21 agosto 2011

Sobre o estilo de Maquiavel e a Teoria Política moderna

Ao estudarmos a obra de Maquiavel, muitas vezes lemos que ele foi inovador e que, rompendo com uma tradição prévia – geralmente associada ao pensamento moral católico –, teria fundado a “Ciência Política moderna”.


Especificamente, o livrinho O príncipe, que é a obra mais famosa de Maquiavel, refletiria essas inovações, ao apresentar algumas observações teóricas com uma série de exemplos: mas as observações não são sistemáticas (por vezes resumem-se a algumas poucas linhas) e os exemplos freqüentemente têm várias páginas, de maneira que parecem desmesurados. Esse estilo de expor e raciocinar torna a compreensão do livro um tanto difícil – não porque o raciocínio seja complicado, mas porque com grande facilidade perdemos os fios da meada em meio aos exemplos.


O que muitos autores argumentam, ou sugerem[1], é que essa forma assistemática de argumentar seria devida ao ineditismo maquiaveliano. O raciocínio subjacente é o seguinte: ao romper com uma tradição “moralista” anterior, mais preocupada com o aconselhamento moral (em particular, a tradição dos “espelhos do príncipe”) que com a compreensão da realidade política prática, Maquiavel teria tido dificuldades para elaborar o seu pensamento – daí a assistematicidade combinada com a curiosa profusão de exemplos.


Ora, essa forma de raciocinar, embora à primeira vista seja tentadora, é errada. Antes de mais nada, porque se baseia em uma ilusão histórica, mais precisamente, em um anacronismo. O Ocidente não valoriza a Idade Média; por diversos motivos, considera-se que não se produziu intelectualmente nada nesse longo período. Todavia, isso é incorreto, pois considera-se que a fase medieval foi homogênea, isto é, como se não tivessem havido vários momentos social e intelectualmente diferentes entre si durante cerca de mil anos. Nesse sentido, os séculos finais da Idade Média caracterizaram-se pela decadência que se seguiu ao apogeu do domínio católico e da ordem feudal. Embora sempre tenha fortes havido disputas em toda a Idade Média, os seus séculos finais caracterizaram-se por inúmeras elaborações teóricas, que ao mesmo tempo procuravam justificar as contendas e dar um tratamento teórico às novas conjunturas políticas específicas.


Podemos pensar em duas disputas, em particular; essas duas disputas, na verdade, eram duas faces de uma única disputa maior, resultantes do reordenamento político e social da decadência da ordem católico-feudal. Por um lado, a oposição entre os dois poderes “universais” da época: a Igreja Católica, representada pelo Papado, que, a partir de sua supremacia espiritual, tencionava tornar-se politicamente superior a todos os chefes temporais; por outro lado, o Império Romano-Germânico, tornado “sagrado” pelo mesmo Papado que tentava deslegitimá-lo. Essa disputa durou séculos e teve episódios memoráveis dos pontos de vista prático e intelectual: podemos ficar somente na humilhação imposta pelo Papa Gregório VII ao Imperador Henrique IV, durante o inverno alpino na cidade de Canossa; mas o resultado dessa oposição, como sabemos, foi o enfraquecimento mútuo dos dois e o surgimento de condições para a afirmação da lealdade a um novo âmbito político. Esse novo âmbito era intermediário em termos de extensão territorial: nem “universal”, como o Papado e o Império, nem restrito, como os feudos; eram os reinos, que depois seriam chamados de estados nacionais modernos[2]. Entre inúmeros outros autores, podemos citar os famosos Dante e Guilherme de Ockham participando dessas lutas.


Ao mesmo tempo, os séculos finais da Idade Média caracterizaram-se, de uma perspectiva intelectual e artística, pelo Renascimento, ou seja, pela redescoberta européia das tradições gregas e romanas, a partir da sua difusão pelos árabes. O Renascimento, ao mesmo tempo em que forneceu elementos para as reflexões políticas envolvidas nas lutas entre Papado, Império e reis, também inspirou pensadores e políticos para tratarem das suas realidades específicas: pensamos nas “repúblicas renascentistas” sendo justificadas como a reafirmação, ou a continuidade, das antigas cidades-Estado da Grécia e de Roma.

Aliás, mesmo que não houvesse esses antecedentes imediatos, o Renascimento consistiu na retomada dos textos antigos, que continham reflexões extremamente sistemáticas sobre as realidades cósmica, social e moral: Aristóteles é o grande exemplo disso. Ora, Aristóteles não podia ser desconhecido de Maquiavel, pois Tomás de Aquino elaborou sua teologia procurando conjugar Sto. Agostinho com, precisamente, Aristóteles.

Em outras palavras, essas disputas políticas originaram uma grande elaboração intelectual; essa produção é desconsiderada quando se afirma que Maquiavel era radicalmente inédito ao escrever O príncipe.

Dito isso, poder-se-ia argumentar que a forma como O príncipe foi redigida é adequada ao seu objetivo, isto é, que corresponde precisamente a um manual prático para os chefes militares que desejem obter e manter o poder, fundando novas unidades políticas, adequadas à realidade do fim da Idade Média, isto é, adequadas à existência plena dos estados nacionais modernos[3].


Essa linha de argumentação é factível. Todavia, caso leiamos também os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, ou simplesmente Discorsi, veremos que eles apresentam a mesma forma narrativa: algumas observações teóricas mais ou menos pouco sistemáticas seguidas de longos exemplos históricos. Embora os Discorsi tivessem também uma preocupação prática – a (re)organização das repúblicas italianas, em particular Florença –, o fato é que eles têm objetivos muito menos pragmáticos, revestindo-se de um caráter mais normativo.


Retornando ao estilo teórico maquiaveliano: as observações acima sugerem que o tatear da escrita de Maquiavel não era devido à sua novidade, ao ineditismo de sua elaboração, mas consistia especificamente em um traço pessoal. Ele não era inédito nem rompia com uma tradição prévia porque inúmeros outros autores redigiram reflexões políticas agudas, tanto em termos de realismo quanto em termos de utilidade prática. O que ele pode ter feito é ter jogado uma pá de cal nos manuais de aconselhamento do tipo “espelho do príncipe” – próprios, talvez, à Idade Média – e iniciado a tradição de manuais adequados à luta prática – “como obter o poder e manter-se nele”.


Uma reflexão crua sobre os meios necessários e disponíveis para a obtenção do poder têm, evidentemente, uma grande importância prática, além de servir para a reflexão teórica. Mais do que isso: Maquiavel adotou uma forma de raciocinar que, atualmente, é chamada de “Teoria Política historicamente informada”, em que procurava utilizar a experiência histórica não apenas como guia, como fonte de exemplos, como conselheira, mas também como fonte de elementos para uma reflexão mais sistemática[4]. Embora tanto O príncipe quanto os Discorsi tenham elementos de cada uma dessas abordagens, enquanto O príncipe usa mais a história como conselheira, os Discorsi revelam uma abordagem da história como fonte para entender-se os processos sociais subjacentes.


