25 novembro 2017

Carta à Ciência Hoje: contra as "medicinas tradicionais" e os placebos

A revista Ciência Hoje, órgão de divulgação científica da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), publicou em sua edição n. 322, de fevereiro de 2015, um interessante artigo de história das ciências e das técnicas, intitulada "Medicina e superstição". Essa matéria, consistindo em uma entrevista com o historiador Timothy Walker, indicava que no Portugal medieval os médicos e suas corporações combateram as superstições, os xamãs, os curandeiros etc. 

Até aí, tudo bem: o problema é que, além de fazer um trabalho historiográfico, T. Walker afirma a validade técnica das chamadas medicinas alternativas, isto é, das superstições, do curandeirismo e assim por diante, em particular sublinhando uma suposta importância biopsicossocial dos placebos. Essa afirmação é um completo disparate, devido aos mais variados motivos: criticando essa opinião, eu redigi a carta reproduzida abaixo, que foi publicada pela Ciência Hoje n. 324, em forma ligeiramente abreviada (devido a questões de espaço).

Como, modestamente, considero que os argumentos expostos na carta original valem a pena de serem lidos e meditados, reproduzo-os abaixo. A entrevista original pode ser lida aqui.



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A edição 322 da revista Ciência Hoje está bastante interessante, com diversas matérias que prendem a atenção. Em particular, o texto "Medicina e superstição" é digno de nota, ao apresentar a pesquisa sobre a Inquisição lusa e a participação dos médicos nela.

Todavia, chamou-me também a atenção a opinião exposta pelo pesquisador T. Walker a respeito das chamadas "medicinas tradicionais" e "medicinas alternativas", no sentido de que elas manteriam um valor, seja sociocultural, seja clínico, sugerindo como critério de relevância o efeito placebo. Esse gênero de opinião traz pelo menos dois problemas: (1) um especialista em uma área (História Moderna) opina sobre uma outra área, que por sinal é muito mais especializada; (2) valoriza práticas e "saberes" que são valorizados apenas porque são "tradicionais". Esses dois problemas estão estreitamente vinculados, é claro.

O autor, sem conhecimentos médicos, afirma que a "medicina tradicional" é válida e que deveria ser mantida. Ora, o mero caráter tradicional de algo não é motivo para sua permanência: a extirpação do clitóris, o trote violento dos calouros universitários, a coivara, o estupro e o machismo, o dote feminino, o tratamento de doenças com sanguessugas e sangrias e até a corrupção, além de inúmeras outras práticas e "saberes", são perfeitamente tradicionais; mas o conhecimento científico e o desenvolvimento social, filosófico e humanístico já os indicou como errados, daninhos e/ou atentatórios contra a dignidade humana. A valorização da tradição sempre desconsidera esses problemas. Em vez de valorizar a "tradição", o autor deveria valorizar o contato humano, o respeito - racional, humanista e baseado na ciência - aos valores sociais e à dignidade etc.

O efeito placebo não é e não pode ser parâmetro para valorizar as "medicinas tradicionais". O autor valoriza o efeito placebo afirmando que ele traria benefícios indiretos aos pacientes: mas o efeito placebo consiste basicamente em enganar o paciente, ao administrar uma droga inócua. Ora, não apenas é melhor administrar uma droga eficiente, que produza efeitos, como ainda mais importante é não enganar os pacientes. A afirmação do efeito placebo como motivo para valorizar as "medicinas tradicionais" consiste, portanto, em evitar o desenvolvimento real de práticas, saberes e tratamentos efetivamente eficientes; todavia, isso nem de longe é o mais importante. 

