Sobre o militarismo
- Um dos temas a respeito dos quais há enorme confusão é o militarismo
o Essa confusão é resultado tanto de boa fé quanto de má-fé – o que, lamentavelmente, inclui mesmo pessoas que se dizem próximas ao Positivismo
o Na verdade, bem vistas as coisas, exatamente devido às confusões que envolvem o Positivismo e os militares, o tema do militarismo é um ótimo parâmetro para avaliação do conhecimento, do entendimento e da adesão que se tem do Positivismo, da mesma forma que do viés dos comentários (boa ou má fé)
o A confusão consiste em atribuir ao Positivismo a alcunha de militaristas e de militarismo – isso quando o Positivismo é radicalmente pacifista!
§ As pessoas de boa fé partem dos preconceitos correntes para atribuir ao Positivismo tal associação
§ As de má-fé repetem esse preconceito para degradar o Positivismo
§ Por fim, há indivíduos que, rondando o Positivismo, mesmo a despeito de terem noções da doutrina positivista, rejeitam o pacifismo e buscam justificar o militarismo por meio dos mais variados expedientes retóricos e sofísticos
- Quais são as concepções de Augusto Comte a respeito do militarismo? A resposta a essa questão passa pelo que nosso mestre dizia a respeito da guerra e, de modo mais amplo, da violência
- Consideremos, antes de mais nada, que há três leis dos três estados; a mais famosa é a lei intelectual, mas o que nos importa aqui é a lei prática
o Essa lei estabelece que a atividade é primeiro militar conquistadora, depois militar defensiva e enfim pacífico-industrial
o Evidentemente, ela estabelece um papel positivo para a guerra – mas não para qualquer guerra nem em qualquer momento
o As guerras fetíchicas, dos povos nômades ou seminômades, em que a destruição dos inimigos é prática habitual, estão excluídas dessa regra
§ Elas têm uma “função social”, mas, como destroem os inimigos, Augusto Comte considera que elas não têm um papel construtivo
o Em termos de grupos sociais, é importante notar que as teocracias iniciais eram mantidas estáveis pela preponderância dos sacerdotes sobre os guerreiros
§ Daí o recurso a guerras distantes, em que os sacerdotes afastavam os guerreiros
§ As teocracias iniciais, devido à estabilidade assim obtida, eram politeísmos conservadores
§ Quando os sacerdotes perdem afinal a preponderância sobre os guerreiros, as antigas teocracias tornam-se sociedades militaristas, na forma de politeísmos progressivos
o As guerras incessantes entre grupos, incapazes de conduzir a coletividades maiores e estáveis, não são valorizadas por Augusto Comte
§ O maior exemplo disso são as lutas intestinas gregas (como a Guerra do Peloponeso)
§ Esparta poderia ter desempenhado o papel de núcleo de uma sociedade ampla; mas suas elites eram muito mesquinhas e voltadas para seus próprios problemas
o As guerras de conquista que importam são aquelas que constituem coletividades amplas e duráveis
§ Internamente, constituem-se grandes áreas pacíficas, em que a indústria pode prosperar
§ O maior exemplo disso foi o império romano
· Roma, além de ter tido a glória de ser o grande exemplo de sociedade militar conquistadora, apresentou inúmeras outras qualidades:
o A subordinação da inteligência à atividade prática
o A valorização das virtudes públicas e, a partir disso, regulação da vida privada
o A grande emancipação mental das suas elites
o O entendimento de que a guerra deve visar à paz
o O desenvolvimento da indústria
§ Além do desenvolvimento da atividade pacífica, a grande comunidade criada por Roma permitiu que a cultura grega fosse disseminada e criou as condições para a renovação moral própria a São Paulo e ao catolicismo
· Nesse sentido, a seqüência definida por Augusto Comte entre Grécia, Roma e Idade Média é uma seqüência necessária, no sentido de que somente ela poderia ter os frutos que apresentou
- As guerras de conquista, ao criarem amplas comunidades estáveis e perduráveis, cedem lugar às guerras de defesa, em que o que importa não é a expansão territorial, mas a defesa e a preservação dos limites obtidos
o No Ocidente, essa fase correspondeu caracteristicamente à Idade Média
o As guerras de defesa são ilustradas pelas Cruzadas
