No dia 10 de Homero de 169 (7.2.2023) fizemos nossa prédica
positiva, em que demos continuidade à leitura comentada do Catecismo
positivista, especialmente em sua quinta conferência, dedicada ao culto
público.
Antes da leitura comentada, lembramos o centenário de nascimento do nosso grande correligionário Paulo de Tarso Monte Serrat (1923-2014), ocorrido justamente nessa data (10 de Homero, ou 7 de fevereiro).
Após a leitura comentada, apresentamos algumas reflexões sobre a noção positiva (altruísta, relativa, sociocrática) de mérito individual. As anotações que fizemos para o sermão estão reproduzidas abaixo.
A prédica pode ser vista nos canais Apostolado Positivista (l1nk.dev/Meritos) e Positivismo (l1nq.com/Meritocracia). O sermão sobre o mérito pode ser visto nos vídeos a partir de 44' 55".
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Anotações sobre o mérito e a meritocracia
- No Brasil atual, o mérito individual é tema de grande oposição entre distintas perspectivas políticas, a partir de critérios intelectuais e morais
- Para adiantar o argumento e simplificar a discussão, podemos estabelecer (pelo menos) dois conceitos de “mérito”:
o Conceito metafísico, burguês e individualista: o mérito individual é dado e medido pelo sucesso material (grosseiramente: pela renda mensal) e este, por sua vez, é uma conseqüência única e exclusiva do esforço individual
§ Essa concepção é, por definição, egoísta e antissocial – e antissocial mesmo no sentido de que o mérito de um indivíduo afirma-se pela negação do valor dos demais cidadãos
o Conceito positivo, sociocrático e altruísta: o mérito individual é dado e medido pela moralidade das ações individuais, estabelecida, por um lado, pelas contribuições sociais (ou melhor, sociocráticas) dessas ações e, por outro lado, e de maneira complementar, pela moralidade das ações individuais
- A noção de mérito individual é afirmada desde sempre em todas as sociedades (ou, talvez, na maioria esmagadora delas), como um estímulo à qualidade e ao valor das ações individuais
o Nesse sentido, o mérito individual é um estímulo ao aperfeiçoamento pessoal
o Em tais situações, o mérito individual é complementar ao caráter social das pessoas
o Em suma, a afirmação do mérito individual é a recompensa pública que o conjunto da sociedade dá aos esforços de uma pessoa em benefício dos demais
- No Ocidente, a noção de mérito individual afirmou-se pelo menos no século XVIII, pelos enciclopedistas, ao mesmo tempo como um estímulo aos esforços altruístas individuais e como um princípio organizador da sociedade que se contrapunha ao princípio das castas
o É necessário insistir nessa idéia: o mérito individual contrapõe-se às castas (de que as sociedades de ordens, intrínsecas às monarquias, são o último resquício)
o As sociedades de castas organizam-se de tal maneira que a profissão dos indivíduos e também seus valores pessoais estão determinados previamente ao seu nascimento, pela posição que cada qual ocupa na estrutura social
o No século XVIII, os enciclopedistas afirmavam que o valor de um indivíduo seria dado não a priori, pelo seu “berço”, mas a posteriori, conforme a moralidade intrínseca e os resultados efetivos das ações realizadas por cada um ao longo de suas vidas
§ Não é preciso insistir muito na idéia de que o último sacramento positivista, o da incorporação, baseia-se intimamente na noção de mérito individual (bem entendido: na acepção sociocrática e altruísta do mérito individual)
- A noção de mérito individual (em particular como contraposto às castas) é muito clara em outros países, especialmente naqueles com forte tradição republicana
o Considero aqui, em particular, França e Portugal
§ Vale notar que na França e em Portugal a meritocracia republicana é, por um lado, afirmada pela esquerda e, por outro lado, contra o identitarismo
- O Positivismo afirma com clareza, com todas as letras, a noção de mérito individual
o A noção de mérito individual no Positivismo segue a inspiração anti-castas do republicanismo enciclopedista e também o seu estímulo ao aperfeiçoamento individual
o Embora seja evidente e já o tenhamos afirmado, é necessário repeti-lo com todas as letras: a meritocracia positivista orienta os indivíduos para o altruísmo; ou seja, é u’a meritocracia sociocrática
- Augusto Comte tinha muitíssima clareza de que a capacidade de ação individual varia de acordo com a posição de cada indivíduo na sociedade
o Indivíduos melhor situados (os ricos) conseguem fazer mais coisas; indivíduos pior situados (os pobres) conseguem fazer menos coisas
o A maior possibilidade que os ricos têm de fazer mais coisas resulta pelo menos em duas conseqüências para o Positivismo:
§ Maiores recursos implicam maiores deveres: se o capital é social em sua origem e, portanto, deve ter uma destinação social, a posse (ou, se desejar-se, a propriedade) do capital implica necessariamente a obrigação de usar bem e com fins sociais o capital à em outras palavras, na sociocracia a propriedade do capital não é um luxo nem um direito, mas uma obrigação que se impõe
§ Maiores possibilidades dadas a priori implicam, inversamente, menor mérito relativo
