, as condições; ora, há entre todos um mesmo desejo de prazer. A educação moral deve limitar em cada um “o desejo de todos os prazeres que se pode observar nos outros, qualquer que seja a diferença das condições”, e esta, “habituando desde a infância à subordinação voluntária do voluntária do interesse particular em relação ao bem comum e ao reproduzir sem cessar na vida ativa, com todo o ascendente necessário, a consideração do ponto de vista social”.

[3] Considerações sobre o poder espiritual, p. 282.

[4] Ibidem, p. 281. Em nome da “fisiologia do século XIX”, ele denuncia aqui “a frivolidade dessas teorias metafísicas que representam o homem como um ser essencialmente calculador”. Ver também as exigências de ação que preservam o homem de uma “atividade esterilmente raciocinante”, p. 272-273.

[5] Ibidem, p. 281, nota 1. Eis este texto decisivo: “O vício fundamental da economia política, encarada como teoria social, consiste diretamente em que, por ter constatado, sob algumas relações particulares, que são bastante longe de serem as mais importantes, a tendência espontânea e permanente das sociedades humanas para uma certa ordem necessária, ela crê-se autorizada a concluir daí a inutilidade de regularizá-la por meio de instituições positivas; ao passo que essa grande verdade política, concebida em seu conjunto, prova somente a possibilidade de organização, ao mesmo tempo em que ela conduz a apreciar-lhe dignamente a importância capital”.

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