Anotações sobre o politicamente correto
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Antes de mais nada, é importante notar que a
expressão “politicamente correto” é uma tradução incorreta para o português do
original em inglês “political correctness”,
que, adequadamente traduzido, significa “correção política”
-
A origem remota da expressão está na adequação e
na submissão de opiniões quaisquer às disputas políticas travadas pelo Partido
Comunista soviético; nesse sentido, muitas opiniões não poderiam ser
manifestadas caso entrassem em choque com a doutrina oficial do partido, fosse
diretamente, fosse porque sugeriria uma nuança na argumentação empregada
o
Assim, a origem da expressão está ligada ao
controle das opiniões e, portanto, à submissão (servil, além de tudo) do poder
Espiritual ao poder Temporal
-
A partir dos anos 1980, talvez um pouco antes, a
esquerda estadunidense passou a propagar mudanças de valores que refletiriam na
linguagem utilizada; essas mudanças propostas passaram a ser chamadas também de
“politicamente corretas”
o
O politicamente correto[1]
dos anos 1980 baseava-se por um lado na política identitária (ou seja,
correspondia ao abandono de um projeto universalista) e, por outro lado, no
pós-modernismo (ou seja, nas concepções ultrassubjetivistas, ultra-relativistas
e textualistas da realidade)
o
Esse politicamente correto buscava respeitar os
grupos identitários, modificando expressões consideradas ofensivas,
degradantes, “subalternizantes” etc.
§
Até onde sei, não há continuidade entre o
controle político exercido pelos soviéticos sobre as opiniões quaisquer e a
prática desenvolvida pela esquerda estadunidense
§ A vinculação da expressão “politicamente correto” à
política identitária dos anos 1980 ocorreu pelos críticos à direita
(conservadores) dessa mesma política identitária; independentemente da nossa
concordância ou discordância com essa prática política, talvez a intenção dos
seus críticos fosse associá-la ao controle mental exercido pelos soviéticos
§ O caráter lingüístico e ao mesmo tempo identitário do politicamente correto torna-o bastante arredio (para não dizer refratário) à noção de cidadania, na medida em que esta é ao mesmo sócio-política, universalizante e includente
§ O caráter lingüístico e ao mesmo tempo identitário do politicamente correto torna-o bastante arredio (para não dizer refratário) à noção de cidadania, na medida em que esta é ao mesmo sócio-política, universalizante e includente
o
A nova “política lingüística” instituída pelo
politicamente correto substituiu a política “real”, isto é, a política que se
concentra(va) em questões de classe, de poder (e, no caso dos EUA, de raça)
o
O raciocínio empregado pela política lingüística
é ambígüo, considerando que mudanças lingüísticas podem resultar com o passar
do tempo em mudanças reais ou, em uma versão mais forte da tese, que essas mudanças
lingüísticas são tudo o que importa para a política
-
As críticas ao politicamente correto são
variadas:
o
Critica-se a pretensão de que as mudanças
lingüísticas conduzam necessariamente a mudanças reais
o
Também se critica a pretensão de que as mudanças
lingüísticas bastem, desconsiderando as mudanças reais
o
De um ponto de vista lingüístico, as críticas
acima opõem-se à “hipótese Whorf-Sapir”, que em sua versão forte é de fato
insustentável[2]
o
Também se critica a instituição de uma polícia
lingüística, estabelecida e mantida por grupos político-sociais e que, a partir
do controle das expressões, acaba controlando as idéias
o
Em um sentido menos duro que a crítica anterior,
também se critica o uso reiterado de eufemismos para descrever grupos sociais,
em substituição a expressões consideradas “duras” (como “maior idade” ou
“melhor idade” no lugar de “idosos”)
§
No caso dos eufemismos, com freqüência se busca
empregar longos circunlóquios para descrever situações ou coisas que se pode
descrever com uma ou poucas palavras (sejam eufemísticas ou não essas poucas
palavras)
§
Em sentido semelhante ao item anterior,
critica-se a censura a expressões habituais como “criado-mudo” (suposta
