No dia 10 de São Paulo de 169 (30.5.2023) fizemos nossa prédica positiva. Dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, iniciamos a sétima conferência, dedicada à filosofia das ciências naturais; na parte do sermão abordamos a expressão "comtismo" e o que pode significar a "atualização" do Positivismo.
A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/RRf9d) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://acesse.one/qWPWc). O sermão pode ser visto a partir de 53' 20".
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Sobre “comtismo” e atualização do
Positivismo
- Uma das primeiras – ou, com freqüência, uma das únicas – observações feitas por quem não conhece o Positivismo e a Religião da Humanidade é que é necessário “atualizá-los”
o Vinculada a essa questão está a diferença entre “comtismo” e “Positivismo”
- Essas duas questões exigem alguns esclarecimentos e algumas reflexões
o Vale notar que os comentários que farei aqui são mais ou menos pessoais e que, evidentemente, estou aberto a reflexões posteriores
- Comecemos pela expressão “comtismo”:
o “Comtismo” é uma expressão que denotaria a filosofia específica a Augusto Comte
§ Está muito claro o sentido usualmente depreciativo dessa expressão, ao querer reduzir o “Positivismo” a um mero “comtismo”, ou seja, ao querer reduzir o Positivismo a uma série de idiossincrasias e supostas esquisitices de Augusto Comte
o Ao mesmo tempo em que reduz a obra de Augusto Comte a uma série de idiossincrasias, a expressão “comtismo” sugere que o “Positivismo” consiste em outras coisas que não a filosofia e a religião sistematizadas por A. Comte
§ Essa mudança de âmbito do Positivismo pode ocorrer com fins elogiosos ou depreciativos em relação especificamente ao Positivismo
o Augusto Comte rejeitava a denominação – na verdade, como vimos, redução e degradação – de sua obra como “comtismo”
§ Para Comte, a doutrina positivista é superior aos seus órgãos quaisquer e, portanto, superior a ele mesmo: só isso já bastaria para rejeitar o “comtismo”
§ Assim, Comte insistia em que o Positivismo – e a Religião da Humanidade – deve ser entendido como uma elaboração sistematizada por ele a partir dos materiais legados pela Humanidade e que, portanto, não poderia, como não pode, ser reduzida às suas particularidades pessoais
o Por outro lado, as referências a Augusto Comte, da parte dos positivistas, são constantes: não seria isso uma prova empírica do “comtismo”?
§ A resposta a essa pergunta é muito clara e direta: não, não é prova de “comtismo”
§ As referências que os positivistas fazem a Augusto Comte devem-se pelo menos a duas ordens de motivos:
· Por um lado, trata-se de uma referência inescapável, na medida em que Augusto Comte foi o fundador do Positivismo e da Religião da Humanidade; ele elaborou – ou melhor dizendo, ele sistematizou – a síntese positiva e, portanto, é evidente que se deve fazer referência a ele
· Por outro lado, trata-se de humildade, de reconhecimento da superioridade moral e intelectual de Augusto Comte e, assim, trata-se também da aplicação do princípio de que a “digna submissão é a base do aperfeiçoamento”
§ Em outras palavras, os positivistas referem-se com freqüência a Augusto Comte porque essa referência é inescapável e também porque se trata de homenageá-lo e reconhecer nele uma figura digna de emulação
o Também é importante lembrar que, a despeito da determinadas tendências academicistas, o único “positivismo” para nós é o Positivismo de Augusto Comte; os demais supostos “positivismos” são exageros, ampliações conceituais indevidas, aplicações de boa ou má fé etc.
- Mas, enfim, se o Positivismo não é meramente o "comtismo", o que diferencia uma coisa da outra na prática?
