Orações cotidianas de Augusto Comte[1]
O Amor por princípio, E a ordem por base; O progresso por fim |
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Ordem e progresso. Viver para outrem. Viver às claras. |
Instituídas no Venerdia-Santo, 10 de abril
de 1846
Revistas primeiro a 6 de abril de 1849, depois a 26 de agosto de 1853, enfim a 25 de dezembro de 1855 (após o depósito do meu testamento), e completamente reescritas no Venerdia-Santo, 10 de abril de 1857.
Oração da manhã
(Das 5h 30 às 6h 30)
Comemoração (40 min), de joelhos diante do seu altar
Preâmbulo
1º Imagem normal da véspera
Este culto de amor e reconhecimento não pode jamais cessar de aliviar-me e sobretudo de melhorar-me.
Amar ainda é melhor que ser amado.
Não há nada real no mundo senão amar.
Oh, amanza del solo
amore, o diva,
Non é l’affezione mia
tanto profunda
Che basti à render voi
grazia per grazia.
2º Imagem excepcional da véspera
É unicamente a ti, minha santa Clotilde, que eu devo não deixar a vida sem haver dignamente experimentado as melhores emoções da natureza humana. Um ano incomparável fez espontaneamente surgir o único amor, ao mesmo tempo puro e profundo, que o meu destino comportava. A excelência do ente adorado permitiu à minha maturidade, mais bem tratada do que a minha juventude, entrever, em toda a sua plenitude, a verdadeira felicidade humana: Viver para outrem. Eis aí a verdadeira felicidade, como o verdadeiro dever! Só tu me ensinaste a fundir as suas fórmulas! Que prazeres podem sobrepujar os da dedicação? Para tornar-me um verdadeiro filósofo, faltava-me sobretudo uma paixão, ao mesmo tempo profunda e pura, que me fizesse assaz apreciar a parte afetiva da natureza humana.
A gente se cansa de pensar, e mesmo de agir; jamais se cansa de amar, nem de o dizer.
No meio dos mais graves tormentos que possam jamais resultar da afeição, não cessei de sentir que o essencial para a felicidade é sempre ter o coração dignamente cheio... mesmo de dor, sim, mesmo de dor, da mais amarga dor.
Sagrada es ya mi
passión.
La divinizó la muerte!
Comemoração especial (15 min)
Meditação sobre as nossas principais lembranças peculiares a este dia da semana, sob as imagens normais que a ele se referem.
Sagrada es ya mi
passión.
La divinizó la muerte!
Mai non t’appresentò natura odarte
Piacer, quanto le
belle membra in ch’io
Rinchiusa fui e che
son terra sparte:
E se’l sommo piacer si ti fallio
Per la mia morte, qual
cosa mortale
Dovrà poi trarre te
nel suo disio?
Comemoração geral (20 min)
Imagem principal deste dia
Non, quella che’mparadisa la mia mente, a tua morte mesmo não quebrará jamais o vínculo fundado na minha afeição, a minha estima e o meu respeito.
Revista cronológica de todas as nossas lembranças
essenciais mediante as passagens correspondentes das nossas cartas.
Vim agradecer-vos, Senhor, o vosso encantador mimo. (A sua visita do lunedia 2 de junho de 1845, com a sua mãe e o seu irmão.)
Iniciação fundamental
Junho – Estima. Deixai-me livremente trabalhar no vosso aperfeiçoamento, pois que é a minha principal maneira de ocupar-me com a vossa felicidade, que me será sempre cara, sejam quais forem o grau e a forma pelos quais possa concorrer para ela. (A minha carta de 6 de junho.)
É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem. (A sua Lúcia, publicada a 20 de junho.)
Julho – Confiança. O meu coração vê finalmente em vós, na realidade presente, uma perfeita amiga, e, nos meus sonhos de futuro, uma santa esposa. (A minha carta de 3 de julho.)
Eu vos estendo a mão bem sinceramente, eu vos sou ternamente devotada, e terei sempre prazer em proporcionar-vos, nas nossas relações, toda a felicidade de que posso dispor: vossa de coração. (A sua carta de 4 de julho.)
Agosto – Afeição. O meu surto direto do amor universal se consuma sob a estimulação contínua do nosso puro apego. (A minha carta de 5 de agosto.)
Adeus, caro e digno amigo; vedes que eu vos aprecio e creio em vós: contai com o coração de Clotilde de Vaux. (A sua carta de 11 de agosto.)
