16 novembro 2017

Hernani G. Costa: "Sobre o 'Amor' na bandeira nacional"

O meu amigo e correligionário Hernani Gomes da Costa fez uma interessante intervenção a propósito da proposta de inclusão da palavra "Amor" na bandeira nacional republicana, feita recentemente por Hans Donner. Em virtude da alta qualidade desse texto, com sua autorização reproduzo abaixo a intervenção.

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A exclusão do “amor” na bandeira nacional tem a ver com duas circunstâncias conexas na evolução do Positivismo. A primeira dessas circunstância refere-se ao fato de o lema principal (ou como Comte o chamava, a Fórmula Sagrada do Positivismo) haver passado por uma pequena mas significativa mudança.
  

Mas antes de se entrar nesse assunto é preciso definir os três termos da fórmula. Nossa mente é constituída por três elementos básicos: a afetividade, o intelecto e a ação.

Na fórmula sagrada, Comte procurou expressar sinteticamente cada um deles tal como se apresentam estaticamente em nossa vida psíquica, bem como, dinamicamente, caracterizando seus respectivos papéis e articulações no estabelecimento da harmonia tanto individual, quanto coletiva.

Por amor, Comte entendia o conjunto dos nossos três pendores sociais ou altruístas, os instintos inatos que nos predispõe (assim como a muitas outras espécies animais) a uma vida social. São eles (1) a amizade, ou amor aos iguais; isto é a camaradagem, o companheirismo, a cordialidade; (2) a veneração, o amor aos superiores; isto é, a admiração, a reverência; por fim, (3) a bondade, ou amor aos inferiores, isto é, a comiseração, a misericórdia, a compaixão, a solidariedade[1].

Por ordem Comte entendia o conjunto abstrato das leis naturais que regem o mundo e o homem, e cujo estudo forma o que se denomina a ciência; ordem, no caso se refere, pois, à ordem natural das coisas, ao conjunto das circunstâncias mediante as quais os fatos se dão, e por meio das quais estes podem ser inclusive antecipados com relativo sucesso.

Por progresso Comte entendia a dinâmica do mundo e do homem e, em conseqüência, o modo como podemos atuar sobre essas leis de modo a produzir determinados resultados almejados. O amor resume, na fórmula, o aspecto afetivo, emocional, passional da nossa natureza, a ordem, o aspecto intelectivo, teórico, científico, e o progresso, o aspecto prático, ativo, técnico, político (no sentido mais amplo da palavra).

Outra fórmula que caracteriza a articulação desses três elementos é “Agir por afeição e pensar para agir”.


 Pois bem. Primeiramente Comte redigiu a fórmula da seguinte maneira: “O Amor por Princípio, a Ordem por Base e o Progresso por Fim”. Assim, nesse primeiro esboço, o amor ficava isolado, e “ordem e progresso” ficavam juntos de modo a comportar uma possibilidade maior de decomposição.

Todavia, numa segunda redação Comte aperfeiçoou a fórmula, escrevendo-a da seguinte forma: “O Amor por Princípio e a Ordem por Base; o Progresso por fim”. Desse modo Comte passou a caracterizar antes de tudo o vínculo necessário do amor com a ordem (isto é, com o conhecimento) para conduzir consecutivamente ao progresso[2].

Em outras palavras, é o amor esclarecido que guia e conduz à atividade pacífica, e não este isoladamente, tal como a primeira redação parecia sugerir.

Comte foi o primeiro a reconhecer a insuficiência do lema "Ordem e Progresso", numa carta a um discípulo. Afinal, esse lema apenas versa sobre a harmonização entre as condições de existência (ordem) e de desenvolvimento (progresso) possuindo hoje uma expressão espontânea na idéia de desenvolvimento sustentável.

Como, porém, essa harmonização da sustentabilidade (ordem) com o desenvolvimento (progresso) é ainda o principal problema político a ser resolvido (isto é, tanto a superação da ordem retrógrada – que sacrifica em seu nome o progresso – quanto do progresso revolucionário – que em seu nome sacrifica as condições de ordem), Comte julgou dever manter o lema, como algo “separado”. Aliás é preciso lembrar que a bandeira positivista atual é necessariamente transitória, devendo o lema ordem e progresso ser incorporado na fórmula sagrada, quando houver de se operar a grande decomposição do Brasil em diversas pátrias (ou mátrias) independentes.

A segunda circunstância tem a ver com o fato de que, tal como concebida por Teixeira Mendes, a bandeira deveria conter duas fórmulas, uma de cada lado: “Ordem e progresso” (divisa política) de um lado e “Viver para outrem” (divisa afetiva correspondente ao amor universal) de outro. A meu ver a inclusão do amor na bandeira é, positivisticamente falando, ortodoxa, um “sinal dos tempos”, e portanto muito bem vinda, assim como, aliás, é bem vinda a presença do amor em qualquer outro lugar ou circunstância da vida.

Lamento apenas que Hans Doner não tenha exposto as origens de uma idéia que ele parece reputar como original[3]...




[1] Esses sentimentos também têm uma perspectiva temporal, ou histórica: o apego pode ser visto como os vínculos que nos unem aos seres humanos atualmente vivos, com quem neste momento e ao longo de nossas vidas dividimos nossas existências; a veneração são os sentimentos de respeito e gratidão para com os nossos antepassados; a bondade são os sentimentos mais puramente altruístas para com os nossos sucessores, não apenas com os nossos filhos e netos, mas principalmente para com todos aqueles que não conheceremos e virão após nós.
[2] É necessário notar que a palavra “fim”, aí, não significa “término” ou “encerramento”; é a tradução do francês “but”, que significa “objetivo”. Assim, o progresso deve ser entendido como o objetivo das nossas ações e do amor esclarecido.
[3] No início de novembro de 2017, o projetista gráfico Hans Donner propôs uma versão modificada da bandeira nacional republicana, incluindo a palavra “Amor” antes do “Ordem e Progresso”, além de outras alterações propriamente estilísticas (https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/11/09/bandeira-do-brasil.htm).

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