No Brasil, a despeito das crescentes taxas de infecção e de
morte pela covid-19, ainda há gente que nega a realidade do problema e, ao
mesmo tempo, atribui as medidas de isolamento social e uso de máscara facial a
mitos como os “comunistas” e o “globalismo”, estejam eles dispersos no Brasil
por meio do “marxismo cultural”, estejam eles concentrados em malvadas instituições
como a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Essa insistência é a face afirmativa de uma evidente teoria
da conspiração: os problemas sociais e políticos ocorrem não devido à dinâmica
da realidade, que em grandes linhas é rebelde ao controle humano, mas,
justamente ao contrário, eles devem-se à ação intencional e coordenada de
alguns poucos indivíduos, localizados em agências-chave e que, por isso,
conseguem controlar a sociedade (e até o meio ambiente) como se possuíssem barbantes
que controlam títeres. Aliás, nem é necessário que o grupo dos “poderosos” e “dominadores”
ocupe de fato postos-chave em órgãos-chave; é até melhor que esses “poderosos”
fiquem ocultos e que atuem nas sombras, às escondidas, de tal sorte que os
ocupantes de cargos importantes seriam, eles mesmos, meros joguetes nas mãos
desses poderosos. Os meios utilizados pelos “poderosos” para controlar seus
títeres seriam igualmente secretos e ignorados pelo grande público; podemos
apenas supor que devem incluir a subordinação servil, canina, dos dignitários
aos “poderosos”; a constituição de redes secretas de amizades e compadrio, que
atuariam como canais insuspeitos da transmissão de ordens; a chantagem; a
corrupção.
Além disso, as teorias da conspiração levam até as últimas consequências
a suspeita sistemática e total contra todos os aspectos públicos e visíveis da
sociedade e da política, considerando que os argumentos expressos em discursos
e documentos públicos são falsos ou, pelo menos, que eles simplesmente
correspondem a idéias gerais utilizadas para o controle e a manipulação do que
ingenuamente se chamaria de “grande público”. As “verdadeiras” idéias não
seriam públicas e, por isso mesmo, sendo reservadas ao pequeno e secreto grupo
dos “verdadeiros” “poderosos”, seriam egoístas, dissimuladoras, maléficas – em
uma palavra, seriam “malvadas”.
Os adeptos das teorias da conspiração caracterizam-se,
portanto, por uma dúvida não “sistemática” (como a preconizada pelo grande René
Descartes), mas por uma dúvida patológica:
nada é o que se diz, tudo é falso e manipulado. O curioso é que as únicas
pessoas que “sabem” que tudo é assim são alguns indivíduos que, heroicamente,
por acaso têm esse conhecimento todo. Não sou psicólogo, mas com certeza os
adeptos das teorias da conspiração devem caracterizar-se por algum desvio de
caráter, além de, evidentemente, desvios cognitivos.
O problema é que os adeptos das teorias da conspiração de verdade
não “sabem” de nada; no máximo eles têm apenas um violento e invencível
ceticismo generalizado. Por que eles não “sabem” de nada? Porque, além das
suspeitas sistemáticas e das acusações de manipulação e conspiração, eles não
são capazes de afirmar nada sobre nada. Seja devido à sua estrutura moral-intelectual
(que rejeita a concepção e a prática da confiança generalizada, própria aos
indivíduos sãos), seja devido à constituição específica de suas crenças, os
adeptos das teorias da conspiração são incapazes de apresentar provas e fatos
de suas afirmações. Em outras palavras, eles são sempre e necessariamente
incapazes de ter, ou de produzir, conhecimentos científicos; eles têm apenas puras
crenças.
Como há mais de 200 anos dizia Augusto Comte – o fundador da
Sociologia, da Moral Positiva, da História das Ciências e da Religião da
Humanidade –, a política moderna tem que ser uma política “positiva”, ou uma
política “científica”. Com isso ele não queria dizer que a política deve ser
feita, por exemplo, a partir de programas de computador, ou que os indivíduos
devem agir como autômatos; bem ao contrário, a concepção positivista de política
científica consiste em a política basear-se nos conhecimentos positivos (científicos),
mas não se reduzir a eles; em outras palavras, realizando com clareza meridiana
a separação entre a teoria (científica) e a prática (político-social). Nesses
termos, as investigações sociais são distintas da ação política e cada uma
dessas atividades tem suas próprias particularidades, que devem ser respeitadas
mutuamente.