A cada suspensão do meu trabalho, a vossa cara imagem volta docemente a apoderar-se de mim: longe de prejudicar depois a minha meditação, ela a sustenta e a anima. (A minha carta de 26 de agosto.)
Crise decisiva
Setembro. Se credes poder aceitar todas as responsabilidades que se prendem à vida de família, dizei-mo, e decidirei da minha sorte... Eu vos confio o meu resto de vida. (A sua carta de 5 de setembro.)
Eis o meu plano de vida: a afeição e o pensamento. (A sua carta de 6 de setembro.)
Sinto-me ainda desgraçadamente impotente para o que ultrapassa os limites da afeição. Ninguém apreciar-vos-á como eu o faço; e o que não me inspirais, nenhum homem mais mo inspira; porém o passado faz-me ainda mal, e foi um erro meu querer arrostá-lo. Sede generoso a todos os respeitos, como o sois a certos. Deixai-me o tempo e o trabalho, expor-nos-íamos agora a cruéis pesares. (A sua carta de 8 de setembro.)
Desde a Santa Clotilde, verdadeiro início das nossas relações seguidas, nenhum pensamento carnal tinha até então, quer na vossa presença, quer mesmo na vossa ausência, jamais perturbado a minha íntima adoração. Retomo pois, sem esforço, os meus caros hábitos de ternura cavalheiresca. (A minha carta de 10 de setembro.)
Sinto quanto vos amo de coração vendo-vos sofrer. (A sua carta de 13 de setembro.)
Compreendi, melhor do que ninguém, a fraqueza da nossa natureza, quando ela não é dirigida para um alvo elevado, que seja inacessível às paixões... Restam-me aos menos fontes de ensinamento para os outros; é ainda um interesse real na minha vida; quero explorá-lo... Contai com tudo que eu tenho de bom e de afetuoso no coração. (A sua carta de 14 de setembro.)
Envio-vos o dom do coração com simples atavios que lhe deu a natureza; o pensamento é o único artista capaz de ornar semelhantes nadas. O meu proveito próprio está em ser-vos agradável, e compenetrar-me da sinceridade do vosso apego, ao qual ligo todo o apreço que merece. (A sua carta de 25 de setembro.)
Não encontrei ainda senão em vós a eqüidade unida a amplas exigências do coração... Por que não vos conheci mais cedo? (A sua carta de Garges!)
Amemo-nos profundamente, cada um à sua maneira, e poderemos ainda ser verdadeiramente felizes um pelo outro. (A minha carta de 2 de outubro.)
Transição Final
Outubro – Expansão total. Caminhemos apoiados um ao outro, meu caro filósofo, deixemos que o tempo nos guie e nos forme. (A sua carta de 2 de outubro.)
As vossas cartas causam-me sempre prazer e sempre me fazem bem... Adeus, caro homem, amai-me e ficai certo que vo-lo retribuo bem. (A sua carta de 18 de outubro.)
A nossa espécie, mais do que as outras, precisa de deveres para fazer sentimentos. (A sua carta de 25 de outubro.)
Eis aí o que eu compreendo melhor do XIX século: é a tendência universal dos seres para a razão em toda a sua simplicidade. Vendo as mais modestas inteligências participarem naturalmente e sem esforço de todas as luzes obtidas, sinto cada dia mais que a ciência não carece senão residir no ápice das sociedades para enriquecê-las na sua massa inteira: e, palavra, que me consolo de não ter sido iniciada nas maravilhas do quadrado de hipotenusa. (A sua carta de 30 de outubro.)
Novembro – Abandono sem reserva. Se fosse preciso que não me amásseis senão um quarto de hora por dia para o vosso repouso, eu desejaria, de todo o meu coração, que isso se desse desde amanhã. (A sua carta de 2 de novembro.)
Aqueço-me e visto-me como mulher delicada, graças a vós. (A sua carta de 8 de novembro.)
A vós, em troca, o pensamento tão doce de haverdes reanimado um ente aniquilado, e vertido o bálsamo em um coração ulcerado. (A sua carta de 9 de novembro!)
Oxalá estivesse eu certa de tornar-vos feliz por vínculos mais íntimos! Eu não hesitaria em formá-los. (A sua carta de 18 de novembro.)
Sois o melhor dos homens; tendes sido para mim um amigo incomparável; e sinto-me tão honrada como feliz pelo vosso apego. (A sua carta de 23 de novembro.)
É, pois, unicamente a vós, minha Clotilde, que deverei não mais deixar a vida sem ter dignamente experimentado as melhores emoções da natureza humana. (A minha carta de 24 de novembro.)