Também convém notar que a obra de Maquiavel originou várias correntes e interpretações teóricas, todas elas riquíssimas e que se mantêm contribuindo para a compreensão que temos da política. Sem ser exaustivo, podemos pensar em Jean-Jacques Rousseau afirmando ser O príncipe um aviso ao povo, contra os poderosos; em Frederico II, escrevendo seu Anti-Maquiavel; em Antônio Gramsci vendo o “príncipe moderno” na figura do partido político; nos teóricos elitistas italianos (Gaetano Mosca, em particular) e, mais recentemente, nas elaborações do neo-republicanismo, a que se ligam Quentin Skinner, John McCormick, Newton Bignotto, Ricardo Silva e inúmeros outros.

Ainda assim, embora a abordagem de Maquiavel seja útil e interessante – particularmente, esposamos a concepção de que a Teoria Política deve ser “historicamente informada”, a fim de ser mais realista – e ele tenha originado ou contribuído com inúmeras correntes teóricas importantes, a reflexão sobre o estilo de escrita maquiaveliano não é muito favorável a ele. “Não ser favorável” não significa que ele não tenha escrito coisas que mereçam a leitura e a reflexão, mas que seu ineditismo não é tão marcante nem sua contribuição tão fundamental. Na verdade, como vimos, pode-se argumentar seriamente contra o seu ineditismo (deixando de lado a obviedade de que, em princípio, todo autor que escreve é inédito): essa concepção vincula-se à falta de consciência histórica. Da mesma forma, a falta de sistematicidade de seu pensamento leva a pôr seriamente em dúvida suas contribuições. 

O resultado disso é que somos levados a concordar com Augusto Comte em sua avaliação de Maquiavel[5]

“Avant de quitter cette second phase, je dois signaler Hobbes et Bossuet comme ayant déjà préparé alors la rénovation de la philosophie politique. Machiavel, avant eux, avait fait quelques heureuses tentatives partielles pour rattacher l’explication de certains phénomènes politiques à des causes purement naturelles, quoiqu’il ait deparé son ouvrage par une appréciation tout à fait vicieuse de la sociabilité moderne, qu’il ne put jamais suffisamment distinguer de l’ancienne. La célèbre conception de Hobbes sur l’état de guerre primordial et le prétendu règne de la force, a presque toujours été méconnue ; mais, considérée d’une manière impartiale, on sentira qu’elle a constitué un puissant aperçu primordial, statique et dynamique, de la prépondérance des influences temporelles dans l’ensemble permanent des conditions sociales ; et, aussi, de l’état nécessairement militaire des sociétés primitives. C’est la une vue saine introduite au milieu des hypothèses fantastiques sur l’état de nature et le contrat social, et elle a, par conséquent, une éminent valeur. La participation de Bossuet à cette préparation est plus évidente et moins disputée. J’ai déjà signalé la valeur de son élaboration historique, où, pour la première fois, les phenomènes politiques sont envisagés comme assujettis à des lois invariables que permettent de les déterminer les uns par les autres. Quoique le principe théologique qui dominait cette lumineuse conception dût l’altérer profondément, il ne pouvait dissimuler tout à fait sa valeur, ni empêcher son heureuse influence sur les études historiques de la période suivante. On sente, du reste, qu’elle ne pouvait naître alors qu’au sein du catholicisme, dont elle constitue la dernière inspiration capitale, puisque l’instinct négatif empêchait ailleurs toute juste appréciation quelconque de l’évolution humaine. La nature de grande service qu’a rendu Bossuet ressort de sa destination, qui était de représenter l’histoire systématique comme la base nécessaire de l’éducation politique”[6].




[1] Não penso em nenhum autor em particular neste momento; os comentários que faço são de fato genéricos e “impressionistas”, baseados nas leituras que fiz na época de estudante de graduação e de mestrado – antes, portanto, de estudar com atenção a História das Idéias. De qualquer forma, para o presente argumento, como se verá, a ausência de algum nome específico que tenha proposto o senso comum que comento não é tão problemática.

[2] Uma ótima exposição dessas lutas é o livro de Raquel Kritsch, Soberania – a construção de um conceito (São Paulo: Humanitas, 2002).

[3] A realidade vivida por Maquiavel era da incapacidade das cidades-Estado italianas manterem-se mais ou menos estáveis ao longo do tempo. Essa dificuldade foi aumentada bastante a partir das guerras da Itália, ou seja, a partir do momento em que dois novos estados nacionais – França e Espanha, particularmente a primeira – decidiram atuar na península.

[4] Uma exposição dos “estilos” das teorizações na Teoria Política pode ser lida no artigo de Ricardo Silva, “Identidades da teoria política: entre a ciência, a normatividade e a história” (Pensamento Plural, Pelotas, v. 3, p. 9-21, jul.-dez.2008. Disponível em: http://www.ufpel.edu.br/isp/ppgcs/pensamento-plural/edicoes/03/01.pdf. Acesso em: 26.maio.2011). A abordagem do uso sistemático da história para teorizar na política corresponderia, no texto de Ricardo Silva, à parceria mantida na última década e meia por Quentin Skinner com Phillip Pettit.

[5] Fonte da citação: Auguste Comte, La philosophie positive d’Auguste Comte, condensée par Miss Harriet Martineau (T. II. Paris: Louis Bahl, 1895, p. 491-492).

[6] “Antes de concluir essa segunda fase, devo indicar Hobbes e Bossuet como já tendo então preparado a renovação da filosofia política. Maquiavel, antes deles, fez algumas felizes tentativas parciais para vincular a explicação de certos fenômenos políticos a causas puramente naturais, embora tenha desfigurado sua obra por uma apreciação em todos os sentidos viciosa da sociabilidade moderna, que ele não pôde jamais distinguir suficientemente da antiga. A célebre concepção de Hobbes sobre o estado de guerra primordial e o pretendido reino da força foram quase sempre mal conhecidos, mas, considerada de uma forma imparcial, sentimos que ela constituiu uma poderosa percepção primordial, estática e dinâmica, da preponderância das influências temporais no conjunto permanente das condições sociais e, assim, do estado necessariamente militar das sociedades primitivas. Essa é uma sã visão introduzida no meio das hipóteses fantásticas sobre o estado de natureza e o contrato social e ela tem, em conseqüência, um valor eminente. A participação de Bossuet nessa preparação é mais evidente e menos disputada. Já assinalei o valor de sua elaboração histórica, em que, pela primeira vez, os fenômenos políticos foram percebidos como sujeitos a leis invariáveis que permitem determiná-las umas pelas outras. Embora o princípio teológico que dominou essa luminosa concepção devesse alterá-la profundamente, ele não pôde dissimular de todo seu valor, nem impedir sua feliz influência sobre os estudos históricos do período seguinte. Sentimos, quanto ao resto, que ela não podia nascer em outro lugar que não no seio do catolicismo, em que ela constitui a última inspiração capital, desde que o instinto negativo impediu alhures toda e qualquer justa apreciação da evolução humana. A natureza do grande serviço que rendeu Bossuet evidencia sua destinação, que foi a de representar a história sistemática como a base necessária da educação política” (tradução minha).

19 agosto 2011

Vice-procuradora diz que ensino plural é impossível e defende estudo da história das religiões

Sobre o último parágrafo: é evidente que a Constituição é contraditória. Mas, por uma questão de técnica jurídica, é necessário considerar que a CF é coerente (como se ela não fosse o resultado de pressões políticas e sociais, que não raras vezes opõem-se frontalmente).

Ou seja: em vez de assumir-se o erro, prefere-se piorar o que já é ruim para salvar as aparências.