apologia à opressão de trabalhadores, em particular trabalhadores negros) ou “a
situação ficou preta” (suposto racismo) – sendo que tais expressões não são
necessariamente degradantes (seja em sua origem, seja em seu uso atual)
o
Uma forma radical de “política lingüística”
instituída pelo politicamente correto é a pretensão – de origem claramente
identitária – de realizar uma completa revolução lingüística a partir de
parâmetros estritamente políticos, como no caso de forçar no português a
neutralidade de gênero para todos os casos, por meio da substituição das
desinências “o” e “a” por “x” e/ou “e” (por exemplos: “pessoes”
ou “pessoxs” no lugar de “pessoas”)
§
Esse projeto, além de tudo, é encarado por seus
defensores como eminentemente “progressista”
-
Uma avaliação positiva do politicamente correto
segue as seguintes linhas:
o
Antes de mais nada, vale notar que o sentido
original da “correção política” é inaceitável: o controle político das idéias
não pode ocorrer nunca, em nenhuma situação
§
Para que o controle político das idéias não
ocorra, é necessário respeitar-se criteriosamente a separação entre os dois
poderes (Espiritual e Temporal)
§
Essa advertência inicial é tão mais necessária
quanto considera-se que os movimentos que defendem o politicamente correto são
movimentos “políticos”, no duplo sentido de que têm em vista objetivos
políticos e que desprezam os procedimentos morais; além disso, os movimentos
que defendem o politicamente correto são “revolucionários” e apodam a defesa da
moralidade como “conservadora”[3];
mas o principal é que tais movimentos elegem a ação política como preferencial,
o que significa que tendem a querer que suas pautas sejam implementadas, ou
melhor, impostas pelo Estado
o
A inspiração afetiva básica do politicamente
correto atual é aceitável e em linhas gerais é correta, na medida em que seu objetivo é evitar-se expressões degradantes e ofensivas
§
Essa inspiração corresponde tanto a uma
aplicação específica do altruísmo quanto à fraternidade, em que a inteligência
seleciona expressões que não correspondem aos sentimentos atuais de respeito ao
ser humano e à diversidade social
§
A atenção a ser dada ao emprego de determinadas
palavras e expressões corresponde a um refinamento da nossa sensibilidade, bem
como a uma atualização dessa sensibilidade, em que se presta maior atenção à
correspondência entre os valores professados e as expressões empregadas
correntemente
o
O meio selecionado pelo politicamente correto
basicamente atua no âmbito do poder Espiritual, pois refere-se aos valores e às
palavras empregadas para expressar tais valores, além de alguns valores
cristalizados (ou, quem sabe, fossilizados) em algumas expressões
§
Parte das críticas sofridas pelo politicamente
correto devem-se ao desajuste entre os valores próprios ao politicamente
correto e o conjunto da sociedade, no sentido de que o conjunto da sociedade
resiste a rever seus valores e a agir em conformidade com essa revisão
§
Embora em si mesmas as mudanças propostas pelo
politicamente correto compitam ao poder Espiritual, a origem revolucionária do
movimento politicamente correto leva-o a adotar meios políticos para problemas
espirituais
o
Para qualquer pessoa sensata, e para qualquer
pessoa com sensibilidade histórica, deve ser claro que qualquer mudança social
implica também uma alteração lingüística, no sentido de que novas expressões
tornam-se correntes, outras perdem relevância, outras mudam de sentido e outras
são explicitamente rejeitadas
§
Na verdade, o politicamente correto inverte
radicalmente a ordem das mudanças: em vez de haver mudanças sociais seguidas
por mudanças lingüísticas, ele quer que as mudanças linguísticas ocorram antes
das mudanças sociais
§
No caso do politicamente correto, a mudança
social é vista como ocorrendo apenas ou principalmente por meio da mudança
lingüística; assim, a língua concentra as disputas sociais
o
A indução de mudanças sociais por meio de
alterações lingüísticas é aceitável; em certo sentido, isso corresponde
precisamente à atuação do poder Espiritual
§
As mudanças sociais a partir das mudanças
lingüísticas não ocorrem apenas porque as palavras mudam, mas porque as