Dezembro – Familiaridade contínua. Congracemo-nos habitualmente, minha Lúcia, em torno dessas sublimes concepções, que ligam diretamente a nossa afeição mútua ao conjunto da evolução humana. (A minha carta de 9 de dezembro.)
Contai com o apego mais terno que possa experimentar... Tenho por vós hoje mais do que o coração de uma parenta... É preciso que não esteja em meu poder o tornar-vos feliz para não o fazer... Seja qual for a nossa sorte, espero que só a morte quebrará o laço fundado na minha afeição, a minha estima, e o meu respeito. (A sua carta de 10 de dezembro.)
Esse incomparável ano fez surgir em mim o único amor, a um tempo puro e profundo, que comportava o meu destino. A excelência do ente adorado permite à minha madureza, mais bem tratada do que a minha juventude, de entrever em toda a sua plenitude, a verdadeira felicidade humana. (A minha carta de 26 de dezembro.)
Estado Normal
(Imagens especiais e fixas.)
Janeiro – Intimidade completa. Tendes o coração de um cavalheiro, meu excelente filósofo. (A sua carta de 8 de janeiro.)
Todos nós temos ainda um pé no ar sobre o limiar da verdade... Só posso haurir a minha moral no meu coração, e edificá-la sobre o puro sentimento. É esse, de resto, o quinhão de uma mulher, e basta. Ela ganha em caminhar modestamente atrás do préstito dos renovadores, embora tenha de perder assim um pouco do seu elance... Se eu fosse homem, teríeis em mim um discípulo entusiasta: ofereço-vos, como indenização, uma sincera admiradora. (A sua carta de 15 de janeiro.)
O vosso nobre ascendente ligou profundamente o surto habitual dos meus mais altos pensamentos aos dos meus mais ternos sentimentos. Não fiqueis pois surpresa que eu queira secretamente inaugurar este décimo sexto serviço anual por uma lembrança especial da minha bem-amada. Esta curta efusão deve me preparar melhor para o ministério que vou desempenhar, fazendo espontaneamente prevalecer a disposição d’alma mais favorável ao meu ofício filosófico. (A minha carta de 25 de janeiro.)
Fevereiro – Perfeita identidade. O vosso coração é o santuário onde deposito tudo o que constitui a minha vida: os pequenos como os grandes acontecimentos, tudo dela vos é conhecido; e sabeis que ainda não fiz mal senão a mim. (A sua carta de 12 de fevereiro.)
Nas minhas horas de sofrimento, a vossa imagem paira sempre diante de mim. (A sua carta de 23 de fevereiro.)
As almas ardentes e escrupulosas encontram muitos Gólgotas neste mundo; mas, pelo menos, elas escapam amiúde aos pesares como aos remorsos. (A sua carta de 24 de fevereiro.)
Março – União definitiva. Os maus precisam muitas vezes mais de piedade do que os bons. (A sua carta de 2 de março.)
Tenho muitas coisas amigáveis a dizer-vos. É força cessar por hoje. Recebei a eterna segurança da minha ternura. (Fim da sua 86ª e última carta, de 8 de março de 1846.)
Para tornar-me um perfeito filósofo, faltava-me sobretudo uma paixão, ao mesmo tempo profunda e pura, que me fizesse assaz apreciar a parte afetiva da natureza humana. (A minha carta de 11 de março.)
No meio dos mais graves tormentos que possam jamais resultar da afeição, não cessei de sentir que o essencial para a felicidade é sempre ter o coração dignamente cheio. (A minha 95ª e última carta, de 18 e 20 de março de 1846.)
Vós me haveis de dar um cacho dos vossos cabelos. (A sua efusão verbal de 20 de março.)
Hoje me fizestes profundamente sentir o valor da vossa nobre pureza, que nos permitiu, perante a vossa mãe, conservar ternamente a vossa mão nas minhas, enquanto em contemplava a angélica fisionomia cuja suave beleza torna-se mais tocante pela sua alteração passageira. (Fim da minha última carta.)
Não tenho beleza alguma, tenho apenas um pouco de expressão. (A sua efusão verbal de 22 de março.)
Conclusão!
Abril! – Eu quisera bem ir dormir em vossa casa. (O seu voto de 1º de abril diante de sua mãe.)
Fostes desconhecida, mas eu vos farei apreciar... Não, jamais nenhuma outra... (A minha efusão verbal de 2 de abril, perante a sua família, depois da sua extrema unção.)