o A ação do sacerdócio e do papado como intermediários entre os governos temporais ilustra a passagem paulatina dos hábitos guerreiros para os hábitos pacíficos
o Nessa fase ocorre a emancipação (também paulatina) dos antigos escravos para a condição de trabalhadores livres
- A partir disso, paulatinamente as preocupações guerreiras são substituídas pelas preocupações industriais
o Afirma-se cada vez mais o valor e a importância da vida humana
§ Matar e/ou morrer torna-se cada vez mais um ato ignóbil
o A busca militarista da honra e da glória são substituídas pelas preocupações civis com o conforto e o bem-estar
o Os meios violentos de solução de conflitos
são paulatinamente substituídos pelos meios pacíficos de solução de conflitos
§ Mais do que isso: cada vez mais, os meios violentos são vistos como errados e aberrantes (chegando ao ponto de serem vistos como “foras da lei”)
· Em outras palavras, há a mudança de perspectiva, em que a guerra deixa de ser algo triste mas habitual para tornar-se algo terrível, degradante e anormal
§ O repúdio à violência implica, necessariamente e de maneira correlata, a importância crescente do poder Espiritual em relação ao poder Temporal
o O trabalho passa a ser valorizado e, daí, também os trabalhadores
§ Entretanto, apesar de os benefícios trazidos pela sociedade industrial serem muito maiores e mais permanentes que os das sociedades guerreiras, o fato é que a regularização da sociedade pacífica é mais complicada que as das sociedades militares
· Literalmente ela é mais complicada e indireta
· Além disso, as qualidades industriais não são tão evidentes quanto as qualidades militares
· Adicionalmente, há o sério problema de que (pelo menos inicialmente) a sociedade industrial estimula o egoísmo e as vistas particulares
- A lei prática dos três estados tem que ser complementada pelas outras duas leis:
o A lei intelectual dos três estados indica a substituição progressiva das concepções absolutas e indiscutíveis pelas concepções relativas e discutíveis
o A lei afetiva dos três estados indica que as sociabilidades mais restritas, baseadas nas famílias e nas pátrias, são substituídas por uma sociabilidade mais ampla, que considera de fato a Humanidade
- Assim, no fundo a lei prática dos três estados estabelece o seguinte:
o A guerra faz parte da história humana
o Inversamente, no grande desenvolvimento da Humanidade, é necessário passar pela guerra para chegar-se à concepção da paz
§ Isso significa que a guerra fez sentido e foi justificável no passado, mas não o é mais no presente
o A transformação da atividade de guerras para a paz ocorre ao longo do tempo, com a acumulação de reflexões, de práticas, de mudanças sociais correlatas
o A afirmação da sociedade pacífica exige,
necessariamente, o repúdio crescente da guerra e dos meios violentos de solução
de conflitos
o Deveria ser evidente, mas para muitas pessoas não é: esse processo é ao mesmo tempo objetivo e subjetivo
§ Isso quer dizer que se trata tanto de condições sociais quanto de condições intelectuais/morais
o Como a guerra tornou-se cada vez mais imoral, o recurso a elas torna-se cada vez mais inaceitável
§ Conseqüentemente, os militares tornam-se cada vez mais inúteis e onerosos
· Os países com grandes gastos militares e grandes exércitos não por acaso são vistos como agressores em potencial
· Nos países distantes dos grandes cenários de conflitos, os exércitos com freqüência são focos de desestabilização política, como na América Latina, na África e na Ásia
§ É importante ter muita clareza: a função de qualquer exército e de qualquer militar é matar e destruir
· Assim, eventuais utilidades secundárias dos militares (disciplina, senso de dever, honra) são justificativas banais que fazem questão de enganar, romantizar e distrair do que realmente importa
· Para tentarem justificar os seus gastos e, assim, legitimarem-se, os militares cada vez mais assumem funções pacíficas, que fogem de suas missões precípuas: desenvolvimento econômico, técnico e científico; missões de paz; auxílio humanitário; trabalhos civis; logísticas diversas (eleições, correios etc.)
