O sociólogo gaúcho Ricardo Cortez Lopez publicou uma bela e gentil resenha do meu livro Comtianas brasileiras (Curitiba, Appris, 2019). Essa resenha foi publicada na GETS - Revista Interdisciplinar em Gestão, Educação, Tecnologia e Saúde (Sete Lagoas, v. 3, n. 2, p. 86-90, 2020) e seu original está disponível aqui.
Reproduzo abaixo o texto da resenha.
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Augusto Comte (1798-1857), o pai do positivismo, é comumente abordado nas disciplinas dos cursos de ciências sociais devido a ser pai também da própria disciplina sociologia, nomeando-a e delimitando uma área de atuação junto a outras disciplinas. Porém, muito de sua relevância no meio acadêmico acaba se restringindo a essa inauguração e à teoria dos três estados, restando às outras ideias desse sistema intelectual a pecha de fantasias ou teoricismos estéreis.
Lançado pela editora Appris, o livro de Gustavo Biscaia de Lacerda – bacharel em ciências sociais, mestre e doutor em sociologia pela Universidade Federal do Paraná e que é nacionalmente conhecido justamente pela sua vasta obra de Teoria Política dedicada ao positivismo – busca dar profundidade ao clássico autor francês a partir de uma mediação pela sua obra, e que é escrita para muitos públicos. Essa mediação acontece, no livro, por duas vias: a) mostrar a atualidade do autor diante das questões atuais e b) evidenciar a complexidade intrínseca das ideias do francês. Uma vez bem-sucedidos esses dois objetivos, o estigma associado a Comte se mostra inconsistente e o autor e o seu sistema podem ser apreciado por quem não o admira. Ou seja, é um livro que milita, porém o faz em termos sociológicos e buscando contribuir para a disciplina fundada pelo autor francês.
Sobre o título da obra, sua lógica é explicada na contracapa: a chamada remete ao esforço proposto por Heitor Villa-Lobos em “Bachianas”, que combinou a música clássica com elementos da cultura brasileira: Lacerda está se utilizando de um clássico – amaldiçoado pelo ambiente acadêmico atual, eivado de outras perspectivas – e o utilizando para complexificar os ambientes epistemológicos e políticos atuais. Assim, a ideia é recuperar o alcance original de suas ideias universalistas e dando prosseguimento à obra do próprio Comte legitimado pelo próprio contexto brasileiro, que é de difícil análise para os ferramentais teóricos de outros países.
Mas não é apenas na intenção que o volume se aproxima da partitura. Tal qual composições musicais formando um disco, o livro em si é composto de uma série artigos independentes reunidos sob as respectivas temática comum, muitos deles já publicados em outras revistas ou em outros eventos, o que é bem fácil de constatar visitando o currículo do pesquisador. Nesse sentido, a brochura consegue juntar uma série de textos esparsos, e na sua junção não acontece a mera soma desses escritos: de fato há um Comte que emerge do enorme volume de material analisado e uma reflexão maior é gestada: uma contribuição para a teoria sociológica se consolida. Mostra-se um Comte cuja obra uma vez adaptada, torna-se mais do que um item de museu ou de erudição: ele é um instrumento tanto para pesquisas empíricas quanto para intervir na realidade brasileira através de uma proposta coerente e não genérica.
Para lograr tal objetivo, o autor optou por dividir a monografia em duas partes – o que aponta que os seus textos de até então se preocuparam com aspectos do positivismo de forma sistemática, de modo a poderem constituir um livro coeso. A primeira parte se refere aos métodos das ciências sociais, ajudando a mostrar a relevância da teoria para os pares da academia. Já a segunda delas refere-se a uma leitura comteana sobre o contexto do Brasil e da cidadania, mostrando o quanto a teoria positivista é útil no entendimento da realidade social, o que se estende para além da confecção de lemas em bandeiras. Mas esses argumentos ficam mais desenvolvidas pela estrutura dos capítulos, como veremos agora.
A Parte I ostenta 4 capítulos. O primeiro deles se chama “Aplicando Comte atualmente, ou sobre a relevância contemporânea do positivismo”, e versa sobre a negação de Comte no meio acadêmico, embora Lacerda não tenha mostrado evidências dessa recusa. De qualquer maneira, os elementos que supostamente inviabilizariam o sistema comteano não estão presentes de fato na obra comteana. Já no segundo capítulo, “Explicação vs. compreensão: respostas comtianas às críticas do interpretativismo”, é analisado crítica e detalhadamente um artigo de um pesquisador, refletindo sobre os dois tópicos no esmiuçar da monografia abordade, que enseja questões basilares das próprias ciências sociais. Tal exposição, por demais extensa, permite pensar questões da própria epistemologia das ciências sociais num geral. Por seu turno, o capítulo 3, “Sobre comparações interpretativas nas ciências sociais, ou sobre a possibilidade de uma ciência social que não seja comparativista e subjetivista” desenvolve mais esses tópicos, com o objetivo de problematizá-los de maneira mais geral por meio do positivismo, o que torna essa seção a mais abstrata do livro. O último capítulo, “Vontades e leis naturais: liberdade e determinismo no positivismo comteano”, destina-se a combater de maneira mais detida um dos espantalhos sobre o positivismo, o de ser uma ideologia que elimina ao indivíduo. O procedimento de Lacerda é mostrar, na obra comteana, o complexo papel da vontade individual.