Não terei tido uma companheira por muito tempo! (Durante a nossa única noite, de 2 para 3 de abril de 1846!)
Senhora, vós amais a vossa filha como um objeto de dominação, e não como um objeto de afeição. (A minha exprobração à sua mãe, perante ela, a 4 de abril.)
Comte, lembra-te que eu sofro, sem o haver merecido!... (As suas últimas palavras distintas, nitidamente repetidas cinco vezes seguidas, no domingo à tarde 5 de abril de 1846, por volta das 3 horas da tarde, uma meia hora antes de expirar!!!)
Sim, a tua morte mesma consolida ara sempre o laço fundado na minha afeição, e minha estima, e o meu respeito!
Sagrada es ya mi
passión.
La divinizó la muerte!
Efusão (20 minutos)
1º de joelhos diante das suas flores (5 minutos)
Imagem de 27 de agosto de 1851
Nobre e terna padroeira, quella ch’imparadisa la mia mente, a tua adorável influência eterna melhorou profundamente o conjunto da minha natureza, moral, intelectual, e mesmo física. Agradeço-te sobretudo o me haveres espontaneamente inspirado essa pureza, cujo verdadeiro valor, até ti, ignorava, mas que, espero eu, continuará a sobreviver-te sem alteração, graças à persistência natural do teu involuntário ascendente. A tua angélica inspiração deve de mais em mais dominar todo o resto da minha vida, tanto pública como privada, para presidir ainda ao meu inesgotável aperfeiçoamento apurando os meus sentimentos, engrandecendo os meus pensamentos, enobrecendo a minha conduta.
Imagem final. Morta, como viva, minha santa Lúcia, tu deves sempre permanecer o verdadeiro centro da segunda vida de que te sou essencialmente devedor. A tua dolorosa transformação de uma triste existência em uma gloriosa eternidade não deve jamais alterar a divisa familiar que eu te fiz aceitar, amor e respeito eternos!
Imagem de 27 de agosto de 1856
Ah! Se’l sommo piacer si mi fallio
Per la tua morte, qual
cosa mortale
Potrà mai trarre me
nel suo disio?
Oh, nulla, nulla, giammai,
Es hombre vil, es
infame,
El que, solamente
atento
A lo bruto del deseo,
Viendo perdido lo mas
Se contenta com lo
menos!
2º de pé junto do altar (10 minutos)
Imagem de 5 de outubro de 1851
Minha cara filha, como foi cedo destruída a incomparável felicidade que te trouxe tão tarde um laço santamente excepcional (já me lamentei bastante, é a ti que eu devo lamentar)! Para mim mesmo, ela não está destruída, ela está apenas transformada; ela é agora inalterável. Apesar da catástrofe, a minha situação final ultrapassou cada vez mais tudo o que eu podia esperar, e mesmo sonhar, antes de ti. Sobretudo, a minha virtuosa paixão não deve jamais perder a sua aptidão natural para secundar ativamente a alta missão social que, desde então me absorvendo todo inteiro, me pode só oferecer uma santa compensação pessoal, cada vez mais preciosa à medida que tu te achas nela mais bem incorporada. Os deveres do casto esposo continuarão a fortificar os do filósofo, quando tive de cessar de trabalhar no teu aperfeiçoamento para aspirar à tua glorificação.
Imagem de 11 de fevereiro de 1852
Caro anjo menosprezado, o teu admirável ascendente não se tornou dignamente apreciável senão dispondo-me sempre a melhor servir o Grão-Ser ao qual te sinto irrevogavelmente incorporada e cuja melhor personificação me ofereces. Durante um ano sem par, o teu doce impulso espontâneo facilitou profundamente o pleno surto do verdadeiro caráter finalmente peculiar à minha filosofia: a sistematização real de toda a existência humana mediante a preponderância fundamental do coração sobre o espírito, consagrando a inteligência ao serviço contínuo da sociabilidade.
O Amor por princípio, e a Ordem por base; o Progresso por fim. O Amor procura a ordem e impele para o progresso; a Ordem consolida o amor e dirige o progresso; o Progresso desenvolve a ordem e reconduz para o amor.
Um, união, unidade, continuidade; dois, arranjo, combinação; e três, evolução, sucessão.
O amor universal, assistido pela fé demonstrável, dirige a atividade pacífica.
O homem torna-se cada vez mais religioso.
Agir por afeição e pensar para agir.
Referindo tudo à Humanidade, a unidade torna-se mais completa e mais estável do que nos esforçando por tudo religar a Deus.
