24 outubro 2023

Sobre o militarismo

No dia 17 de Descartes de 169 (24.10.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo Positivista. Nesse sentido, iniciamos a nona conferência, dedicada ao conjunto do regime positivo.

No sermão abordamos o tema do militarismo, examinado à luz da Religião da Humanidade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/8GzSn) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/tD6iK). O sermão começou em 43' 45".

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Sobre o militarismo 

-        Um dos temas a respeito dos quais há enorme confusão é o militarismo

o   Essa confusão é resultado tanto de boa fé quanto de má-fé – o que, lamentavelmente, inclui mesmo pessoas que se dizem próximas ao Positivismo

o   Na verdade, bem vistas as coisas, exatamente devido às confusões que envolvem o Positivismo e os militares, o tema do militarismo é um ótimo parâmetro para avaliação do conhecimento, do entendimento e da adesão que se tem do Positivismo, da mesma forma que do viés dos comentários (boa ou má fé)

o   A confusão consiste em atribuir ao Positivismo a alcunha de militaristas e de militarismo – isso quando o Positivismo é radicalmente pacifista!

§  As pessoas de boa fé partem dos preconceitos correntes para atribuir ao Positivismo tal associação

§  As de má-fé repetem esse preconceito para degradar o Positivismo

§  Por fim, há indivíduos que, rondando o Positivismo, mesmo a despeito de terem noções da doutrina positivista, rejeitam o pacifismo e buscam justificar o militarismo por meio dos mais variados expedientes retóricos e sofísticos

-        Quais são as concepções de Augusto Comte a respeito do militarismo? A resposta a essa questão passa pelo que nosso mestre dizia a respeito da guerra e, de modo mais amplo, da violência

-        Consideremos, antes de mais nada, que há três leis dos três estados; a mais famosa é a lei intelectual, mas o que nos importa aqui é a lei prática

o   Essa lei estabelece que a atividade é primeiro militar conquistadora, depois militar defensiva e enfim pacífico-industrial

o   Evidentemente, ela estabelece um papel positivo para a guerra – mas não para qualquer guerra nem em qualquer momento

o   As guerras fetíchicas, dos povos nômades ou seminômades, em que a destruição dos inimigos é prática habitual, estão excluídas dessa regra

§  Elas têm uma “função social”, mas, como destroem os inimigos, Augusto Comte considera que elas não têm um papel construtivo

o   Em termos de grupos sociais, é importante notar que as teocracias iniciais eram mantidas estáveis pela preponderância dos sacerdotes sobre os guerreiros

§  Daí o recurso a guerras distantes, em que os sacerdotes afastavam os guerreiros

§  As teocracias iniciais, devido à estabilidade assim obtida, eram politeísmos conservadores

§  Quando os sacerdotes perdem afinal a preponderância sobre os guerreiros, as antigas teocracias tornam-se sociedades militaristas, na forma de politeísmos progressivos

o   As guerras incessantes entre grupos, incapazes de conduzir a coletividades maiores e estáveis, não são valorizadas por Augusto Comte

§  O maior exemplo disso são as lutas intestinas gregas (como a Guerra do Peloponeso)

§  Esparta poderia ter desempenhado o papel de núcleo de uma sociedade ampla; mas suas elites eram muito mesquinhas e voltadas para seus próprios problemas

o   As guerras de conquista que importam são aquelas que constituem coletividades amplas e duráveis

§  Internamente, constituem-se grandes áreas pacíficas, em que a indústria pode prosperar

§  O maior exemplo disso foi o império romano

·         Roma, além de ter tido a glória de ser o grande exemplo de sociedade militar conquistadora, apresentou inúmeras outras qualidades:

o   A subordinação da inteligência à atividade prática

o   A valorização das virtudes públicas e, a partir disso, regulação da vida privada

o   A grande emancipação mental das suas elites

o   O entendimento de que a guerra deve visar à paz

o   O desenvolvimento da indústria

§  Além do desenvolvimento da atividade pacífica, a grande comunidade criada por Roma permitiu que a cultura grega fosse disseminada e criou as condições para a renovação moral própria a São Paulo e ao catolicismo

·         Nesse sentido, a seqüência definida por Augusto Comte entre Grécia, Roma e Idade Média é uma seqüência necessária, no sentido de que somente ela poderia ter os frutos que apresentou

-        As guerras de conquista, ao criarem amplas comunidades estáveis e perduráveis, cedem lugar às guerras de defesa, em que o que importa não é a expansão territorial, mas a defesa e a preservação dos limites obtidos

o   No Ocidente, essa fase correspondeu caracteristicamente à Idade Média

o   As guerras de defesa são ilustradas pelas Cruzadas

o   A ação do sacerdócio e do papado como intermediários entre os governos temporais ilustra a passagem paulatina dos hábitos guerreiros para os hábitos pacíficos

o   Nessa fase ocorre a emancipação (também paulatina) dos antigos escravos para a condição de trabalhadores livres

