24 maio 2021

Positivismo, uma oportunidade desperdiçada no Brasil

O período de maior atividade da Igreja Positivista do Brasil ocorreu entre 1881 (ano de sua fundação) e 1927 (ano de morte de Teixeira Mendes); nesse quase meio século, as propostas do Positivismo incluíram uma quantidade enorme de temas: política trabalhista, política indigenista, defesa da liberdade de pensamento, liberdade profissional, paz na América do Sul e na Europa, abolição da escravidão e incorporação do proletariado, fim da monarquia, proclamação e organização da República; combate ao racismo e à discriminação; proposta de uma liga ecumênica em favor da Humanidade; história do Brasil, história da Europa; teoria neurológica, teoria das ciências, teoria social, teoria política; história de Augusto Comte – e muitos, muitos outros assuntos. Em bem mais de 600 publicações – algumas delas com duas ou três páginas, muitas com centenas de páginas –, eles realizaram efetivamente a proposta comtiana, ou melhor, positivista de constituição de um novo poder Espiritual.

O Positivismo obteve grande sucesso no Brasil porque era uma filosofia e uma política que prometia e realizava a modernização (política, intelectual, social, institucional) do país; na conjuntura específica do século XIX, o Positivismo afirmava a importância intelectual e prática da ciência, bem como a afirmava a República e o fim da escravidão; tudo isso constituía, por si só, um projeto impressionante, mas, mais do que isso, resultaria em um legado que poderia ter grandes frutos caso os brasileiros quiséssemos preservá-lo.

O Positivismo afirma a importância da ciência mas é, ao mesmo tempo, uma religião; ele afirma a importância da ordem mas aspira ao progresso assim como, inversamente, busca o progresso mas não rejeita a ordem; afirma o primado da sociedade industrial e a relevância política da luta de classes, mas rejeita a violência e é favorável ao entendimento entre as classes sociais; afirma a sociedade positiva mas respeita as teologias e as metafísicas... como indicamos acima, isso e muito mais constitui as propostas positivistas, apresentadas em detalhes e aplicadas rigorosamente desde meados do século XIX no Brasil, mas principalmente no período entre 1881 e 1927. O comum dos políticos; o comum dos acadêmicos; o comum dos sacerdotes; o comum dos historiadores e dos filósofos vê todas essas oposições como sendo absolutas e inconciliáveis; com isso, rejeitam o Positivismo e a Religião da Humanidade, assim como rejeitam os esforços para mediar conflitos inerentes à vida em sociedade e à historicidade própria ao ser humano; essas diversas rejeições, por outro lado, é claro que quem as pratica vê-se beneficiado.

Conciliar a ordem com o progresso; conciliar o proletariado com a classe patronal; em uma época de primado da ciência manter uma religião e ainda respeitar as teologias e as metafísicas; respeitar o governo mas sem abdicar da possibilidade de supervisão política e moral sobre o governo e, inversamente, o governo manter a ordem pública sem jamais ofender as liberdades de pensamento e de expressão: essas e outras propostas exigem dos governantes e dos cidadãos um comportamento que é firme e seguro, mas ao mesmo tempo reconhece que a vida não aceita extremismos e que há muito tempo já ultrapassamos, ou já temos as condições históricas, morais e intelectuais para ultrapassarmos a violência, a intolerância, a censura. Enquanto a teologia e a metafísica baseiam-se no absolutismo filosófico e, historicamente, estiveram associadas ao militarismo, a positividade exige o relativismo e permite o pacifismo; assim, baseados no amor, isto é, no altruísmo, é possível conjugar pólos extremos que, até então, foram inimigos inconciliáveis. Ao mesmo tempo, muitos dos problemas cujas soluções já eram sugeridas pelos positivistas desde o final do século XIX ainda nos atormentam, mais de um século depois, ao mesmo tempo em que outros problemas com que temos que lidar atualmente poderiam ter sido evitados, ou diminuídos, caso a política positiva tivesse sido ouvida e praticada anteriormente: epidemia de consumo de drogas, violências contra as mulheres, miséria avassaladora e burgueses irresponsáveis, militarismo, violência urbana, conflitos insolúveis entre “progressistas” e reacionários.

Do final da década de 1920 (e até antes) até os dias atuais houve muitos outros movimentos sociais, políticos e intelectuais além do Positivismo; com raríssimas exceções, embora esses diversos movimentos criticassem uns aos outros, o que eles tinham (e têm) em comum é a negação de todos os demais movimentos, sejam aqueles que os precederam, sejam aqueles com que se defrontam em um dado momento. Embora digam falar em nome de todos, esses vários grupos falam apenas em seus próprios nomes, negando ou excluindo os demais grupos.

Não é por acaso que um dos traços principais da nossa sociedade – da nossa civilização, se considerarmos com atenção – é a “criticidade”; como dizem com um orgulho equívoco (e cínico) os marxistas, o “parricídio intelectual” sistemático foi alçado à posição de virtude intelectual e política elementar. Quem vem depois sempre nega quem veio antes; quem vem depois afirma que quem veio antes não era bom e, portanto, suas ações têm que ser desfeitas, negadas, rejeitadas. Restringindo-nos aos que vieram após os positivistas (ou melhor, após Miguel Lemos e Teixeira Mendes), não é isso que vemos e vimos com a “antropofagia” da “Semana de arte moderna”? Com a Revolução de 1930? Com o golpe de 1937? Com a redemocratização de 1946? Com o golpe de 1964? Com a constituinte de 1987-1988? Com a eleição do PT em 2002? Com o impedimento de Dilma em 2015? O atual Presidente da República não foi eleito com uma plataforma de “destruir tudo” (que, aliás, ele pratica com evidentes esmero e aplicação)?