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Vice-procuradora diz que ensino plural é impossível e defende estudo da história das religiões

19/08/2011 - 9h39

Amanda Cieglinski
Repórter da Agência Brasil

Brasília – A discussão sobre a oferta de ensino religioso nas escolas públicas chegou à Justiça. Duas ações diretas de inconstitucionalidade foram encaminhadas ao Supremo Tribunal Federal (STF) questionando o espaço da religião dentro da escola tendo em vista que, desde que o Brasil deixou de ser colônia portuguesa, a Constituição define o país como laico. O tema é contraditório já que a Carta Magna também determina que as escolas públicas devam oferecer ensino religioso aos alunos do ensino fundamental, ainda que a matrícula na disciplina seja optativa.

Uma das ações, encaminhada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), pede que o STF se posicione a respeito do modelo de oferta do ensino religioso adotado por alguns estados, chamado de confessional, em que o professor está vinculado a comunidades religiosas. A ação, cujo relator será o ministro Carlos Ayres Britto, defende que é inadmissível que “a escola se transforme em espaço de catequese e proselitismo, católico ou de qualquer outra religião”.

Em entrevista à Agência Brasil, a vice-procuradora Deborah Duprat, autora da ação, explica que a questão da laicidade é discutida em todo o mundo e defende que a única forma de compatibilizar a oferta dessa disciplina no país é tratar o assunto sob a ótica da história das religiões.

Leia os principais trechos da entrevista com a vice-procuradora:

Agência Brasil: Qual é o objetivo da ação direta de inconstitucionalidade?
Deborah Duprat: A nossa Constituição tem dois dispositivos: um, que existe desde 1890, determina que o Estado é laico. A laicidade é um princípio que vem desde o início da República. Outro dispositivo prevê a oferta de ensino religioso em caráter facultativo. Então é preciso compatibilizar esses dois dispositivos. Também a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) tem uma cláusula prevendo a oferta, em caráter facultativo, do ensino religioso, mas ela diz claramente que está vedado qualquer tipo de proselitismo. No direito existe o princípio da unidade da Constituição: não existem dispositivos antagônicos dentro dela, você precisa compatibilizá-los. Para isso você tem que fazer a leitura que a ação pretende que se faça: o Estado é laico e, quando fala na possibilidade de previsão da oferta de ensino religioso em caráter facultativo nas escolas, tem que ser ensino religioso necessariamente não confessional [não relacionado a uma determinada confissão ou religião]. Ou seja: a história, a doutrina das religiões e até a falta da religião, é preciso que essa informação seja completa. Ao lado das várias doutrinas, há também aquelas pessoas que pregam a ausência de qualquer crença como os agnósticos.

ABr: O modelo de ensino religioso confessional é incompatível com a laicidade?
Deborah: A religião com esse caráter de proselitismo, confessional, priva o aluno, que é um público formado basicamente por crianças e adolescentes, da autonomia para fazer as suas escolhas essenciais, inclusive no campo da cidadania. Pretende-se que o Estado e a criança que estuda na escola fornecida por ele esteja livre desse tipo de coerção. Essa é uma questão discutida no mundo todo. Em alguns lugares, com um caráter muito mais incisivo, ao ponto de discutir laicidade e laicismo. O laicismo é um conceito que não admite nenhum tipo de cooperação do Estado com as religiões como acontece na França [que proibiu alunas muçulmanas de usar o véu nas escolas]. Outros países, como os Estados Unidos, admitem algum tipo de cooperação, mas não admitem, por exemplo, que sejam fixados crucifixos nas dependências das escolas, porque entendem que a criança faz uma leitura de que aquela escola professa aquele tipo de religião e pode ser algo coercitivo para ela.

ABr: Como seria possível compatibilizar esses dois princípios que parecem antagônicos – laicidade e ensino religioso?
Deborah: Excluindo das escolas o ensino religioso de caráter confessional. Preservamos o dispositivo que trata do ensino religioso e preservamos a laicidade. O que vai ser ensinado é a história das religiões e não os dogmas, as crenças, aquilo que são as condições morais de cada indivíduo. E tem outro aspecto: os professores da disciplina devem ser aqueles regulares das escolas, admitidos por concurso público, e não aqueles egressos de uma ou outra confissão religiosa.

ABr: Alguns pesquisadores defendem que a inclusão do ensino religioso na Constituição foi uma “concessão” à laicidade. A senhora concorda com essa ideia?
Deborah: A Constituição é isso, ela é um produto de lutas. Ao intérprete da Constituição cabe não entender dessas lutas, mas compatibilizar aquilo que aparentemente e incompatível. São lutas divergentes então, obviamente, quem prega a religiosidade no ensino é contra a laicidade. Essas lutas têm que ser compatibilizadas pelo intérprete do direito.

ABr: A Constituição Federal e a LDB falam que o ensino religioso nas escolas tem que ser plural e abordar todas as crenças de forma igualitária. Na prática, isso não é difícil de ser garantido?
Deborah: É impossível. A religião tem esse caráter confessional. O professor que é egresso de uma determinada religião vai transmitir a crença e os dogmas daquela religião. Então, como seria esse ensino interconfessional que várias igrejas sustentam que é possível? Primeiro, não consigo imaginar o que seria na cabeça de crianças e adolescentes ora escutando dogmas de uma religião ora de outras. E quem seria esse profissional capaz de abordar aspectos de todas as religiões? Depois, como ficam os ateus? Eles também têm direito a um espaço livre desse tipo de influência.

ABr: O acordo que o Brasil assinou em 2008 com a Santa Sé reforça a importância do ensino religioso nas escolas e dá destaque ao catolicismo. Na sua opinião, qual foi a contribuição dele a esse cenário?
Deborah: Na verdade, não há muito impacto porque de certa forma ele é uma reprodução dessa antinomia [contradição] que existe na Constituição porque ele também prevê a oferta “do ensino católico e de outras religiões”, então é a mesma coisa que está na Constituição e na LDB.

ABr: Mas quando ele coloca a palavra “ensino católico” não há, de certa forma, um destaque para uma crença específica?
Deborah: Sim, mas a gente nem trata isso. Como na minha concepção é absolutamente impossível falar de ensino religioso em caráter confessional, de qualquer religião, esse detalhe é irrelevante. Pode até simbolicamente fazer uma diferença enorme, mas não cabe ao intérprete do direito dar importância a esse simbolismo.

ABr: Alguns defendem soluções mais extremas como uma proposta de emenda à Constituição que exclua das escolas o ensino das religiões. Esse seria um caminho?
Deborah: A gente espera conseguir construir esse ensino das religiões de uma forma mais razoável. A ação não pede que seja excluído o ensino religioso, na verdade, a ação é para salvar [esse dispositivo constitucional]. Por causa do princípio da unidade, que diz que não há dispositivos inconstitucionais dentro da Constituição, não tem como você dizer que esse artigo é inconstitucional, isso não existe no direito. Então é preciso salvar essa interpretação.

Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo

Orações antes das aulas levam pais a travar “guerra santa” em escola de Brasília

Evidentemente, os pais que reclamam estão corretos. A direção da escola está impondo suas crenças aos alunos, sob a desculpa de que é um ato de socialização e transmite bons sentimentos. Mas a "socialização" que os pregadores aceitam é somente aquela que eles fornecem, para forçar as próprias crenças (não nos esqueçamos de que Hitler também "socializava") e a "ira divina" e o "medo do inferno" estão muito longes de serem "bons sentimentos".