sensibilidades, as idéias e os valores alteram-se
§
A lógica do poder Espiritual, portanto,
corresponde à seguinte seqüência: mudança de valores e idéias à
mudança de sensibilidade à mudança de palavras
§
A lógica do politicamente correto pode ser
descrita pelo seguinte esquema: mudança de palavras à mudança de
sensibilidade à
mudança de valores e idéias
§
O esquema acima deixa claro que, em relação à
lógica positiva, em vez de o politicamente correto adequar-se à inspiração
afetiva e, a partir daí, alterar de maneira conforme os sinais empregados (ou
seja, a linguagem), ele despreza a lógica positiva, despreza a origem afetiva e
quer forçar os sentimentos por meio dos sinais
o
Por outro lado, a maior parte das críticas ao
politicamente correto são acertadas:
§
ele não é relativista e, ao contrário, é
absoluto, anti-histórico e antissociológico
§
despreza a historicidade das expressões (ou
seja, as expressões e as palavras mudam de sentido com o passar do tempo); ela
também força interpretações negativas em palavras e expressões que, em si
mesmas, não são ofensivas e cujos sentidos originais perderam-se com o tempo
§
reduz a subjetividade humana apenas à linguagem;
em vez de buscar regular e sistematicamente acordos e consensos nessa
subjetividade (mesmo que reduzida), transforma a linguagem em palco de disputas
políticas
§
a concepção de política que adota freqüentemente
não tem em vista a coletividade, a harmonia nem o bem comum, mas tem um caráter
bélico (amigos vs. inimigos) e
particularista (afinal, é identitária)
§
tem uma visão adolescente da vida social e
política: adota um tudo-ou-nada e a lei de Talião como princípios diretivos,
assim como a culpa e o inculpar-se como princípios de justiça
§
em vez de pautar-se pelo altruísmo e pela
fraternidade universal, o princípio afetivo que o orienta é o ressentimento
§
tende a desprezar a realidade, no sentido de que
adota a interpretação textualista do pós-modernismo e que rejeita a realidade
material da sociedade
-
Em suma: de modo geral, o politicamente correto
é um desvio, mesmo uma corrupção, do altruísmo, que, imbuído de um espírito
crítico, assume um direcionamento revolucionário, violento e político, em vez
de manter-se no poder Espiritual, estritamente no âmbito do aconselhamento, com
a aplicação cuidadosa e circunstanciada da revisão das palavras como passo
seguinte à mudança geral de sentimentos
o
Além disso, falta ao politicamente correto o emprego altruísta dos sentimentos altruístas,
no sentido de que como regra o politicamente correto não formula a hipótese mais simpática, dando sempre ênfase às
hipóteses mais negativas e destruidoras
o
Vale notar que o politicamente correto de modo
geral assume um caráter repressivo,
que está de acordo com a inspiração geral da sociedade estadunidense,
marcadamente protestante nesse como em outros aspectos
[1]
Embora, como vimos, a tradução adequada de political
correctness seja “correção política”, usarei “politicamente correto” por
uma questão de comodidade.
[2] Em
termos bastante simples, a hipótese Whorf-Sapir estabelece que os limites da
compreensão que um grupo social (e, por extensão, cada indivíduo) tem é dado
pelos limites descritivos de cada língua; assim, para que um determinado grupo
social amplie compreensão do mundo ele deve “importar” palavras de outras línguas.
De qualquer maneira, a versão forte da hipótese propõe que a ampliação da
língua é condição sine qua non para
ampliação do entendimento, em vez de ser sua conseqüência. Vale notar que os
próprios Edward Lee Whorf e Edward Sapir não
elaboraram a hipótese a eles atribuída, pelo menos em sua versão forte.
[3]
Para tais grupos, a moralidade só é aceitável na medida em que for a própria
moralidade e em que eles próprios defendam pautas morais; a moralidade de
outros grupos, especialmente aquelas de quem eles discordam, é sempre, por
definição, vista como “conservadora”, “dominadora” e hipócrita. Além disso, a
moralidade não raro é entendida como um meio para um fim, em vez de ser ela
mesma um fim em si própria.
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