o Para os nossos presentes propósitos, a resposta mais clara e mais direta é esta: trata-se da capacidade de desenvolvimento, aplicação e atualização do Positivismo – afinal, trata-se de uma doutrina relativista
§ Isso suscita, naturalmente, a questão da “atualização” do Positivismo
o Além disso, de maneira mais profunda, considerando a relação de oposição complementar entre “amor” e “fé” (ou seja, entre afeições/atividades práticas e inteligência), o comtismo consiste no mero conhecimento da letra de Augusto Comte e de seus discípulos, ao passo que o Positivismo consiste em viver de fato a partir dos parâmetros da Religião da Humanidade
- Passemos, então, ao tema da “atualização” do Positivismo: “atualizar” pode significar na prática três ou quatro coisas:
o Aplicar a doutrina a questões atuais
o Desenvolver e complementar a doutrina em aspectos mais ou menos secundários
o Modificar os métodos de propaganda
o Modificar a doutrina
- Mas, antes de qualquer discussão efetiva sobre a atualização do Positivismo, temos que considerar diversos aspectos preliminares:
o Antes de mais nada, muitos dos que criticam a desatualização do Positivismo desejam apenas o criticar, sem contribuir com nada além da crítica
§ Geralmente são teológicos ou metafísicos
§ Com freqüência tais críticos fazem observações superficiais sobre aspectos secundários do Positivismo e são moralmente muito inferiores ao Positivismo
· Exemplo: Carl Sagan: em Cosmos ele critica longamente Augusto Comte (por este ser contra a análise espectrográfica das estrelas), ignorando de maneira mesquinha os elogios que Augusto Comte fez da Astronomia (aliás, em um livro de divulgação científica, a sua Astronomia popular); por outro lado, em O mundo assombrado pelos demônios, Carl Sagan afirma que o máximo da moralidade é a “regra de ouro” sugerida pelo protestantismo, em particular o prevalecente nos Estados Unidos: “não fazer aos outros o que não se deseja que se faça com você” é o cúmulo do egoísmo e a negação direta do altruísmo
o Basicamente, quem fala em “atualizar” o Positivismo não o conhece nem o entende
§ Se não conhece e não entende, não tem absolutamente nenhuma condição de avaliá-lo e, portanto, de sugerir qualquer alteração nele
· Quem não conhece a doutrina mas exige atualizações revela não apenas ignorância como também arrogância
§ É importante aqui destacar que o Positivismo implica, necessariamente, uma alteração de perspectiva
§ No âmbito do Positivismo não falamos em “iluminação”, em “revelação”, em “testemunho”; ainda assim, o adequado entendimento do Positivismo não é um processo total ou principalmente intelectual; é um processo afetivo que implica a mudança profunda e radical de como se entende a realidade: eu tenho usado a expressão “mudança de sensibilidade”
§ Essa mudança consiste na revalorização dos sentimentos, na substituição do absolutismo pelo relativismo e na aplicação geral da lógica positiva (sentimentos, imagens, sinais), com tudo o que isso implica
o O segundo aspecto preliminar que temos que ter em mente ao tratarmos da atualização do Positivismo é entendermos a partir de qual filosofia (e de qual síntese) fala-se disso e, ainda mais, em qual contexto social
§ Saber de qual filosofia (ou de qual síntese) fala-se em atualização importa porque as concepções de mundo, sobre a realidade, seus valores etc. são determinados ou influenciados por essa filosofia: há que se considerar se essa filosofia (ou essa síntese) é compatível com o Positivismo, se é relativista ou não, se afirma a visão de conjunto ou não, se reconhece o altruísmo ou não; ou, por outro lado, se é materialista ou não, se é espiritualista ou não, se é metafísica ou não etc.
§ O que vale para a filosofia adotada pelos indivíduos vale muito mais e de maneira mais central para a sociedade; afinal, os valores e as concepções difundidas e vigentes em uma determinada época e em um determinado lugar influenciam poderosamente a maneira como os indivíduos pensam, estabelecendo parâmetros, impondo limites etc.