O objetivo da política positiva é abandonar a situação
prévia à fundação da Sociologia, em que se desenvolvia o que Augusto Comte
chamava de “política empírica”. “Empírico”, nessa expressão particular, não
significa o conhecimento factual e teórico da realidade, mas a ação que se
realiza às cegas, sem parâmetros sociais, políticos, técnicos e morais para
guiá-la, mas apenas o entrechoque das paixões e dos interesses dos vários
grupos sociais. A roupagem contemporânea da necessária política científica afirmada
por Augusto Comte consiste largamente no que se chama de “políticas públicas”,
que são ações realizadas e/ou coordenadas pelo Estado, com ou sem apoio ou
auxílio da sociedade civil, com vistas a orientar o desenvolvimento social em direções
julgadas necessárias e corretas. Essas políticas públicas, além disso,
caracterizam-se por outro aspecto estabelecido pelo fundador do Positivismo: a
publicidade de todas as decisões, a que se associa a moralidade delas.
A proposta de política científica do Positivismo, portanto,
rejeita liminarmente as teorias conspiratórias – seja porque exige o
conhecimento da realidade cósmica, social e humana, seja porque ela deve ser
feitas às claras (com a indicação expressa de quem são os seus responsáveis,
quais as metas, quais os procedimentos adotados etc.), seja porque ela
baseia-se sempre no assentimento e na confiança públicos.
Feitas essas considerações todas, podemos voltar às
fatigantes suspeitas sistemáticas das teorias conspiratórias contra os
procedimentos de isolamento social recomendadas para o combate à covid-19. Os
adeptos das teorias da conspiração afirmam que a covid-19 não é tão perigosa
quanto parece; que há um falseamento nos dados de infecção e de morte; que as
medidas de isolamento social, de restrição de movimentação nos espaços públicos
e de uso das máscaras faciais são no mínimo exageradas (quando não “totalitárias”);
que todos esses erros e exageros são propositalmente difundidos pelos “comunistas”;
que essas medidas estão a serviço do “globalismo”; que esse “globalismo” seria
a versão para consumo internacional do que o “marxismo cultural” seria a versão
para consumo interno; que instituições como a OMS são agentes do “comunismo
globalista”.
Como observamos acima, todas essas suspeitas baseiam-se na
rejeição sistemática da confiança pública. Entretanto, deixando de lado o
aspecto moral, ou melhor, o aspecto psicopatológico dessa disposição, cabe
avaliar se elas correspondem à realidade; em outras palavras, é necessário
transformar as suspeitas (ou melhor, as certezas)
acima em hipóteses de pesquisa. Os instrumentos intelectuais e físicos para
realizar tais investigações existem há muito, muito tempo e a cada dia que
passa são mais desenvolvidos e refinados; eles envolvem investigações biológicas,
clínicas e epidemiológicas, por um lado, e históricas, antropológicas,
políticas e sociológicas, por outro lado.
Vejamos:
-
quais as taxas “reais” de infecção do
coronavírus-2 e de letalidade da covid-19?
-
Se os dados “reais” de infecção e letalidade são
falseados, quem realiza tal falseamento e com quais objetivos?
-
Se os dados “reais” de infecção e letalidade são
falseados, quais são os dados “reais” e como os obter?
-
Se os procedimentos recomendados para o combate
à covid-19 são inadequados, quais seriam as alternativas? Adicionalmente: com
base em quais estudos essas alternativas foram propostas e testadas?
-
Se os procedimentos recomendados para o combate
à covid-19 são “totalitários”, quais seriam os procedimentos de combate que
respeitariam as liberdades? Adicionalmente: como é que os países efetivamente
totalitários estão lidando com a covid-19? Como é que os países
não-totalitários estão lidando com a covid-19?
-
Se os problemas anteriores são difundidos pelos “comunistas”,
quem seriam esses “comunistas”? Por quais meios? Com quais objetivos? Quais os
seus valores? Onde eles reúnem-se? Desde quando o “comunismo” está em operação?
-
Se os problemas anteriores estão a serviço do “globalismo”:
qual a relação do “globalismo” com o “comunismo”? Quem seriam os defensores e
os promotores do “globalismo”? Desde quando o “globalismo” está em operação?
Por que o “globalismo” seria a versão internacional do que o “marxismo cultural”
seria a versão nacional? Como o “globalismo” é capaz de ser “comunista” mas
enganar todos, urbi et orbi,
travestindo-se de “capitalista”? Como e por que os “verdadeiros” “capitalistas”
deixam-se enganar pelo “globalismo”?