o Como resultado das observações acima, no Positivismo o caráter moral (e social) do “mérito individual” apresenta-se com toda a clareza e em todo o seu esplendor
o Ao mesmo tempo, considerando que a capacidade de atuação de um indivíduo está profundamente vinculada à sua posição na estrutura social, a avaliação, ou melhor, a determinação do mérito individual tem que ser extremamente abstrata (sopesando as ações individuais e a posição na estrutura social), elaborada a partir de parâmetros morais (e sociocráticos) e por juízes especialmente preparados para isso (ou seja, pelo sacerdócio positivista)
§ Augusto Comte afirmava que essa avaliação consistia no mais difícil e mais exclusivo atributo do sacerdócio positivo
- Nas disputas políticas brasileiras, a “direita” neoliberal (ou ultraliberal) afirma o “mérito individual” a partir dos parâmetros estadunidenses dos anos 1980: um indivíduo é meritório se ele tiver “sucesso na vida”, o que, por sua vez, quer dizer que ele agiu contra os outros indivíduos (ou melhor, contra a sociedade) e tem uma altíssima renda mensal
o O grande exemplo disso é a personagem Gordon Gekko, do filme Wall Street (de 1987 e dirigido por Oliver Stone); interpretado por Michael Douglas; essa personagem dizia que “A ganância é boa”
- Em contraposição a esse conceito rasteiro e degradante de mérito, a esquerda brasileira afirma... o mais puro igualitarismo, rejeitando totalmente qualquer noção de mérito
o Insisto: a rejeição esquerdista do mérito consiste na mais completa, pura e total afirmação do igualitarismo; é o igualitarismo levado às últimas conseqüências
o Ao mirar na concepção neoliberal do mérito, a esquerda rejeita qualquer concepção de mérito e, portanto, na prática despreza as ações individuais e os mecanismos morais e intelectuais adequados à regulação dos “indivíduos”
§ É claro que, ao rejeitar os mecanismos morais de regulação dos “indivíduos”, a esquerda brasileira necessariamente afirma o materialismo economicista (quando não, também, o materialismo politicista)
o A rejeição da noção de mérito, pela esquerda, apresenta uma série escandalosa de defeitos morais e intelectuais acachapantes:
§ Esquece, ou finge esquecer, que o mérito individual contrapõe-se à sociedade de castas, de tal sorte que rejeitar qualquer mérito individual é afirmar, ou propor, a sociedade de castas
· Aliás: não por acaso, as tentativas empíricas de criar sociedades “igualitaristas” serviram apenas para criar versões modernas de sociedades de castas, como nos países comunistas
§ Rejeita a tradição republicana ocidental, conforme desenvolvida e aplicada desde o século XVIII e ainda hoje viva e pulsante (França e Portugal)
§ Finge esquecer que a história brasileira foi marcada por uma sociedade de castas, durante o período monarquista
· A monarquia era um arremedo ridículo de “sociedade de estados” no que se refere à nobreza, mas era muito concretamente uma sociedade de castas no que se referia à escravidão
§ Ignora, ou finge ignorar, que as eleições e os votos baseiam-se sempre no afirmado mérito individual dos candidatos e na superioridade (alegada e/ou real) de uns em relação aos outros
§ Ignora, ou finge ignorar, que situações de profunda injustiça social tendem a realçar o mérito individual daqueles que, a muito custo, conseguem superar suas dificuldades e desenvolver atividades socialmente importantes
· Por exemplo: a rejeição do mérito individual é incoerente e incompatível com a recente (e corretíssima) valorização de Luiz Gama, em uma cinebiografia de 2021 (Doutor Gama, de Jeferson De)
· É claro que o realçado mérito individual de quem supera as grandes adversidades não pode ser entendido como justificativa para a manutenção das situações de injustiça social
o Não há justificativa nenhuma para a rejeição do conceito de mérito da parte da esquerda brasileira
§ A esquerda brasileira combate, com razão e justiça, o conceito metafísico-burguesocrático-neoliberal de mérito que o entende como sendo a alta renda mensal às expensas dos demais
§ Entretanto, a esquerda brasileira, consoante seu igualitarismo materialista radical, despreza toda e qualquer concepção de mérito individual: ela “joga fora o bebê juntamente com a água do banho”
§ Se quisesse, a esquerda brasileira poderia muito bem elaborar opções intelectuais, campanhas políticas etc. apresentando concepções alternativas de mérito; mas é exatamente essa a questão: a esquerda brasileira não faz tais campanhas porque não quer
o A rejeição de qualquer concepção de mérito a partir (e/ou em benefício) do radical igualitarismo materialista serve profundamente à política identitária, com seu sectarismo, sua ultrapolitização dos ressentimentos sociais – e suas infinitas cotas
o Afirmar a “justiça social” para rejeitar o mérito individual não é justificativa nenhuma adequada para as tolices da esquerda brasileira, a esse respeito
§ Essa rejeição – cuja contrapartida é a afirmação do identitarismo e das suas cotas – não serve nem à justiça social nem à regulação dos “indivíduos”, nem faz justiça aos ricos e (em especial) aos pobres que têm efetivamente mérito
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