-        A partir disso, paulatinamente as preocupações guerreiras são substituídas pelas preocupações industriais

o   Afirma-se cada vez mais o valor e a importância da vida humana

§  Matar e/ou morrer torna-se cada vez mais um ato ignóbil

o   A busca militarista da honra e da glória são substituídas pelas preocupações civis com o conforto e o bem-estar

o   Os meios violentos de solução de conflitos são paulatinamente substituídos pelos meios pacíficos de solução de conflitos

§  Mais do que isso: cada vez mais, os meios violentos são vistos como errados e aberrantes (chegando ao ponto de serem vistos como “foras da lei”)

·         Em outras palavras, há a mudança de perspectiva, em que a guerra deixa de ser algo triste mas habitual para tornar-se algo terrível, degradante e anormal

§  O repúdio à violência implica, necessariamente e de maneira correlata, a importância crescente do poder Espiritual em relação ao poder Temporal

o   O trabalho passa a ser valorizado e, daí, também os trabalhadores

§  Entretanto, apesar de os benefícios trazidos pela sociedade industrial serem muito maiores e mais permanentes que os das sociedades guerreiras, o fato é que a regularização da sociedade pacífica é mais complicada que as das sociedades militares

·         Literalmente ela é mais complicada e indireta

·         Além disso, as qualidades industriais não são tão evidentes quanto as qualidades militares

·         Adicionalmente, há o sério problema de que (pelo menos inicialmente) a sociedade industrial estimula o egoísmo e as vistas particulares

-        A lei prática dos três estados tem que ser complementada pelas outras duas leis:

o   A lei intelectual dos três estados indica a substituição progressiva das concepções absolutas e indiscutíveis pelas concepções relativas e discutíveis

o   A lei afetiva dos três estados indica que as sociabilidades mais restritas, baseadas nas famílias e nas pátrias, são substituídas por uma sociabilidade mais ampla, que considera de fato a Humanidade

-        Assim, no fundo a lei prática dos três estados estabelece o seguinte:

o   A guerra faz parte da história humana

o   Inversamente, no grande desenvolvimento da Humanidade, é necessário passar pela guerra para chegar-se à concepção da paz

§  Isso significa que a guerra fez sentido e foi justificável no passado, mas não o é mais no presente

o   A transformação da atividade de guerras para a paz ocorre ao longo do tempo, com a acumulação de reflexões, de práticas, de mudanças sociais correlatas

o   A afirmação da sociedade pacífica exige, necessariamente, o repúdio crescente da guerra e dos meios violentos de solução de conflitos

o   Deveria ser evidente, mas para muitas pessoas não é: esse processo é ao mesmo tempo objetivo e subjetivo

§  Isso quer dizer que se trata tanto de condições sociais quanto de condições intelectuais/morais

o   Como a guerra tornou-se cada vez mais imoral, o recurso a elas torna-se cada vez mais inaceitável

§  Conseqüentemente, os militares tornam-se cada vez mais inúteis e onerosos

·         Os países com grandes gastos militares e grandes exércitos não por acaso são vistos como agressores em potencial

·         Nos países distantes dos grandes cenários de conflitos, os exércitos com freqüência são focos de desestabilização política, como na América Latina, na África e na Ásia

§  É importante ter muita clareza: a função de qualquer exército e de qualquer militar é matar e destruir

·         Assim, eventuais utilidades secundárias dos militares (disciplina, senso de dever, honra) são justificativas banais que fazem questão de enganar, romantizar e distrair do que realmente importa

·         Para tentarem justificar os seus gastos e, assim, legitimarem-se, os militares cada vez mais assumem funções pacíficas, que fogem de suas missões precípuas: desenvolvimento econômico, técnico e científico; missões de paz; auxílio humanitário; trabalhos civis; logísticas diversas (eleições, correios etc.)

