11 março 2025

Augusto Comte: A dinâmica retrógrado-anárquica entre teologia e metafísica

No trecho abaixo, Augusto Comte apresenta em traços rápidos a dinâmica retrógrada e anárquica que se estabeleceu entre a teologia e a metafísica nos últimos séculos (desde o século XIV e, infelizmente, estendendo-se até o dias atuais). 

Essa reflexão foi elaborada considerando uma exposição mais ampla sobre o casamento e os vínculos domésticos, pedida a Comte por Clotilde de Vaux.

Devido à enorme capacidade de síntese do fundador da Sociologia, reproduzimos abaixo o trecho, que é realmente exemplar e explicativo. Essa síntese é ao mesmo tempo histórico-sociológica, filosófica e moral.

A tradução é da lavra de Raimundo Teixeira Mendes, feita para o seu livro O ano sem par, de 1900.

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Augusto Comte: A dinâmica retrógrado-anárquica entre teologia e metafísica[1]

 

“Um sofisma característico, que continha em germe todas as aberrações ulteriores, conduziu a metafísica revolucionária, no seu mais eloqüente órgão[2], a condenar radicalmente toda sociedade, fazendo prevalecer a quimérica concepção de um prévio estado de natureza, que um pretendido contrato originário havia feito degenerar cada vez mais em existência social. Essa perigosa hipótese fornecia então o único meio de imprimir bastante energia, quer ativa, quer mesmo especulativa, para desprender a vanguarda da humanidade dos laços opressivos de uma organização caduca, a fim de arrastá-la para uma regeneração total. Todavia, tais concepções constatavam espontaneamente a impotência radical do espírito metafísico para apossar-se convenientemente do domínio social, sempre antipático ao seu caráter essencialmente individual. A sua tendência crítica teve por tempo demasiado longo, e ainda conserva, uma verdadeira utilidade política, aplicando-se ao antigo regime. Mas desde que essa aplicação acha-se assaz completa para haver manifestado a necessidade de um sistema novo, esse espírito negativo, doravante privado da sua principal destinação, é arrastado, pela sua natureza absoluta, a uma atividade moral cada vez mais desastrosa, cegamente voltada contra as bases elementares da sociabilidade humana, de maneira a constituir um obstáculo direto à regeneração final, opondo-se a todo e qualquer verdadeiro regime. O inevitável transbordamento das utopias anárquicas, limitadas a princípio à ordem política propriamente dita, estende-se agora até o tríplice fundamento universal da existência social, a saber, a propriedade, a família e o casamento.

Procura-se em vão conter essas devastações metafísicas empenhando-se em reanimar o espírito religioso[3], cuja tendência, finalmente retrógrada, foi só o que acreditou tal abuso do raciocínio. Esses esforços empíricos só conseguem realmente perpetuar e agravar o mal inspirando à razão moderna inquietações próprias para manter o ofício transitório do espírito crítico, que, sem isso, ficaria entregue à sua inoportunidade atual, por falto de qualquer importante aplicação. A inaptidão evidente das crenças teológicas para conservar o seu antigo império intelectual demonstra assaz a sua impotência radical para proteger realmente as noções sociais deixadas sob o seu perigoso patrocínio. É certo, ao contrário, que tal solidariedade compromete hoje cada vez mais todas as sãs máximas morais como todos os verdadeiros princípios políticos, fazendo recair sobre eles o descrédito crescente de uma ordem de idéias que se tornou há muito incompatível com o nosso surto[4] mental. Todas as noções elementares sobre o casamento e a família[5] são por tal modo conformes às tendências espontâneas das populações modernas que elas não têm, a dizer a verdade, para as inteligências atuais, outro defeito essencial senão a forma religiosa[6] ainda inerente à sua concepção dogmática. É pois exclusivamente ao espírito positivo que está hoje reservada a criteriosa consolidação dessas máximas fundamentais, que só ele pode desprender dos sofismas metafísicos. O abuso do raciocínio não pode ser condito por uma filosofia hostil ao surto final da razão humana, porém unicamente por aquela que o desenvolve regularizando-o, e que, a este título, pode só doravante superar inevitáveis discussões”.

 

 



[1] Fonte: Augusto Comte, “Carta filosófica sobre o casamento. Composta para Madame Clotilde de Vaux, a seu pedido, pelo autor do Sistema de filosofia positiva [11 de janeiro de 1846]” (in: Teixeira Mendes, Raimundo. 1900. O ano sem par. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil; p. 625-626).

[2] Nota de Raimundo Teixeira Mendes: “João Jacques Rousseau”.

[3] Nota de Raimundo Teixeira Mendes: “Religioso é aqui sinônimo de teológico”.

[4] “Surto” significa, aí, “desenvolvimento”.

[5] Essas concepções são a monogamia, a indissolubilidade do casamento e a viuvez eterna. Não se trata, portanto, nem do divórcio, nem das múltiplas núpcias nem do atual retorno aberrante à poligamia chamada – para efeitos de propaganda e desinformação – de “poliamor”.

[6] Nota de Raimundo Teixeira Mendes: “Religioso é aqui sinônimo de teológico”.

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