Ora, os positivistas afirmavam a conjugação do progresso com a ordem e da historicidade com os avanços: não é por outro motivo que, por exemplo, a bandeira nacional republicana tem elementos de inovação, progresso e avanço (o círculo azul com o céu estrelado e a faixa branca com o belíssimo “Ordem e Progresso” em verde) em um fundo que já existia na bandeira imperial (o retângulo verde e o trapézio amarelo). Enquanto os positivistas afirmamos que os cleros teológicos deverão extinguir-se naturalmente, à medida que as populações forem emancipando-se das teologias (das suas promessas fantásticas e de suas punições fantasmagóricas), e, por isso, é-nos recomendado que contribuamos com a manutenção material desses mesmos cleros – para não morrerem de fome –, o que os cleros teológicos fizeram e fazem? Impõem a todo custo suas crenças, por meio do peso do Estado; perseguem todos aqueles que não compartilham de suas crenças. (E, por sua vez, os intelectuais, sempre “críticos”, ridicularizam o generoso voto positivista.) Enquanto os positivistas afirmamos que tanto os proletários quanto os patrícios são necessários para a sobrevivência material da sociedade, para a preservação e o aumento das riquezas, e que, portanto, é necessário que eles colaborem, que cada grupo perceba que tem deveres inalienáveis em relação ao outro grupo e ao conjunto da sociedade, o que é que liberais e marxistas fizeram desde sempre a respeito do Positivismo? De maneira muito característica e sugestiva, antes de mais nada ridicularizaram a noção de deveres mútuos – e, portanto, afirmaram a irresponsabilidade coletiva de cada grupo –; em seguida, cada qual afirmou seu próprio particularismo, seja na forma do “capitalismo selvagem” (e agrarista, no caso específico do Brasil), seja na forma da “revolução do proletariado”. Como todos sabemos, isso resultou em um século de conflitos políticos recorrentes e por vezes sangrentos; em uma burguesia profundamente irresponsável e sem sentimento de nacionalidade e em um proletariado enfraquecido, desmobilizado, paupérrimo mas com laivos revolucionários.

Procurando falar a todos os grupos e a todas as classes – ou seja, procurando aconselhar e orientar as idéias e os valores de todos os cidadãos –, os positivistas religiosos mantemo-nos rigorosamente fora dos governos; ao procurarmos manter a dignidade do poder Espiritual, queremos com isso termos condições de dirigirmo-nos a cada cidadão sem apelarmos para a força do Estado sem que ninguém tenha medo disso e, ao mesmo tempo, quando e se for necessário, possamos criticar a conduta pública (e até privada) dos governantes. Em nome dos interesses coletivos, afirmamos as responsabilidades mútuas de patrões e empregados, assim como afirmamos a importância de o Estado agir para desenvolver economicamente a sociedade, mas sem nunca, jamais, impedir as liberdades de pensamento e de expressão. Ao mesmo tempo que afirmamos que a ciência esclarece a realidade e que é uma base segura, respeitamos as crenças teológicas e metafísicas; sabemos que mais tempo, menos tempo, todos os seres humanos serão irmãos na Humanidade, a despeito das diferenças de classes e de nacionalidades, deixando para trás as crenças que tiveram sua importância histórica mas que não correspondem mais à realidade e às necessidades humanas: nisso tudo há o primado da paz, do respeito mútuo, da tolerância.

Com exceção dos positivistas, qual grupo pode dizer que propôs as idéias e colocou em prática os parâmetros acima? As ironias e os deboches que intelectuais (acadêmicos ou não) com tanta freqüência dirigem aos positivistas sugere não que a Religião da Humanidade esteja errada em suas propostas, mas, justamente ao contrário, que ela está certa – e que, portanto, é necessário ridicularizá-la. Católicos, marxistas, liberais – e, mais recentemente, também as feministas –: todos esses grupos falam apenas por si mesmos, rejeitam os demais, mantêm (quando não incentivam) os conflitos, negam a historicidade (tanto a continuidade quanto as inovações) e, se não fosse pouco, desejam a todo custo obter e manter o poder. Tudo isso é o oposto do Positivismo.

Entre 1881 e 1927, mas começando bem antes e avançando para bem depois, os positivistas propusemos (propomos) o progresso – com amor e ordem –; a sociedade industrial – sem exploração, sem revolução –; a paz – com dignidade, tolerância e respeito mútuo. Não há dúvida de que esses foram alguns dos elementos cruciais que justificaram a fama e a importância do Positivismo naquela fase. Mas o Brasil – e, de modo geral, o Ocidente – preferiu deixar de lado as propostas e as lições do Positivismo... para substituir pelo quê? Por nazismo, fascismo, comunismo, liberalismo radical, fundamentalismo teológico, irracionalismo, niilismo, individualismo hedonista e por aí vai.

É triste constatar: ao deixar de lado o Positivismo, o Brasil (mas também o Ocidente) desperdiçou uma oportunidade ímpar para resolver, encaminhar e/ou evitar muitos problemas sociais, políticos, morais, intelectuais que assolam nosso país. O Positivismo é mais um caso de oportunidade desperdiçada; mas se isso ocorreu no passado, não há motivo para que continue sendo assim; o Positivismo, a Religião da Humanidade permanece válido, útil, altruísta – em uma palavra, positivo. Cumpre-nos, com urgência, retomar essas propostas.

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