O conhecimento da realidade é o que está em questão: saber como a realidade funciona, saber quais os mecanismos efetivos por que o corpo humano funciona e de que maneira as diversas substâncias interagem com os órgãos e com os tecidos, isso é fundamental; o efeito placebo e, em particular, o efeito placebo associado a "medicinas tradicionais" defendido pelo autor, simplesmente joga fora esses desenvolvimentos. Mas não duvido de que essa defesa do efeito placebo seja para os outros: não creio nem um pouco que esse historiador inglês aceite submeter-se ao xamanismo para tratar o que quer que seja, desde a gripe comum até um câncer de pâncreas, passando pela hepatite, pela sida/aids e pela enxaqueca. 

Mas conhecer a realidade é importante não somente devido às tecnologias que podem ser derivadas dela; é importante conhecer a realidade para saber lidar psicologicamente com ela. Desde o Iluminismo até Freud, passando por Augusto Comte, mas na verdade desde antes e depois desses autores, muitos pensadores salientam que a realidade é rebelde à vontade humana, que desejar submeter a realidade à pura volição é ato de imaturidade, de egoísmo, de irracionalidade - e, por todos esses motivos, é fonte de profunda infelicidade. É claro que conhecer a realidade é duro, é difícil e é demorado; também é claro que é mais agradável desconhecer a realidade; mas é somente entendendo como é a realidade que se pode amadurecer, aceitar os acontecimentos fatídicos e ter os elementos para alterá-la naquilo que está à disposição do ser humano alterar.

A defesa que o historiador inglês faz da "medicina tradicional", usando para justificá-la o efeito placebo, desconsidera olimpicamente esses sérios problemas de relacionamento com a realidade. Sabe-se que muitos pesquisadores, especialmente das Ciências Humanas - historiadores, sociólogos, filósofos -, põem em questão a própria idéia de "realidade"; todavia, esse construtivismo radical despreza o avanço dos conhecimentos científicos, afirma que o avanço das Ciências Humanas consiste em "desconstruir mitos, principalmente o 'mito' da ciência" e, conforme argumentei no parágrafo acima, afirma ou pressupõe que o cúmulo da dignidade humana é postular a plasticidade da realidade frente à nossa volição - ou seja, toma como ápice do conhecimento humano precisamente a valorização da postura infantil e egocêntrica criticada pelos humanistas científicos.

Infelizmente, pesquisadores das Ciências Humanas que se dedicam a investigar as disciplinas ligadas à saúde tendem a valorizar os "saberes tradicionais" - e, não por acaso, sempre se referindo ao efeito placebo como legitimador clínico de suas perspectivas -, ao mesmo tempo que desvalorizam, ou desprezam, a Medicina "ocidental". Há um forte viés anti-Medicina, assim como um forte viés antimédicos, em muitas dessas pesquisas: "denunciar" os médicos, o "poder dos médicos", o "biopoder" é a cumulação dos conhecimentos humanos para tais pesquisadores. No Brasil, o viés antimédico e anti-Medicina da Sociologia da Saúde é extremamente forte, mesmo em instituições de pesquisa que são primariamente dedicadas ao avanço do conhecimento médico. Como comentei antes, é claro que, quando doentes, tais pesquisadores fazem questão dos melhores remédios e tratamentos e sentir-se-iam profundamente ofendidos se fossem tratados com placebos (seja por serem enganados, seja porque desejam tratamentos efetivos).

Sem dúvida que estudar a influência dos médicos na Inquisição lusa é interessante; também é interessante saber que foi devido à sua influência que os curandeiros, os xamanistas foram perseguidos em Portugal e suas colônias. Isso é trabalho de historiador e deve ser valorizado - aliás, deve ser valorizado precisamente com base nos critérios científicos, ou seja, nos critérios que informam tanto as investigações historiográficas e sociológicas, quanto as médicas e clínicas. Algo totalmente diverso é um historiador querer defender a "medicina tradicional" contra a "medicina científica": não apenas ele não tem formação específica para isso, como ele é incapaz de avaliar as consequências filosóficas, sociais e psicológicas mais profundas dessa defesa; mesmo os argumentos "humanos" e "sociológicos" aventados para tal defesa são poucos, superficiais e insustentáveis.

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