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Orações antes das aulas levam pais a travar “guerra santa” em escola de Brasília

19/08/2011 - 9h34

Amanda Cieglinski
Repórter da Agência Brasil

Brasília – Uma “guerra santa” foi travada entre os pais das 180 crianças de 4 e 5 anos que estudam no Jardim de Infância da 404 Norte, na região central de Brasília. Uma oração feita pelos alunos diariamente, antes do início das aulas, é o principal motivo da discórdia. De um lado está um grupo de pais que pede a exclusão de referências religiosas das atividades escolares. Do outro, os que apoiam o ritual diário e consideram que a direção da escola está sendo perseguida.

A discussão teve início quando uma denúncia sobre o assunto foi encaminhada à Ouvidoria da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Todos os dias antes das aulas os alunos se reúnem no pátio da escola para o momento chamado de acolhida. Nessa hora, são estimulados a fazer uma “oração espontânea”, como define a diretora Rosimara Albuquerque. A cada dia, crianças de uma turma ficam responsáveis por fazer os agradecimentos a Deus ou ao “Papai do Céu”. “Pode agradecer pelo parquinho, pelos colegas. Mas houve um questionamento por parte dos pais para que fosse um momento de acolhida um pouco mais amplo já que algumas famílias não comungam dessa religião, que seria basicamente cristã”, conta Rosimara, que está à frente da escola há seis anos.

Para a radialista Eliane Carvalho, integrante da Associação de Pais e Mestres do colégio, a escola está ultrapassando os limites permitidos pela legislação. Ela e outros pais que protestam contra essas atividades se apoiam no princípio constitucional da laicidade para pedir que práticas de cunho religioso fiquem de fora do ambiente escolar. Além do momento da acolhida, ela conta que notou outros sinais de violação, a partir de informações que o filho de 4 anos levava para casa.

“Não posso dizer que existem dentro da sala de aula práticas religiosas. Mas meu filho não aprendeu em casa a orar em nome de Jesus. Um dia ele me disse que o telefone para falar com Jesus era dobrar o joelho no chão”, relata Eliane.

Em resposta à denúncia, um grupo maior de pais organizou um abaixo-assinado a favor da escola e da oração no início das aulas. Alguns alegam que a diretora está sendo perseguida por ser católica e atuante em grupos religiosos. “A forma como eles [professores e direção] estão atuando não é nada abusiva ou direcionada a uma crença específica. Eles colocam a palavra de Deus, como entidade superior, e agradecem à família. São só coisas boas, frutos bons. Quem está incomodado é uma minoria”, defende Thiago Meirelles, que é católico e pai de um aluno.

Para Carolina Castro, mãe de outro estudante, a intenção da escola é positiva e busca a socialização. “Não acho que eles estejam tratando de religião em si, mas passando uma noção de agradecimento do que é precioso na vida. Não acho que isso seja ensino religioso”, diz.

Eliane Carvalho lamenta que a discussão tenha ficado polarizada. “Não é uma discussão pessoal, mas de currículo. O grupo que fez o abaixo-assinado passou a nos ver como perseguidores de cristãos, hoje somos vistos como pessoas absurdas que não querem a palavra de Deus na escola. Todos têm o direito de fazer suas orações, mas eu questiono o fato de a escola aceitar uma prática que, para mim, se configura em arrebanhar fiéis”, diz.

O momento da acolhida é feito há 40 anos, desde que a escola foi fundada, e é comum também em outros colégios da rede. Na última semana a reza foi substituída por cantigas de roda e outras atividades. “Aí, sim, parecia uma escola, antes parecia uma igreja. Como pai que tem a obrigação de dar uma orientação religiosa à filha, não posso permitir que haja divergência. O mais triste é que, apesar de essas pessoas dizerem que estão pregando o amor e o respeito, elas não têm respeito nenhum pela minha liberdade de que não haja essa interferência [religiosa]”, diz Mafá Nogueira, pai de uma aluna.

Para resolver o problema, a escola vai convocar reuniões com pais, professores, funcionários e representantes da Secretaria de Educação. “Vamos discutir como a gente pode abordar a pluralidade e a diversidade sem agredir ninguém e que todos possam sair satisfeitos. Mas essa polêmica é salutar porque, na medida em que a gente ouve questionamentos de pais que pensam diferente, isso é saudável para o crescimento. Podemos adotar uma postura diferente, estruturada no que a comunidade pensa”, avalia a diretora Rosimara, que usava no pescoço um cordão com um crucifixo enquanto conversava com a reportagem da Agência Brasil.

A Secretaria de Educação do Distrito Federal informou que desconhece problemas semelhantes em outras escolas da rede e reiterou que orienta as unidades a seguir a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que veda qualquer prática proselitista no ambiente escolar.

Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo

Intolerância religiosa afeta autoestima de alunos e dificulta aprendizagem, aponta pesquisa

Para aquelas pessoas que fingem desconhecer o óbvio (evidentemente, quando se refere aos filhos e às religiões dos outros).

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Intolerância religiosa afeta autoestima de alunos e dificulta aprendizagem, aponta pesquisa

19/08/2011 - 9h28

Amanda Cieglinski
Repórter da Agência Brasil

Brasília – Fernando* estava na aula de artes e tinha acabado de terminar uma maquete sobre as pirâmides do Egito. Conversava com os amigos quando foi expulso da sala aos gritos de “demônio” e “filho do capeta”. Não tinha desrespeitado a professora nem deixado de fazer alguma tarefa. Seu pecado foi usar colares de contas por debaixo do uniforme, símbolos da sua religião, o candomblé. O fato de o menino, com então 13 anos, manifestar-se abertamente sobre sua crença provocou a ira de uma professora de português que era evangélica. Depois do episódio, ela proibiu Fernando de assistir às suas aulas e orientou outros alunos para que não falassem mais com o colega. O menino, aos poucos, perdeu a vontade de ir à escola. Naquele ano, ele foi reprovado e teve que mudar de colégio.

Quem conta a história é a mãe de Fernando, Andrea Ramito, que trabalha como caixa em uma loja. Segundo ela, o episódio modificou a personalidade do filho e deixou marcas também na trajetória escolar. “A autoestima ficou muito baixa, ele fez tratamento com psicólogo e queria se matar. Foi lastimável ver um filho sendo agredido verbalmente, fisicamente, sem você poder fazer nada. Mas o maior prejudicado foi ele que ficou muito revoltado e é assim até hoje”, diz.

Antes de levar o caso à Justiça, Andréa tentou resolver a situação ainda na escola, mas, segundo ela, a direção foi omissa em relação ao comportamento da professora. A mãe, então, decidiu procurar uma delegacia para registrar um boletim de ocorrência contra a docente. O caso aguarda julgamento no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Se for condenada, o mais provável é que a professora tenha a pena revertida em prestação de serviços à comunidade.

Já a Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (Faetec), responsável pela unidade, abriu uma sindicância administrativa para avaliar o ocorrido, mas a investigação ainda não foi concluída. Por essa razão, a professora – que é servidora pública – ainda faz parte do quadro da instituição, “respeitando o amplo direito de defesa das partes envolvidas e o Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado do Rio de Janeiro”, segundo nota enviada pelo órgão. A assessoria não informou, entretanto, se ela está trabalhando em sala de aula.