-
Se as instituições internacionais estão a
serviço do “globalismo”: por que somente a OMS aparece como “globalista”? Quem
são, efetivamente, os aderentes e os promotores do globalismo nas instituições
internacionais, começando pela OMS mas incluindo necessariamente aí a ONU, a
OEA, o FMI, o BIRD, o BID, a OTAN, a OPEP etc.?
-
Por fim, mas de maneira central: se tudo isso é
apenas fachada para os “verdadeiros” poderosos: nominalmente, quem são esses “verdadeiros”
poderosos? Por quais meios eles agem? Quais os seus interesses? Como se dá a
relação entre os “verdadeiros” poderosos e os títeres que aparecem em público?
-
Se os “verdadeiros” poderosos não se apresentam
em público, como é que os adeptos das teorias conspiracionistas chegaram a
conhecê-los e a seus projetos?
-
Se os “verdadeiros” poderosos não se apresentam
em público e controlam os agentes públicos como títeres, qual a efetiva relevância
desses agentes públicos? Não seriam tais agentes públicos, mesmo os adeptos das
teorias conspiratórias, simples títeres dos “verdadeiros” poderosos?
A investigação das hipóteses acima não é algo simples nem
fácil; por isso, muitas respostas podem ser obtidas por meios indiretos (por
meio de variáveis proxy), o que torna
as respostas menos satisfatórias e, portanto, deveria tornar as próprias
assunções conspiracionistas mais suaves. Mas o que importa notar, de qualquer
maneira, é que ao transformar as assunções conspiracionistas em hipóteses a
serem testadas, a completa vagueza das conspirações tem que, necessariamente,
ceder lugar para descrições concretas e feitas com objetividade, em todo o
universo sob análise (isto é, todos os países do mundo), a partir da aplicação
coerente e sistemática de procedimentos que sejam sujeitos à avaliação pública.
Por outro lado, embora não seja tão evidente à primeira
vista, o fato é que a investigação das hipóteses acima constitui apenas o passo
inicial da pesquisa; o passo seguinte consiste em que se deve avaliar se a
realidade criticada pelos conspiracionistas seria de fato inferior ao que eles
subrepticiamente defendem em seu lugar; em outras palavras, trata-se de uma
avaliação moral das críticas dos
conspiracionistas. Para ficarmos em um exemplo simples, fácil e fundamental: se
o “globalismo” é prejudicial, por acaso a revalorização do nacionalismo
unilateralista seria benéfica? A chamada globalização, em curso acelerado desde
os anos 1990, aumentou a interdependência de todos os países uns com os outros:
mesmo que fosse possível reverter esse processo (o que dificilmente seria factível),
será que ele beneficiaria as pessoas? Problemas transnacionais como as mudanças
climáticas, as migrações internacionais, os fluxos financeiros especulativos e
– é impossível não nos referirmos a isto – a pandemia podem efetivamente ser
tratados isoladamente pelas centenas de países do mundo, cada qual com seus
recursos limitados, com a sobreposição brutal de atividades e a total falta de
coordenação? Além disso, é claro que também fica em aberto a questão sobre quem seria beneficiado pela reversão do
mundo integrado à colcha de retalhos nacionalista: por certo que em um primeiro
momento alguns países seriam bastante beneficiados (em particular os grandes
países, isto é, as nações mais ricas), mas esse benefício com certeza
declinaria com o passar do tempo e, no final das contas, o conjunto da
Humanidade sairia perdendo, devido à difusão da miséria e do sofrimento.
Questões e raciocínios semelhantes podem e devem ser aplicados a todas as
suspeições conspiracionistas indicadas acima; os seus resultados morais devem
ser igualmente desastrosos.
Estas longas reflexões servem apenas para evidenciar o
quanto as teorias da conspiração são intelectual e moralmente defeituosas; na
verdade, elas são verdadeiras patologias morais. Enquanto escrevemos, o mundo
está literalmente em meio à pandemia de covid-19; as teorias conspiratórias não
somente não fazem nada para ajudar a combater essa pandemia, como pioram
ativamente o ambiente social e moral e minam, também ativamente, os esforços
envidados mundo afora para resolver essa gravíssima crise.
Augusto Comte definia a palavra “positivo” como tendo sete
sentidos: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático; o
conjunto desses atributos constitui o verdadeiro espírito positivo. Tanto as
teorias da conspiração como as crises vinculadas à covid-19 (moral, sanitária,
política e econômica) somente podem ser solucionadas com espírito positivo.