A parte II da obra é composta pela maioria dos capítulos, cinco, numerados sequencialmente com os da parte anterior. O capítulo enumerado como o de número cinco, “A “teoria do Brasil” dos positivistas ortodoxos brasileiros: composição étnica e independência nacional”, menciona o papel dos intelectuais positivistas na intepretação do Brasil, não reconhecida no cânone das ciências sociais até então. A abordagem da etnia, por exemplo, permite mostrar que o positivismo não é racista por conta de muitas das características, em especial a da sua fraternidade universal. Já no sexto capítulo, denominado como “O secreto horror à realidade” dos positivistas: discutindo uma hipótese de Sérgio Buarque de Holanda”, é abordada a crítica do clássico pesquisador brasileiro em “A história da civilização brasileira”. A força dessa crítica não reside tanto em sua exatidão (questionada por Lacerda), e sim porque ela influenciou e, por esse motivo, sintetizou muitas das críticas vindouras. Tais críticas (imprecisas e nunca retomadas) ajudaram a estabelecer o estigma contra o qual o livro se volta contra. O antepenúltimo capítulo, “Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos”, trata da militância de uma parte dos positivistas pela laicidade estatal, algo que pode contrastar com a defesa de uma Religião da Humanidade. Ou seja, os positivistas mais ortodoxos defendiam um dos pilares da moderna democracia, a despeito de hoje levarem a alcunha de amantes da ditadura e do militarismo. Essas posições não se sustentam historicamente, como bem mostra o sociólogo brasileiro. No penúltimo capítulo, “Cidadania e desigualdade em Augusto Comte”, é mostrado que Comte não era propriamente um adepto da desigualdade social no sentido aristocrático, como interpretações que o asseveram como conservador soem atribuir-lhe. De fato existem diferenças entre os indivíduos, porém o objetivo final do positivismo é a igualdade lidando com as estruturas sociais de até então. O capítulo que fecha a coletânea, o de número nove, “Entrevista sobre o positivismo: maçonaria, política, pseudociência, Brasil, mérito”, mostra uma série de quatro entrevistas concedidas por Lacerda ao pesquisador Daniel Araujo. O objetivo do autor foi didático, pois Lacerda reorganiza os tópicos para esse fim, porém o texto acaba servindo como um ótimo encerramento, uma vez que articula todos os assuntos a partir dos pontos tocados pela entrevista e produz uma síntese esperançosa. E a esperança define muito mais o positivismo do que a conservação das coisas do modo como elas são.
Para encerrar essa resenha, podemos elencar uma série de utilidades dele para além daquelas que já foram apresentadas até então. A primeira delas é a didática: seus textos podem fazer parte dos programas das disciplinas introdutórias de sociologia, listadas no lugar dos próprios escritos de Comte – ou pelo menos paralelamente a eles – no intuito de abrir possibilidades de entendimento para os alunos. Assim, é possível mostrar um outro lado da teoria e não apenas reforçar a refutação não embasada – como as acusações de higienismo e de racismo, por exemplo. Outro ponto interessante é repensar o modo de exposição das ideias do próprio ofício do sociólogo: Lacerda lembra Olavo Bilac na busca da palavra correta para cada frase. Esse tipo de “ourivesaria” do texto, de revisitá-lo inúmeras vezes, é uma atividade que fica dificultada em tempos de produtivismo, então é admirável observar tanta abnegação em um autor de obra tão vasta.
Talvez seja possível também apontar limitações da própria obra com relação ao intento do autor. O primeiro deles é que o tipo de militância de Lacerda (que é positivista) não é bem visto por muitos pares da sociologia, e a sua filiação formal com uma Igreja pode o fazer perder credibilidade – o que provavelmente não aconteceria se o autor fosse de alguma outra filiação, admitamos. Porém, o descrédito científico segue o mesmo. O segundo é que, seguindo a tradição renascentista de seus antepassados intelectuais, a exposição de Lacerda é bastante erudita e densa, o que dificulta o acompanhamento por parte de alguns segmentos do público, mesmo nas entrevistas. Assim, é possível que alguns leitores não admirem a obra pelas suas qualidades, e sim por se tratar de uma obra com gosto de século XIX. O que se trataria de uma tremenda injustiça com uma obra tão esmerada.
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