-        Vale a pena considerarmos as teorias habituais sobre a guerra: elas atribuem os conflitos armados à natureza humana, e/ou à ausência de poder superior e/ou à vontade humana de realizar conflitos

o   No caso de considerar-se a natureza humana como a fonte dos conflitos, essa natureza humana apresenta as seguintes características

§  É totalmente estática (ou seja, ela não se aperfeiçoa ao longo do tempo)

§  É apenas egoística

§  É agressiva

o   No caso da ausência de poder superior, a concepção é que não há uma instância capaz de regular as relações entre as unidades políticas e, caso necessário, impor a ordem

o   No que se refere à vontade de realizar conflitos, a concepção subjacente é que os atores relevantes consideram que as guerras são formas aceitáveis de relacionamento e de solução das diferenças entre os países

o   O Positivismo concorda com elementos de cada uma dessas concepções, embora discorde de alguns de seus aspectos:

§  A natureza humana não é só egoística nem agressiva, nem se mantém estática ao longo do tempo; ela é altruísta e passível de paz, mas isso exige um longo desenvolvimento prévio

§  A ausência de um poder superior a todas as nações não resolveria o problema, na medida em que, considerando a extensão territorial dessa unidade política e as gigantescas variações morais, intelectuais e práticas entre os países, a única forma de manter alguma paz seria por meio da tirania global

·         Órgãos de coordenação entre os países são importantes – daí o papel da diplomacia

·         Mas o que importa mesmo é a coordenação moral e intelectual entre os países, em particular no sentido do pacifismo e da rejeição do militarismo/belicismo

·         Pátrias pequenas facilitam a paz; inversamente, pátrias grandes estimulam (ou facilitam) a guerra

§  Considerando que a paz exige um longo período para seu desenvolvimento histórico, pelo menos desde o século XIX ela é um objetivo a ser perseguido e obtido com seriedade, em particular após 1945

-        A partir dos elementos acima, a rejeição geral da violência nas relações sociais é afirmada no Positivismo

o   Isso tem dois aspectos, um interno e outro externo

§  Internamente aos países, as relações sociais têm que ser estruturadas pelo convencimento mútuo e pela fraternidade universal

§  Externamente, as relações entre os países têm que se pautar pela paz e pela negociação (incluindo a arbitragem)

o   Em virtude disso, Augusto Comte afirmava a necessidade imperiosa de dissolução de todos os exércitos, com sua substituição por forças policiais

§  Convém lembrarmos que as polícias têm como função básica a manutenção da ordem, não a destruição e a morte

§  Além disso, Augusto Comte recomendava aos positivistas militares que mudassem de profissão ou que buscassem orientar suas atividades na caserna para objetivos construtivos

-        Sobre o militarismo e o Positivismo no Brasil:

o   A República foi proclamada em 1889 tendo à frente o positivista Tenente-Coronel Benjamin Constant

§  O fato de ter sido militar facilitou sua atuação em 15 de novembro, mas foi o seu positivismo que permitiu que Benjamin Constant imprimisse uma orientação civilista à sua prática docente e ao governo provisório

o   A orientação civilista e pacifista dos positivistas foi seguida com seriedade; o maior e melhor exemplo disso é o de Rondon, que tinha por mote “morrer se for preciso, matar nunca” e que, por suas atividades sertanistas e indigenistas, foi denominado “o Marechal da Paz” (e indicado ao Prêmio Nobel da Paz)

o   A orientação civilista e pacifista dos positivistas tornou-os alvos básicos e preferenciais dos militares militaristas, muitos dos quais depois aderiram ao fascismo e de que o grande representante foi o General Góes Monteiro

§  Assim, a associação usualmente feita entre Positivismo e militarismo é apenas uma coincidência histórica – e, mais do que isso, uma coincidência profundamente enganadora

o   Afastando-se do tema estrito das relações entre militares e Positivismo, vale lembrar que a República – não por acaso sob influência do Positivismo –, ao ser proclamada, adotou uma orientação pacifista, civilista e diplomática em suas relações internacionais, afastando-se radicalmente da orientação violenta, agressiva, imperialista e militarista do Império

§  A concepção de que o Império – tanto sob dom Pedro I quanto, em particular, dom Pedro II – foi uma época de bonança pacífica é uma completa e total mistificação, realizada pelos saudosos da monarquia, da escravidão e da sociedade de castas

§  Afastando-se do imperialismo imperial no Prata, a República adotou sistematicamente a prática da mediação e da arbitragem para solucionar seus problemas de fronteiras

·         Assim é que o Barão do Rio Branco deixou seus hábitos boêmios mantidos durante o Império e tornou-se, sob a República (e devido à República) um servidor público exemplar

-        Para concluir: o Positivismo é, sim, pacifista

o   Evidentemente, a nossa orientação geral é pacifista, mas, infelizmente, alguns conflitos acabam sendo necessários

o   Mas, de qualquer maneira, o que se evidencia – mais uma vez: o que se evidencia cada vez mais, desde pelo menos o século XIX e com força crescente após 1945 e após 1991 – é que as guerras atuais são iniciadas pela vontade de alguns líderes e/ou de algumas elites em fazer as guerras, devido à burrice e/ou à adesão a hábitos mentais violentos (falta de fraternidade universal, valores absolutos, paranóia etc.)


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