A submissão é a base do aperfeiçoamento.
Adeus, minha casta companheira eterna! Adeus, minha bem-amada Lúcia! Adeus, minha discípula querida e minha digna colega!
(Lembranças intercaladas do meu velho amigo Carlos Bonnin e da sua desventurada filha Vitória.)
A mim cumpre obter, pelos meus nobres trabalhos, que o teu nome se torne inseparável do meu, nas mais longínquas lembranças da Humanidade reconhecida.
A pedra do sepulcro é o teu primeiro altar.
Addio, sorella! Addio,
cara figlia! Addio, casta sposa! Addio, sancta madre! Vergine madre, figlia del
tuo figlio, Addio!
Oh, amanza del solo
amore, o diva,
Non é l’affezione mia
tanto profunda
Che basti à render voi grazia per grazia.
(Reprodução, de joelhos, com os olhos abertos, da segunda parte do preâmbulo, sob a imagem fixa de 11 de fevereiro de 1852.)
3º Conclusão (5 minutos)
De joelhos diante do altar recoberto
I – (Quadro da minha verdadeira família, objetiva e subjetiva, reunida, com os meus principais discípulos, no domingo 4 de setembro de 1870, em Montpellier[2] no único domicílio a que se referem as minhas lembranças do país natal.)
A venerável imagem de Rosália Boyer foi se combinando de mais em mais com a amável presença de Clotilde de Vaux, primeiro na minha visita hebdomadária à tumba querida, em seguida durante as minhas orações quotidianas.
II – Imagem da tumba querida. Rosália, Lúcia, Sofia, o vosso virtuoso conjunto, doravante inalterável, deve sempre oferecer-me o melhor tipo da verdadeira natureza feminina. Sob a vossa inspiração contínua, sistematizei melhor a influência, pública e privada, do sexo afetivo, como o primeiro fundamento da regeneração final.
Aquela de vós que sobrevive reanima, sem o saber, o santo impulso das outras duas, pelo doce espetáculo contínuo do nosso estado normal, a inteligência e a atividade livremente subordinadas ao sentimento. Possa a minha justa gratidão pública tornar os vossos três nomes igualmente inseparáveis do meu para a Posteridade reconhecida! Ousei publicamente terminar a minha construção religiosa encarregando todos os meus discípulos de ambos os sexos de obter, como principal recompensa dos meus serviços, a minha solene inumação no meio de vós três, em nome do Grão-Ser, ao qual seremos irrevogavelmente incorporados[3].
O que não faria eu, minha Santa Lúcia, para merecer plenamente a tumba comum diante da qual virá dignamente inclinar-se a bandeira coletiva do Ocidente regenerado!
III – (À minha eterna companheira.) Amem te plus quam me, Nec me nisi propter
te![4]
(À Humanidade no seu
templo, diante do seu altar-mor.) Amem te plus quam me, Nec me nisi propter te!
(À minha nobre
padroeira, como personificando a Humanidade.) Vergine-madre, Figlia del tuo
figlio, amem te plus quam me, Nec me nisi propter te!
Tre dolci, nome ha’ in
te raccolti
Sposa, madre, e
figliuola!
(Petrarca)
(Introduzido no domingo 25 de César de 69)[5]
Imagens hebdomadárias (51)
31 normais
Lunedia – 2 de junho de 1845, 30 de junho, 25 de agosto.
Martedia – 29 de abril de 1845, 12 de agosto, 26 de agosto, 31 de março de 1846, (14 de abril de 1846).
Mercuridia – 27 de agosto de 1845, 12 de novembro, 14 de janeiro de 1846, 11 de fevereiro, 1º de abril.
Jovedia – 26 de junho de 1845, 28 de agosto, 16 de outubro, (28 de agosto de 1851)[6].
Venerdia – 16 de maio de 1845, 18 de julho, 8 de agosto, 29 de agosto, 20 de março de 1846.
Sábado – 11 de outubro de 1845, 7 de fevereiro de 1846, 28 de fevereiro, 7 de março, 28 de março.
Domingo – 7 de setembro de 1845, 5 de outubro, 29 de março de 1846, (4 de abril de 1847).
20 excepcionais
Lunedia – 9 de junho de 1845, 30 de março de 1846.
Martedia – 13 de maio de 1845, 25 de novembro, (3 de junho de 1851), (3 de junho de 1856).
Mercuridia – 2 de julho de 1845, 20 de agosto, 3 de setembro, (15 de abril de 1846), (11 de abril de 1855)
Jovedia – 24 de abril de 1845, 2 de abril de 1846!