A história do estudante Fernando, atualmente com 16 anos, não é um fato isolado. A pesquisadora Denise Carrera conheceu casos parecidos de intolerância religiosa em escolas de pelo menos três estados – Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. A investigação será incluída em um relatório sobre educação e racismo no Brasil, ainda em fase de finalização.

“O que a gente observou é que a intolerância religiosa no Brasil se manifesta principalmente contra as pessoas vinculadas às religiões de matriz africana. Dessa forma, a gente entende que o problema está muito ligado ao desafio do enfrentamento do racismo, já que essas religiões historicamente foram demonizadas”, explica Denise, ligada à Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil), que reúne movimentos e organizações da sociedade civil.

Denise e sua equipe visitaram escolas de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Ouviram de famílias, professores e entidades religiosas casos que vão desde humilhação até violência física contra alunos de determinadas religiões. E, muitas vezes, o agressor era um educador ou membro da equipe escolar.

“A gente observa um crescimento do número de professores ligados a determinadas denominações neopentecostais que compreendem que o seu fazer profissional deve ser um desdobramento do seu vínculo religioso. Ou seja, ele pensa o fazer profissional como parte da doutrinação, nessa perspectiva do proselitismo”, aponta a pesquisadora.

Alunos que são discriminados dentro da escola, por motivos religiosos, culturais ou sociais, têm o processo de aprendizagem comprometido. “Afeta a construção da autoestima positiva no ambiente escolar e isso mina o processo de aprendizagem porque ele se alimenta da afetividade, da capacidade de se reconhecer como alguém respeitado em um grupo. E, na medida em que você recebe tantos sinais de que sua crença religiosa é negativa e só faz o mal, essa autoafirmação fica muito difícil”, acredita Denise.

Para ela, a religião está presente na escola não só na disciplina de ensino religioso. “Há aqueles colégios em que se reza o Pai-Nosso na entrada, que param para fazer determinados rituais, cantar músicas religiosas. Criticamos isso no nosso relatório porque entendemos que a escola deve se constituir como um espaço laico que respeite a liberdade religiosa, mas não que propague um determinado credo ou constranja aqueles que não têm vínculo religioso algum”, diz.

*O nome foi alterado em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Em São Paulo, escolas optam por valorizar história em aulas de religião

São Paulo e Rio de Janeiro adotam posturas diametralmente opostas a respeito do "ensino religioso": a postura de São Paulo é correta, ao ser claramente contra a doutrinação. Já o Rio de Janeiro, graças à ação conjunta do clero católico e das bancadas evangélicas, está há décadas tornando-se uma teocracia.

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Em São Paulo, escolas optam por valorizar história em aulas de religião

19/08/2011 - 9h36

Vinicius Konchinski
Repórter da Agência Brasil

São Paulo - Quinta-feira, às 16h40, é hora da aula de ensino religioso em uma das quatro turmas do 9º ano da Escola Estadual Doutor Alberto Cardoso de Mello Neto, na região norte da capital paulista. A escola é uma das poucas do estado que oferecem a disciplina aos seus alunos do último ano do ensino fundamental.

A professora Miriam de Oliveira é a responsável pela aula. Historiadora e psicóloga, ela trabalha no colégio há oito anos. Há três, dá aulas do que prefere chamar de “história das religiões”. Na primeira quinta-feira do mês de agosto (4), Miriam falou para cerca de 30 alunos sobre o cristianismo.

“Por volta do ano 300, o Império Romano adotou o cristianismo como sua religião oficial”, explicou aos alunos. “A partir daí, a religião se espalhou por outros cantos do mundo e acabou chegando ao Brasil, com os jesuítas. Hoje, quase todo mundo é cristão aqui no nosso país.”

O foco na história foi a solução encontrada por São Paulo para que as lições de ensino religioso constassem dos currículos da rede pública sem privilegiar qualquer crença, conforme determina a Constituição Federal. Apesar de só os alunos do 9o ano terem aulas específicas sobre religião – isso quando há demanda dos pais –, todas as escolas estaduais trabalham o conteúdo de forma transversal, em outras disciplinas. De acordo com a Secretaria Estadual de Educação, prevalece o aspecto histórico.

Uma lei estadual e uma resolução do Conselho Estadual de Educação de 2001 normatizaram o ensino religioso no estado. Elas garantiram o espaço para a disciplina nas escolas estaduais, mas também estabeleceram exigências na formação dos professores responsáveis pelas aulas e prioridade para a correlação do ensino sobre religião com a educação regular.

“Foi bom [criar regras]”, disse a presidenta do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), Maria Izabel Noronha, que defendeu a adoção do modelo em reuniões com representantes do governo. “Sou favorável ao fortalecimento da formação humana, com conteúdo sobre história da religião, para que o aluno compreenda as diferenças entre as crenças”, justifica.

Essa fórmula, porém, não é unanimidade entre os educadores. Na opinião da coordenadora do programa de pós-graduação da Universidade Metodista e professora da Universidade de São Paulo (USP), Roseli Fischmann, o ensino religioso transversal delega responsabilidade demais aos docentes e expõe os alunos da rede pública a possíveis transgressões à Constituição.

“A Constituição diz que o Estado não pode defender nem discriminar crença nenhuma. Contudo, o professor, que representa o Estado na escola, é um ser humano”, pondera Roseli. “O ser humano tende, naturalmente, a defender sua crença.”

Para ela, o ensino religioso é um “risco que poderia ser evitado”. A professora acredita que os conceitos sobre diversidade e respeito, que são abordados nas aulas, poderiam ser repassados aos alunos em outras disciplinas que não a específica de religião.

Cecília Regina Bigatão, diretora da Escola Doutor Alberto Cardoso, discorda. Há mais de 20 anos à frente da escola, ela diz que é perceptível a diferença no comportamento dos alunos que já passaram pelas aulas de ensino religioso. “O que é a amizade, amor, está mais claro para eles.”

A diretora reconhece que é preciso ter atenção redobrada com o ensino religioso para que todas as crenças sejam respeitadas. Ela garante que esses cuidados são tomados na escola que dirige e, por isso, os resultados são muitos bons.

“Nunca tivemos uma reclamação de um pai sobre o conteúdo das aulas”, conta. “Não impomos nada às crianças. Todas são livres para ter sua religião”. Na antessala da diretoria, há um altar. Em cima dele, fica umaBíblia aberta.

Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo

Escolas brasileiras enfrentam desafio de garantir ensino religioso sem privilegiar crenças

Querem evitar dor de cabeça, aborrecimentos, discussões intermináveis e muito gasto de dinheiro? É fácil: basta acabar com essa matéria, imposta na Constituição pelas bancadas religiosas (em particular, à ligada à Igreja Católica).

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Escolas brasileiras enfrentam desafio de garantir ensino religioso sem privilegiar crenças

19/08/2011 - 9h24

Amanda Cieglinski
Repórter da Agência Brasil

Brasília – Além das operações matemáticas, das regras ortográficas e dos fatos históricos, os princípios e conceitos das principais religiões também devem ser discutidos em sala de aula. A Constituição Federal brasileira determina que a oferta do ensino religioso deve ser obrigatória nas escolas da rede pública de ensino fundamental, com matrícula facultativa – ou seja, cabe aos pais decidir se os filhos vão frequentar as aulas.