o É necessário insistir nesta ideia: o contexto social mais amplo não é secundário; na verdade, ele faz toda a diferença
§ Os exemplos são inúmeros e variam conforme os períodos (ou seja, conforme os "contextos"); os exemplos que darei são todos do Brasil, mas poderiam ser estendidos a todos os países:
· Nas décadas de 1890 a 1930, o Positivismo era criticado (ou ridicularizado) por defender o proletariado, por defender a proteção social aos idosos, às mulheres, aos desamparados; por defender os índios; por defender o ambientalismo; por defender a atuação social do Estado (contra o liberalismo econômico)
· Nos anos 1930 e 1940 o Positivismo era criticado por ser a favor das garantias constitucionais, por ser a favor das liberdades, por ser a favor de reformas (e não de revoluções), por ser a favor do pacifismo (e não do militarismo), por ser a favor da concórdia entre as classes (e contra a luta de classes), por afirmar a visão de conjunto e também a atuação individual; por estar muito identificado com a I República
· Nos anos 1960 a 1980 o Positivismo era criticado por ser a favor da visão de conjunto e a favor da atuação individual; por defender as reformas (e não as revoluções); por defender a moderação (e não os extremos); por defender a racionalidade (contra o irracionalismo maoísta e contra o misticismo vinculado a drogas dos hippies); por defender a concórdia entre as classes (e não a luta de classes); por estarmos identificados equivocadamente com os militares e até certo ponto corretamente com a I República
§ Em cada uma das conjunturas indicadas acima se afirmou que o Positivismo estaria ou seria “desatualizado” e, por implicação, que o Positivismo deveria “atualizar-se” nos sentidos criticados
§ Caso os positivistas tivessem-se “atualizado” conforme essas conjunturas e as respectivas cobranças, o Positivismo ficaria descaracterizado e degradado
§ Em meio a todas essas modas político-intelectuais e apesar delas (ou contra elas), o Positivismo comprovou-se correto
o O atual contexto social é marcado, acima de tudo, pela metafísica e por seu espírito dissolvente, particularista, exclusivista, excludente – além de absolutista, academicista e/ou irracionalista: pós-modernismo, cientificismo academicista, identitarismo, tradicionalismo etc. etc.
§ Nesse contexto, a “atualização” do Positivismo consistiria em alterá-lo em direção à metafísica, ao seu absolutismo e ao seu espírito dissolvente: deveria ser claro que isso não seria “atualizar”, mas degradar
- Passemos aos sentidos possíveis de “atualizar”, começando pela aplicação da doutrina:
o Pode-se aplicar uma doutrina das mais diferentes maneiras
§ Podemos aplicar uma doutrina fazendo citações dela ou referindo-nos a seus autores: essa é uma forma bem superficial, basicamente intelectualista mas extremamente comum; na verdade, é o que mais ocorre
§ Podemos aplicar uma doutrina a partir de um conhecimento “médio”, nem superficial nem profundo; geralmente são intelectualistas e exigem uma certa simpatia; esse nível permite alguns desenvolvimentos, em particular intelectuais mas com certa freqüência formalistas
§ A aplicação a partir do conhecimento aprofundado é a mais difícil, pois exige tanto o conhecimento intelectual quanto a experiência “vital” da doutrina: é aí que a aplicação da doutrina torna-se mais rica, mais frutuosa e mais viva – e mais criativa
§ Assim, por si só, aplicar a doutrina é uma forma de atualizá-la
- A respeito da atualização como desenvolvimento ou complemento da doutrina:
o Deveria ser evidente (mas não é) que a atualização como desenvolvimento e/ou complemento exige tanto o conhecimento quanto a experiência subjetiva da doutrina, além do respeito e da simpatia pela figura do fundador (no caso, Augusto Comte), pelos seus discípulos sinceros e pela própria doutrina
o O conhecimento da doutrina já sugere desenvolvimentos ou complementos, seja a partir de indicações do fundador, seja por lacunas que a doutrina sugere existirem
o Conhecimentos ou movimentos sociopolíticos correntes podem sugerir ou inspirar alguns desenvolvimentos ou complementos na doutrina
§ Há uma condição fundamental para isso: esses desenvolvimentos ou complementos inspirados por novos conhecimentos ou outros movimentos têm que ser, evidentemente, coerentes e homogêneos com a doutrina
§ Também é importante lembrar que o método é superior à doutrina em si
o Com facilidade aceitamos que há vários aspectos do Positivismo que estão “desatualizados” e que podem, também com maior ou menor facilidade, ser “atualizados”
§ Um exemplo da política mundial: atualmente existe a ONU e, de maneira correlata, o colonialismo europeu, que dominava o mundo no século XIX, já não existe mais
§ Um exemplo da política nacional: após a II Guerra Mundial desenvolveu-se o Estado de bem-estar social
§ Um exemplo das ciências: a Informática é uma área que demanda incorporação na classificação das ciências (minha sugestão pessoal é que seja entendida como integrante da Filosofia Terceira, isto é, como tecnologia derivada da Matemática)
- No que se refere à atualização como mudança nos métodos de propaganda:
o Essa talvez seja a forma mais simples, mas não necessariamente mais fácil, de atualizar
o Ela consiste em usar dignamente todos os meios disponíveis, técnicos e sociais, para a propaganda
o Mas sempre é necessário ter-se clareza de que a forma interfere no conteúdo e vice-versa; assim, determinadas formas de comunicação podem degradar o conteúdo, bem como determinados conteúdos devem evitar alguns formatos
- No que se refere à atualização como mudança da doutrina:
o Com freqüência, quem reclama “atualização” do Positivismo (ou, por outra, quem critica sua “desatualização”) demanda a mudança da doutrina
§ Por “mudança da doutrina” eu entendo aqui a mudança no “núcleo duro” da doutrina (relativismo, historicismo, defesa do altruísmo, visão de conjunto, natureza humana tríplice, prevalência da continuidade humana sobre a solidariedade etc.)