Venerdia – 3 de abril de 1846! (11 de janeiro de 1856), (10 de abril de 1857).
Sábado – 6 de dezembro de 1845, 14 de fevereiro de 1846, 4 de abril!
Domingo – 5 de abril de 1846!!!
Oração da noite
(Uma meia hora)
(Na cama, sentado.)
1ª Comemoração (10 minutos)
Lembrança preciosa da minha mocidade, companheiro e guia das horas santas que soaram para mim, evoca sempre ao meu coração as cerimônias grandes e suaves da capela do convento!... (A sua inscrição de 1837 na Journée du chrétien que ela me deu, no domingo 29 de março de 1846, como o seu livro usual no convento da Legião de Honra, rua Barbette.)[7]
Comte, lembra-te que eu sofro sem o haver merecido!!! (As suas últimas palavras, que eu inscrevi nesse mesmo livro, diante de Sofia, hora e meia depois que as ouvimos.)
Imagem principal do dia – Sim, a tua morte mesma consolida para sempre o laço fundado na minha afeição, a minha estima, e o meu respeito.
Mai non t’appresentò natura odarte
Piacer, quanto le
belle membra in ch’io
Rinchiusa fui e che
son terra sparte:
E se’l sommo piacer si ti fallio
Per la mia morte, qual
cosa mortale
Dovrà poi trarre te
nel suo disio?
Oh, amanza del solo
amore, o diva,
Non é l’affezione mia
tanto profunda
Che basti à render voi
grazia per grazia.
2ª Efusão (15 minutos)
Imagem de 28 de fevereiro de 1852 – Sob a tua poderosa invocação, a mais dolorosa crise da minha vida íntima me tornou finalmente melhor, a todos os respeitos, desenvolvendo, embora só, os santos germes cuja evolução tardia porém decisiva devi sobretudo a ti. A idade das paixões privadas ficou então terminada para mim: podia ela acabar mais dignamente? Devi a partir desse momento entregar-me exclusivamente à eminente paixão, que, desde a minha adolescência, votou sempre a minha vida ao serviço fundamental da Humanidade. Prosseguindo a minha sublime missão, devo constantemente abençoar a tua salutar influência, que não poderá jamais cessar de presidir ao meu principal aperfeiçoamento. A preponderância sistemática do amor universal, gradualmente emanada da minha filosofia, não teria podido sem ti se me tornar assaz familiar, apesar da feliz preparação já resultante do surto espontâneo dos meus gostos estéticos.
As minhas íntimas satisfações não deverão desde então provir senão de um culto assíduo das puras e nobres lembranças que me deixou, para sempre, o nosso incomparável ano de virtuosa ternura recíproca. Esse culto de amor e reconhecimento não pode jamais cessar de aliviar-me e sobretudo de melhorar-me. Sob as tuas diversas imagens tu nele me lembrarás sempre quanto, malgrado a catástrofe, a minha situação final ultrapassa tudo o que eu podia esperar, e mesmo sonhar, antes de ti. Quanto mais se desenvolve a harmonia sem exemplo que te devo entre a minha vida privada e a minha vida pública, tanto melhor tu te incorporas, aos olhos dos meus verdadeiros discípulos, a cada modo da minha existência. A nossa perfeita identificação tornar-se-á a melhor recompensa de todos os nossos serviços, talvez mesmo antes que a bandeira universal venha solenemente inclinar-se sob o nosso comum esquife.
Imagem de 20 de agosto de 1851
Ah! Se’l sommo piacer si mi fallio
Per la tua morte, qual
cosa mortale
Potrà mai trarre me
nel suo disio!
(Reprodução da segunda parte do preâmbulo da manhã.)
Addio, la mia
Béatrice! Addio, Clotilde! Addio, Lucia! Addio, quella che’mparadisa la mia
mente, Addio!
(Imagem da tumba querida.) A pedra do sepulcro é o teu primeiro altar.
Tre dolci, nome ha’ in
te raccolti
Sposa, madre, e
figliuola!
(Petrarca)
A submissão é a base do aperfeiçoamento.
3º Conclusão (5 minutos)
(Deitado)
(Imagem principal do dia.) É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem.
A nossa espécie, mais do que as outras, carece de deveres para fazer sentimentos.
Os maus têm amiúde mais precisão de piedade do que os bons.
O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim.
Virgine-Madre, Figlia
del tuo figlio, Amem te plus quàm me, nec me nisi propter te!