Pesquisas recentes e ações na Justiça questionam a inclusão da religião nas escolas, já que, desde a Constituição Federal de 1890,o Brasil é um país laico, ou seja, a população é livre para ter diferentes credos, mas as religiões devem estar afastadas do ordenamento oficial do Estado.

Apesar da obrigatoriedade, ainda não há uma diretriz curricular para todo o país que estabeleça o conteúdo a ser ensinado, de maneira a garantir uma abordagem plural sem caráter doutrinário. Outro problema é a falta de critérios nacionais para contratação de professores de religião. Hoje, o país conta com 425 mil docentes, formados em diversas áreas.

O ensino religioso está presente no Brasil desde o período colonial, com a chegada dos padres jesuítas de Portugal para catequizar os índios.

Atualmente, de acordo com a Constituição, a disciplina deve fazer parte da grade horária regular das escolas públicas de ensino fundamental. Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) definiu que as unidades federativas são responsáveis por organizar a oferta, desde que seja observado o respeito à diversidade religiosa e proibida qualquer forma de proselitismo ou doutrinação.

“Alguns historiadores que tratam da participação da religião na vida pública mostram que o ensino religioso foi uma concessão à laicidade à época da Constituinte. Havia uma falsa presunção de que religião era importante para a formação do caráter, da vida e dos indivíduos participativos e bons. Essa é uma presunção que discrimina grupos que não professem nenhuma religião. Isso foi uma concessão à pressão dos grupos religiosos”, avalia a socióloga Debora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB).

Debora é autora, junto com as pesquisadoras Tatiana Lionço e Vanessa Carrião, do livro Laicidade e Ensino Religioso, publicado no último semestre. O estudo investigou como o ensino religioso se configura no país e se as escolas garantem, na prática, espaços semelhantes para todos os credos, como preconiza a LDB. A conclusão é que não há igualdade de representação religiosa nas salas de aula. “Ele é um ensino cristão, majoritariamente católico, e não há igualdade de representação religiosa com outros grupos, principalmente os minoritários”, destaca Debora.

Há mais de uma década acompanhando essa discussão, o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (Fonaper) reconhece que há muitos desafios para garantir a pluralidade. Mas defende que o conteúdo é importante para a formação dos alunos. “Nós vislumbramos, desde a LDB, que o ensino religioso poderia assumir uma identidade bastante pedagógica, que fosse de fato uma disciplina como qualquer outra e que a escola pudesse contribuir para o conhecimento da diversidade religiosa de modo científico. O professor, independentemente do seu credo, estaria ajudando os alunos a conhecer o papel da religião na sociedade e a melhorar o relacionamento com as diferenças”, aponta o coordenador do Fonaper, Elcio Cecchetti.

No Rio de Janeiro, por exemplo, o ensino religioso é oferecido apenas nas escolas estaduais. Nas unidades municipais, ainda não foi implantado, mas há um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Vereadores da capital fluminense que prevê a oferta nas cerca de mil escolas da rede, com frequência facultativa. A recepcionista Jussara Figueiredo Bezerra tem dois filhos que estudam em uma escola municipal da zona sul do Rio de Janeiro e acompanha com certo receio a discussão. Ela é evangélica e acredita que esses valores devem ser transmitidos em casa, pela família.

“Quem são os professores que vão dar as aulas de religião? Será que eles serão imparciais? Além disso, com tantas dificuldades e carências que o ensino público já enfrenta, por que gastar dinheiro com isso? Esses recursos poderiam ser usados de outra forma, para melhorar a estrutura já existente nas escolas. Quem quiser aprender mais sobre uma religião deve procurar uma igreja ou uma instituição religiosa”, opina.

Para quem lida na ponta com os delicados limites dessa questão, torna-se um desafio garantir um ensino religioso que contemple as diferentes experiências e crenças encontradas em uma sala de aula. “Nós preferiríamos que a oferta do ensino religioso não fosse obrigatória porque a escola é laica e deve respeitar todas as religiões. O que a gente quer é que os dirigentes possam utilizar essas aulas com um proveito muito melhor do que a doutrinação, abordando o respeito aos direitos humanos e à diversidade e a tolerância, conceitos que permeiam todas as religiões”, defende a presidenta da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Cleuza Repulho.

Atualmente, duas ações diretas de inconstitucionalidade (Adin) questionam a oferta do ensino religioso no formato atual e aguardam julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma delas foi proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e questiona o acordo firmado em 2009 entre o governo brasileiro e o Vaticano. O Artigo 11 desse documento, que foi aprovado pelo Congresso Nacional, determina que “o ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”. Ao pautar o ensino religioso por doutrinas ligadas a igrejas, o acordo, na avaliação da PGR, afronta o princípio da laicidade.

A Agência Brasil publica hoje uma série de matérias sobre o espaço que a religião ocupa nas escolas brasileiras e a dificuldade de muitas redes de ensino de garantir uma representação plural que respeite a diversidade de crenças dos alunos.

*colaborou Thaís Leitão, do Rio de Janeiro // Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo

Laïcité républicaine


Não sei a origem dessa ilustração, mas ela é perfeita ao representar a República afirmando a laicidade. (Em todo caso, obtive-a aqui: http://www.ipolitique.fr/archive/2008/01/16/laicite-positive.html.)

15 agosto 2011

Tradução do "Discurso sobre o conjunto do Positivismo" II

Continuando do ponto em que parei antes, posto algumas páginas adicionais da tradução do "Discurso sobre o conjunto do Positivismo". Eventuais correções da tradução e/ou da digitação serão bem-vindas.

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A fraca influência da razão sobre nossa natureza imperfeita interditaria diretamente sobre o novo sacerdócio fazer respeitar suficientemente a dignidade social da verdadeira teoria e sua justa relação com a prática. Mas essa dupla solidariedade fundamental assegurar-lhe-á poderosos apoios em cada cidade, e mesmo no interior de cada família, para organizar a legítima reação moral dos pobres sobre os ricos. A educação universal fornecer-lhe-á, aliás, entre as classes dirigentes, uma assistência suplementar, por meio do acesso de seus mais nobres membros a uma espécie de nova cavalaria. Entretanto, malgrado essa vasta organização da força moral, o ascendente espontâneo de nossa personalidade encontra-se de tal modo pronunciado que a solução efetiva do grande problema humano permanecerá muito inferior aos nossos justos desejos. Essa apreciação, comum a todos os aspectos de nosso verdadeiro destino, deve somente nos encorajar mais a melhor concertar todos os nossos esforços para aperfeiçoar a ordem natural em suas disposições mais importantes, que são, por sua vez, as mais modificáveis e as mais imperfeitas.