o Uma coisa é realizar ajustes secundários maiores ou menores; outra coisa é propor a mudança de partes fundamentais da doutrina: estas mudanças fundamentais não são “atualizações”, mas são deformações
o Como indicamos antes, a atualização como mudança da doutrina geralmente é proposta por quem não conhece e nem entende o Positivismo e, de qualquer maneira, é proposta por quem considera que o espírito do tempo presente, daquele em que se vive, é o cume da moralidade e da inteligência humana
§ Nos dias atuais (início do século XXI), isso consiste em o Positivismo fazer concessões, maiores ou menores, aos identitarismos de esquerda, aos identitarismos de direita, aos autoritarismos de direita, aos autoritarismos de esquerda, ao pós-modernismo e/ou ao ultraliberalismo
Observações de Hernani Gomes da Costa para colaborar com este sermão, feitas em 29.5.2023
Algumas reflexões que me ocorreram sobre o seu sermão:
1)
“Devo
limitar aqui a apreciação do futuro e do presente pelo grau de precisão que
comportam os volumes precedentes nos estudos respectivos da ordem e do progresso.
Mas uma tal aproximação basta realmente a todas as necessidades atuais. Quando
a sucessão humana exigir regras mais especiais, a moral as instituirá segundo
uma sociologia mais desenvolvida, que poderá às vezes necessitar do
aperfeiçoamento prévio da biologia e mesmo da cosmologia” (Augusto Comte, Política
Positiva; Preâmbulo Geral, Tomo IV, p.8).
2)
O
fator tempo não pode funcionar como um critério absoluto capaz de determinar
por si só a validade de uma concepção.
3)
Diferenças
sutis entre as idéias de “novo” e de “atual”: nem tudo que é atual é novo e
vice-versa.
4)
Necessidade
do estabelecimento de critérios simultaneamente afetivos, intelectuais e
práticos para a plena caracterização do que possa constituir uma real
atualização da doutrina. Da mesma forma, necessidade de comparar essa
atualização com a dos aperfeiçoamentos de que são suscetíveis as imagens
subjetivas dos nossos entes queridos falecidos.
5)
Maior
simpatia, maior síntese e maior sinergia definem o perfil de uma verdadeira
atualização da doutrina.
6)
Na
caracterização de um aperfeiçoamento qualquer, o tempo designado como “presente”
precisa estar subordinado tanto ao passado quanto ao futuro, constituindo-se
assim como um verdadeiro intermediário de um e outro.
7)
É também
importante lembrar o papel das utopias como marcos referenciais para as
atualizações.
8)
É
importante lembrar que as maiores retrogradações, sobretudo práticas, sempre
reivindicaram para si o caráter de “modernidade”.
9)
A
morte prematura de Augusto Comte deixou a doutrina inacabada e necessitando de
uma inteira revisão. Este caráter deve distinguir a propaganda positivista
daquela que é realizada por todas as religiões teológicas. É na assunção de sua
incompletude que reside o sinal distintivo de sua perenidade.
10) Diferença sutil entre “comtiano”, “comtista”
e “positivista”.
11) As lições que podemos aproveitar do que se
chamou o “revisionismo” entre os marxistas, e do que se entende por uma “heresia”
teológica, como tentativas malogradas de aperfeiçoamento doutrinário.
12) Os assim chamados “livros didáticos”
transformados em mercadoria descartável (tanto pelo orgulho e pela vaidade do
pedantismo acadêmico quanto pela cobiça da burguesocracia) e vistos como uma
espécie de mina inesgotável; eles promovem uma idéia distorcida daquilo em que
consiste uma verdadeira atualização científica junto a quem mal começa
seus estudos.
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