- Vale a pena considerarmos as teorias habituais sobre a guerra: elas atribuem os conflitos armados à natureza humana, e/ou à ausência de poder superior e/ou à vontade humana de realizar conflitos
o No caso de considerar-se a natureza humana como a fonte dos conflitos, essa natureza humana apresenta as seguintes características
§ É totalmente estática (ou seja, ela não se aperfeiçoa ao longo do tempo)
§ É apenas egoística
§ É agressiva
o No caso da ausência de poder superior, a concepção é que não há uma instância capaz de regular as relações entre as unidades políticas e, caso necessário, impor a ordem
o No que se refere à vontade de realizar conflitos, a concepção subjacente é que os atores relevantes consideram que as guerras são formas aceitáveis de relacionamento e de solução das diferenças entre os países
o O Positivismo concorda com elementos de cada uma dessas concepções, embora discorde de alguns de seus aspectos:
§ A natureza humana não é só egoística nem agressiva, nem se mantém estática ao longo do tempo; ela é altruísta e passível de paz, mas isso exige um longo desenvolvimento prévio
§ A ausência de um poder superior a todas as nações não resolveria o problema, na medida em que, considerando a extensão territorial dessa unidade política e as gigantescas variações morais, intelectuais e práticas entre os países, a única forma de manter alguma paz seria por meio da tirania global
· Órgãos de coordenação entre os países são importantes – daí o papel da diplomacia
· Mas o que importa mesmo é a coordenação moral e intelectual entre os países, em particular no sentido do pacifismo e da rejeição do militarismo/belicismo
· Pátrias pequenas facilitam a paz; inversamente, pátrias grandes estimulam (ou facilitam) a guerra
§ Considerando que a paz exige um longo período para seu desenvolvimento histórico, pelo menos desde o século XIX ela é um objetivo a ser perseguido e obtido com seriedade, em particular após 1945
- A partir dos elementos acima, a rejeição geral da violência nas relações sociais é afirmada no Positivismo
o Isso tem dois aspectos, um interno e outro externo
§ Internamente aos países, as relações sociais têm que ser estruturadas pelo convencimento mútuo e pela fraternidade universal
§ Externamente, as relações entre os países têm que se pautar pela paz e pela negociação (incluindo a arbitragem)
o Em
virtude disso, Augusto Comte afirmava a
necessidade imperiosa de dissolução de todos os exércitos, com sua substituição
por forças policiais
§ Convém lembrarmos que as polícias têm como função básica a manutenção da ordem, não a destruição e a morte
§ Além disso, Augusto Comte recomendava aos positivistas militares que mudassem de profissão ou que buscassem orientar suas atividades na caserna para objetivos construtivos
- Sobre o militarismo e o Positivismo no Brasil:
o A República foi proclamada em 1889 tendo à frente o positivista Tenente-Coronel Benjamin Constant
§ O fato de ter sido militar facilitou sua atuação em 15 de novembro, mas foi o seu positivismo que permitiu que Benjamin Constant imprimisse uma orientação civilista à sua prática docente e ao governo provisório
o A orientação civilista e pacifista dos positivistas foi seguida com seriedade; o maior e melhor exemplo disso é o de Rondon, que tinha por mote “morrer se for preciso, matar nunca” e que, por suas atividades sertanistas e indigenistas, foi denominado “o Marechal da Paz” (e indicado ao Prêmio Nobel da Paz)
o A orientação civilista e pacifista dos positivistas tornou-os alvos básicos e preferenciais dos militares militaristas, muitos dos quais depois aderiram ao fascismo e de que o grande representante foi o General Góes Monteiro
§ Assim, a associação usualmente feita entre Positivismo e militarismo é apenas uma coincidência histórica – e, mais do que isso, uma coincidência profundamente enganadora
o Afastando-se do tema estrito das relações entre militares e Positivismo, vale lembrar que a República – não por acaso sob influência do Positivismo –, ao ser proclamada, adotou uma orientação pacifista, civilista e diplomática em suas relações internacionais, afastando-se radicalmente da orientação violenta, agressiva, imperialista e militarista do Império
§ A concepção de que o Império – tanto sob dom Pedro I quanto, em particular, dom Pedro II – foi uma época de bonança pacífica é uma completa e total mistificação, realizada pelos saudosos da monarquia, da escravidão e da sociedade de castas
§ Afastando-se do imperialismo imperial no Prata, a República adotou sistematicamente a prática da mediação e da arbitragem para solucionar seus problemas de fronteiras
· Assim é que o Barão do Rio Branco deixou seus hábitos boêmios mantidos durante o Império e tornou-se, sob a República (e devido à República) um servidor público exemplar
- Para concluir: o Positivismo é, sim, pacifista
o Evidentemente, a nossa orientação geral é pacifista, mas, infelizmente, alguns conflitos acabam sendo necessários
o Mas, de qualquer maneira, o que se evidencia – mais uma vez: o que se evidencia cada vez mais, desde pelo menos o século XIX e com força crescente após 1945 e após 1991 – é que as guerras atuais são iniciadas pela vontade de alguns líderes e/ou de algumas elites em fazer as guerras, devido à burrice e/ou à adesão a hábitos mentais violentos (falta de fraternidade universal, valores absolutos, paranóia etc.)
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