Nosso principal progresso, tanto coletivo quanto individual, consiste em desenvolver sempre esse império que não pertence senão a nós sobre nossas próprias imperfeições, sobretudo morais. Essa tendência característica não poderia suficientemente surgir na Antigüidade, que pôde somente lhe preparar a manifestação por meio de um indispensável preâmbulo, intelectual e social. Sua destinação foi mesmo de tal modo incompatível com a posição direta da grande questão humana que ela exige sempre, ao contrário, a íntima subordinação da moral à política. Mas esse nobre fim convém tanto à nossa espécie que, desde a Idade Média, a ela tendeu abertamente, malgrado os obstáculos que oferecem ainda a insuficiente realização dessas duas condições preliminares. A doutrina dominante não estava ainda suficientemente real nem suficientemente completa, o caráter social mantinha-se muito militar e muito aristocrático para permitir então a constituição do ascendente final da moral sobre a política. Entretanto, a insuficiência necessária dessa admirável tentativa não impediu as populações ocidentais de já apreciar esse princípio fundamental, que sobreviveu após o irrevogável declínio das opiniões e dos hábitos de que ele inicialmente surgiu. Para fornecer-lhe uma preponderância decisiva, era necessário que o verdadeiro espírito filosófico, por muito tempo subordinado aos mais simples estudos, abrangesse gradualmente todo o domínio especulativo, até tornar-se plenamente sistemático, depois de sua extensão final às contemplações sociais. Ao mesmo tempo, era indispensável que a atividade industrial prevalecesse irrevogavelmente sobre a existência militar entre todas as populações preparadas pela incorporação romana e pela iniciação católico-feudal. Esse duplo preâmbulo elementar realizou-se, conjuntamente com a decomposição geral do antigo regime, durante a longa transição que nos separa da Idade Média. Uma comoção decisiva desde logo conduziu a elite de nossa espécie a retomar diretamente, sobre melhores bases mentais e sociais, o grande problema proposto por nossos pios e cavalheirescos ancestrais, para instituir enfim sua solução radical, que o Positivismo vem hoje sistematizar e formular.

Todas as fases essenciais dessa preparação coletiva exigem equivalentes na iniciação individual, espontânea ou sistemática, sob pena de insuficiência. Mas é necessário em seguida que esses diversos modos e graus da regeneração humana, além de sua íntima conexão, sejam todos conduzidos a um mesmo centro, próprio a constituir diretamente a unidade fundamental do regime definitivo. Sem essa condensação final, a sistematização positiva não saberia substituir inteiramente a sistematização teológica, malgrado a homogeneidade e a solidariedade superiores de seus elementos mais reais e mais estáveis. Ao seu princípio afetivo, à sua base racional e ao seu fim objetivo, o Positivismo deve então juntar um centro único, que abranja ao mesmo tempo o sentimento, a razão e a atividade. Tal é a última condição de seu ascendente decisivo, tanto privado quanto público.

Ela encontra-se inteiramente realizada pela convergência natural de todos os aspectos positivistas na grande concepção da Humanidade, que vem eliminar irrevogavelmente a de Deus, para constituir uma unidade definitiva mais completa e mais durável que a unidade provisória do regime inicial. A extensão e a aplicação da nova doutrina general tornar-se-ão assim acessíveis a todos os corações e, em conseqüência, a todos os espíritos, evitando hoje um longo e difícil preâmbulo científico, que permanece somente indispensável a seus órgãos sistemáticos.

Conforme sua natureza mais moral que mental, tal centro universal do Positivismo representa da mesma forma o princípio afetivo da sistematização final. Pois o caráter próprio desse novo Grande Ser consistindo em ser necessariamente composto por elementos separáveis, toda a sua existência repousa sobre o amor mútuo que liga sempre suas diversas partes, sem que qualquer cálculo possa jamais substituir um tal instinto.

A essa preponderância direta do sentimento social corresponde o desenvolvimento contínuo do espírito de conjunto, o único que permite conceber o concurso espontâneo de que resulta esse imenso organismo, fazendo abstração de todos os conflitos parciais. A razão participa então como o amor dessa condensação final. Por outro lado, somente ela completa a noção do verdadeiro Ser Supremo, ao desvendar todas as condições, exteriores e interiores, de sua existência real.

Mas a atividade não é menos inerente que o sentimento e a razão à natureza da unidade positivista. Pois o organismo mais completo deve, mais que qualquer outro, reagir sem cessar sobre o meio correspondente, para modificá-lo subordinando-se a ele. Daí resulta o progresso necessário, que não é nunca que o desenvolvimento da ordem emanada do amor.

A Humanidade condensa então diretamente as três características essenciais do Positivismo, seu motor subjetivo, seu dogma objetivo e seu fim ativo. Somente a esse verdadeiro Grande Ser, de que nós somos conscientemente os membros necessários, referem-se doravante todos os aspectos de nossa existência, individual ou coletiva, nossas contemplações para conhecê-la, nossos afetos para amá-la e nossas ações para servi-la.

Eis como os positivistas podem, melhor que os teológicos quaisquer, conceber a vida como um verdadeiro culto, tão íntimo quanto usual. Esse culto contínuo da Humanidade exaltará e purificará todos os nossos sentimentos; engrandecerá e esclarecerá todos os nossos sentimentos; enobrecerá e consolidará todos os nossos atos. O grande problema da Idade Média aí se encontra diretamente resolvido tanto quanto possível, pois a subordinação da política à moral resulta necessariamente de uma preponderância sagrada da sociabilidade sobre a personalidade.

É assim que o Positivismo torna-se enfim uma verdadeira religião, a única completa e real, destinada a prevalecer sobre todas as sistematizações imperfeitas e provisórias que emanaram do teologismo inicial.

A unidade das teocracias antigas foi ela mesma insuficiente, pois sua natureza puramente subjetiva não pôde jamais abranger plenamente a existência prática, sempre subordinada à realidade objetiva. Limitada ao sentimento e à razão, essa sistematização primitiva perdeu logo uma notável parte de seu domínio intelectual, quando o espírito estético libertou-se irrevogavelmente da tutela teocrática, por melhor se adaptar à vida real, seguindo sua vocação espontânea. Mantidos ainda como os únicos árbitros da ciência e da moral, os padres viram em seguida decrescer bastante sua autoridade teórica, assim como o desenvolvimento abstrato das menores concepções positivas permitiu o nascimento da filosofia propriamente dita. Ainda que ela não pôde então ser senão metafísica, ela tendia já a uma sistematização antissacerdotal, que, sem comportar nenhuma eficácia orgânica, arruinou o politeísmo e terminou por transformá-lo em monoteísmo. Nesse modo extremo da teologia, a autoridade especulativa do sacerdócio foi tão radicalmente alterada quando o princípio de sua doutrina. Os padres perderam então o ascendente científico, como perderam no início o ascendente estético. Eles conservaram somente uma supremacia moral, logo comprometida pela emancipação intelectual, de que o espírito positivo constitui a fonte real, ainda que o espírito metafísico tenha-lhe servido então de órgão sistemático.

Quando a ciência cresceu o suficiente para separar-se também da filosofia, ela não tardou a manifestar sua tendência necessária em direção a uma nova unidade especulativa, não menos contrária a toda metafísica que a toda teologia. Essa construção final, naturalmente sujeita a uma lenta sucessão de preâmbulos que as duas outras não exigiam, conduzia além disso o espírito científico a sistematizar a vida ativa, de que ele emana espontaneamente, à medida que dominava o domínio especulativo. Mas esse duplo ascendente não podia completar-se senão pela recente fundação da verdadeira ciência social, constituída enfim por minha teoria histórica. Desde então, os verdadeiros cientistas [savants], elevando-se à dignidade filosófica, tendem necessariamente ao caráter sacerdotal, pois essa elaboração final conduz à preponderância sistemática do princípio afetivo, de que resulta logo uma construção completa tanto quanto homogênea. Assim erigidos em padres da Humanidade, os novos filósofos devem obter um ascendente, intelectual e moral, mais estendido e enraizado que o do sacerdócio antigo. Sua exclusão necessária de toda autoridade temporal torna-se a condição fundamental dessa supremacia espiritual, para garantir a divisão sistemática entre a teoria e a prática. Nenhuma degeneração teocrática é possível em um regime em que o conselho e o comando não podem nunca emanar dos mesmos órgãos.