Viver para outrem – A Família, a Pátria, a Humanidade – Viver às claras.
Oração do meio do dia
(Às 10h 30 em ponto – 20 minutos)
1ª Comemoração (10 minutos)
Imagem de 7 de março de 1846
Oh, amanza del solo
amore, o diva,
Non
é l’affezione mia tanto profunda
Che
basti à render voi grazia per grazia.
(A sua última carta.) Meu caro amigo, eis aqui o resto das forças das quais contava dar-vos a melhor parte. A boa Sofia teve as alvíssaras delas, e ter-vos-á contado o meu ato de autoridade quanto às rosas: estou me dando muito bem com as ter substituído pela água de arroz e o marmelo.
Queria, há muito tempo, falar-vos de vós, e ontem esperava ter forças para tal: mas, é uma coisa assentada, malgrado toda a ternura que me impele para vós, a vossa exaltação obriga-me a voltar à pena.
Caro amigo, o vosso apego torna-me bem venturosa, e por vezes bem pensativa: pergunto-me a mim mesma se algum dia não me pedireis contas dessas distrações violentas atiradas no meio da vossa vida pública; de um laço que devia ser todo doçura, fazeis uma sorte de adstringente apimentado que dissipa o vosso tempo, o vosso pensamento, e que não reage senão sobre mim... Enganai-vos quando dizeis que a amizade não ama: eu nunca ousei ser eu mesma convosco (e não volteis às coisas vulgares ou grosseiras que supusestes outrora). Quando me sirvo da palavra ousar, é que ela convém perfeitamente. Se estivéssemos ambos calmos, eu vos provaria que a amizade sabe ser terna ardente; eis porque patrocino o nosso apego com todos os nomes mais doces e mais santos: é para conduzi-lo a fazer-me lugar ao vosso lado junto do fogo.
Tudo isso pede ser desenvolvido, e eu vos prometo ocupar-me de tal logo que o puder. Tenho visitas de sabre para dois dias: nem sei mesmo se isso me fará bem.
Tenho muitas coisas amigáveis a dizer-vos. É força cessar por hoje. Recebei a eterna segurança da minha ternura.
Sim, minha nobre padroeira, eu a recebo respeitosamente, como o principal tesouro de toda a minha segunda vida.
(Imagem final.)
Illa, graves oculos
conata attollere, rursùs
Deficit; infixum
stridit sub pectore vulnus.
Ter sese attollens,
cubieoque adnixa, levavit:
Ter revoluta toro est,
oculisque errantibus alto
Quœsivit
cœlo
lucem, in gemuitque repertâ.
(Virgílio.)
(Beijando o meu cacho portátil dos seus cabelos.) Reconhecimento, Saudades, Resignação. – A submissão é a base do aperfeiçoamento.
Imagem de 29 de abril de 1845 – A vista completou o encanto do ouvido... Gli occhi smeraldi!
(A sua primeira carta.) As vossas bondades tornam-me bem feliz e orgulhosa, senhor, e não me sinto com paciência de esperar melhor ocasião para dizer-vos todo o prazer que me causou Tom Jones.
Pois que a vossa superioridade não vos impede de fazer tudo para todos, regozijo-me com a esperança de conversar convosco acerca dessa pequena obra-prima, e poder recolher por vezes no meu coração e nome espírito os vossos belos e nobres ensinamentos.
Aceitai, senhor, com a expressão de todo o meu reconhecimento, a da grandíssima consideração.
(A minha resposta.) Senhora, não posso tampouco esperar até a venturosa ocasião de vos tornar a ver, para testemunhar-vos quanto me tocou o precioso acolhimento com que vos dignais gratificar um leve sinal de atenção, apenas recomendável por uma pressurosa oportunidade, aliás demasiada natural para convosco.
O apreço que tendes a benevolência de ligar à minha conversação, anima-me a declarar-vos que eu veria com muita satisfação multiplicarem-se tais relações tanto quanto o crerdes conveniente. Fui muitas vezes julgado pouco sociável, por falta de achar, nos outros, uma disposição de espírito, e sobretudo de coração, suficientemente em harmonia com a minha. Mas nem por isso apreciei sempre menos, no fundo, essa doce troca de sentimentos e pensamentos como a principal fonte da felicidade humana, quando as condições de tal comércio podem ser dignamente preenchidas. O confiante abandono que praz-me experimentar junto dos vossos pais deve indicar-vos assaz a minha tendência natural a saborear convenientemente o vosso amável entretenimento. Além da elevação de idéias e da nobreza de sentimentos que parecem peculiares a toda a vossa interessante família, uma triste conformidade moral de situação pessoal constitui ainda, entre vós e mim, uma aproximação mais especial.
Aceitai, senhora, de novo a segurança bem sincera do afetuoso respeito do vosso devotado criado.
2ª Efusão (7 minutos)
Imagem de 7 de março de 1846.
(De joelhos.)
DANTE
Donna, se’ tanto
grande et tanto vali
Che,
qual vuol grazia e a te non ricorre,
Sua
disianza vuol volar senz’ali.
La tua benignità non
pur soccorre
A
chi dimanda, ma molte fiate
Liberamente
AL dimandar precorre.
In te misericórdia, in
te pietate,
In
te magnificenza, in te s’aduna
Quantunque
in creatura è di bontate.
PETRARCA
Dolci durezze e
placide repulse,
Piene
di casto amor e di pietate,
Leggiadri
sdegni, che le mie infiammate
Vlglie
tempraro (or me n’accorgo) e’nsulse.
Gentil parlar, ovi
chiaro rifulse
Com
somma cortesia somma onestate,
Fior
di virtù, Fontana di beltate,
Ch’ogni
basso pensier dal cor m’avulse.
Divino sguardo, da far
l’uom Felice,
Or
fiero in affrenar la mente ardita
A
quel che giustamente si disdice,
Or presto a confortar
mia frale vita:
Questo
bel variar fu la radice
Di
mia salute, chaltramente era ita.
3º Conclusão (3 minutos)
(Imagem da tumba querida.) Quella ch’mparadisa la mia mente! Viver para outrem. Eis a verdadeira felicidade como o verdadeiro dever. Só tu me ensinaste a fundir as suas fórmulas! Que prazeres podem exceder os da dedicação?
(À minha eterna companheira.) Amem te plus quàm me, nec me nisi propter te!
(À Humanidade, no seu templo, diante do seu altar-mor.) Amem te plus quàm me, nec me nisi propter te!
(As sete máximas da minha padroeira.) É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem.
Que prazeres podem exceder os da dedicação?
Compreendi, melhor do que ninguém, a fraqueza da nossa natureza, quando não é dirigida para um alvo elevado, que seja inacessível às paixões.
A nossa espécie, mais do que as outras, carece de deveres para fazer sentimentos.
Não há, na vida, nada irrevogável senão a morte.
Nós temos todos ainda um pé no ar sobre o limiar da verdade.
Os maus têm amiúde mais precisão de piedade do que os bons.
(À minha padroeira, como personificando a Humanidade.)
Vergine-madre, Figlia
del tuo figlio,
Amem te plus quàm me,
nec me nisi propter te!
Tre dolci nomi hà’in
te raccolti
Sposa, madre, e figliuola!
Paris, 10, Rua Monsieur-le-Prince,
Venerdia, 16 de Arquimedes 69
(10 de abril de 1857.)
Augusto Comte
Fundador da Religião da Humanidade.
Nascido a 19 de janeiro de 1798, em Montpellier.
[1] Fonte: Raimundo Teixeira Mendes, Comte e Clotilde, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1903, p. 85-126.
Teixeira Mendes baseou-se, em particular para as orações cotidianas, no Testamento de Augusto Comte (Augusto Comte, Testament, 2e. ed, Paris, Execution Testamentaire d’Auguste Comte, 1896, p. 81-99).
[2] Nota de Raimundo Teixeira Mendes: “4 de setembro é o dia em que a igreja católica celebra a festa de Santa Rosália; em 1870 caía em domingo. Esse quadro referia-se a um ideal que o nosso mestre fazia da sua velhice e que a morte não permitiu realizar-se”.
[3] Nota de Raimundo Teixeira Mendes: “Desde 1849 que o nosso Mestre terminava a sua Oração da manhã com esse voto que infelizmente não pôde ser cumprido até hoje. (Vide a Política positiva, IV, p. 553 e 554)”.
[4] Nota de Raimundo Teixeira Mendes: “Ame-te a ti mais do que a mim, e não me ame a mim senão por amor de ti”.
[5] Nota de Raimundo Teixeira Mendes: 17 de maio de 1857.
[6] Introduzida em 1º de César de 69.
[7] Nota de Raimundo Teixeira Mendes: “O nosso Mestre lia algumas páginas desse livrinho todos os domingos à tarde, desde a morte de Clotilde. (Vide Volume Sagrado, Testamento, p. 18.)”
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