Conforme essa inteira renúncia à grandeza e à riqueza, individuais ou mesmo coletivas, os padres da Humanidade poderão obter uma incomparável dignidade, ao reunirem o ascendente intelectual, tanto estético quanto científico, e o ascendente moral, sempre separados depois da extinção das teocracias. A razão, a imaginação e o sentimento combinar-se-ão assim para modificar profundamente o império necessário da atividade prática, segundo as verdadeiras leis da moral universal, de que ele [o império da atividade prática] tende sempre a separar-se. Esse novo poder moderador adquirirá tanto mais influência quanto sua sistematização terá precedido e preparado o desenvolvimento direto do regime definitivo; ao passo que o teologismo não tendeu à unidade senão na época de seu declínio. O sacerdócio positivo deve então regenerar ao mesmo tempo todas as funções relativas ao nosso próprio aperfeiçoamento, destinando a ciência a estudar a Humanidade, a poesia a cantá-la e a moral a amá-la, a fim de que, com base nesse irresistível concurso, a política aplique-se sem cessar a servi-la.

Uma tal missão fornece à ciência real uma grandeza e uma consistência que não há iguais, pois somente ela faz-nos conhecer a natureza e a condição do verdadeiro Grande Ser, cujo culto completo deve caracterizar toda nobre existência. Ainda que essa determinação fundamental não pareça exigir senão estudos sociológicos, ela repousa necessariamente sobre um duplo preâmbulo lógico e científico, relativo, inicialmente, ao mundo exterior e em seguida ao homem individual, a fim de apreciar o meio e o agente desses eminentes fenômenos.

O culto dos positivistas não se dirige, como o dos teologistas, a um ser absoluto, isolado, incompreensível, cuja existência não comporta nenhuma demonstração e que rejeita toda comparação real. Nenhum mistério deve alterar a evidência espontânea que caracteriza o novo Ser Supremo. Ele não será dignamente cantado, amado e servido senão após um suficiente conhecimento das diversas leis naturais que regem sua existência, as mais complicadas que podemos contemplar.

De acordo com essa complicação superior, ele oferece, mais ainda que qualquer outro organismo, esse duplo atributo de solidariedade interior e de subordinação exterior que pertence a todo corpo vivo. Malgrado sua imensa extensão no tempo e no espaço, a exata apreciação de cada um de seus fenômenos manifesta-nos seu consenso universal. Sua existência é também a mais dependente da necessidade exterior, resultante, em relação a cada ser real, do conjunto das leis inferiores. A todas as fatalidades ordinárias, matemáticas, astronômicas, físicas, químicas e biológicas, vêm então se juntar as fatalidades sociológicas, estrangeiras às naturezas menos eminentes. Mas, por uma última conseqüência geral de sua complicação característica, esse grande organismo reage necessariamente mais que qualquer outro sobre o conjunto do mundo real, de que ele é o verdadeiro chefe. Sua definição científica parece então se reduzir a concebê-lo como o ser verdadeiramente supremo, que manifesta mais todos os principais atributos da vitalidade.

Mas uma última característica essencial, que não pertence senão a si mesma, deve completar sua noção fundamental, ao apreciar sistematicamente a independência necessária de seus próprios elementos. Enquanto as diversas partes de qualquer outro organismo não saberiam viver isoladamente, a grande existência compõe-se de vidas realmente separáveis. Ainda que essa independência não impeça o consenso, ela também é tão indispensável quanto o concurso para a natureza de um tal ser, que perderia toda sua superioridade se seus elementos tornassem-se inseparáveis. A dificuldade de conciliar essas duas condições igualmente fundamentais explica suficientemente a lentidão dessa suprema evolução. Entretanto, o novo Grande Ser não supõe, como o antigo, uma abstração puramente subjetiva. Sua noção resulta, ao contrário, de uma exata apreciação objetiva; pois o homem, propriamente dito, não existe senão no cérebro mais abstrato de nossos metafísicos. No fundo, não há nada de real senão a humanidade, ainda que a complicação de sua natureza tenha-nos interdito até aqui de sistematizar sua noção, termo necessário de nossa iniciação científica. Essa última apreciação conduz a completar a concepção sistemática do Ser Supremo, distinguindo duas ordens de funções elementares, umas de atividade, outras de ligação. Com efeito, não há nela nada de diretamente ativo senão as partes separáveis; mas a eficácia de suas operações depende de seu concurso, espontâneo ou concertado. Um tal organismo supõe então ao mesmo tempo funções exteriores, essencialmente relativas à sua existência material, e funções interiores, especialmente destinadas a combinar seus elementos móveis. Ora, essa indispensável divisão reduz-se, no fundo, a estender até ao organismo coletivo a grande teoria do incomparável Bichat sobre a distinção das duas vidas, de nutrição e de relação, em todo organismo individual. É aí que é necessário obter a verdadeira fonte sistemática da separação normal dos dois poderes sociais. O poder Temporal, o único diretor, emana da personalidade e desenvolve a atividade, do que resulta a ordem fundamental; ao passo que o poder Espiritual, puramente moderador, representa imediatamente a sociabilidade e institui o concurso, que determina o progresso. Assim, na concepção do Grande Ser, o primeiro corresponde ao aparelho nutritivo e o segundo ao aparelho nervoso do organismo individual.

O conjunto desse estudo estático permite em seguida à ciência apreciar diretamente a existência dinâmica correspondente, conforme minha teoria fundamental da evolução humana, como exporá o terceiro volume deste tratado. Nosso Grande Ser não é mais imóvel nem absoluto; sua natureza relativa torna-o eminentemente passível de desenvolvimento: em uma palavra, ele é o mais vivo dos seres conhecidos. Ele estende-se e compõe-se mais e mais pela sucessão contínua das gerações humanas. Mas suas mutações necessárias são tão sujeitas quanto suas funções fundamentais a leis invariáveis. Seu conjunto, doravante apreciável, constitui um espetáculo mais imponente que a sublime inércia do antigo Ser Supremo, cuja existência passiva não era suspensa senão por inexplicáveis caprichos. Assim, somente a ciência real pode fazer-nos apreciar esse destino preponderante, que domina e envolve todos os nossos. Como a respeito dos menores fenômenos, é ao estudo sistemático do passado que pertence a determinação do porvir para caracterizar o presente. Da concepção normal do Grande Ser, passamos então à história de sua formação contínua, cujo conjunto resume todos os progressos quaisquer. Sua noção era incompatível, na Antigüidade, seja com o ascendente do espírito teológico, seja com o desenvolvimento da atividade guerreira, fundada sobre a escravidão dos produtores. Somente a pátria, mesmo muito restrita inicialmente, podia constituir então o prelúdio necessário da Humanidade. Sob essa nacionalidade primitiva, surgiu, na Idade Média, o sentimento da fraternidade universal, de acordo com o caráter defensivo da nova atividade militar e da livre concentração das crenças sobrenaturais em um monoteísmo comum a todo o Ocidente. O desenvolvimento dos hábitos cavalheirescos e o primeiro esboço de uma separação normal entre os dois poderes elementares, anunciaram já a elaboração direta do grande organismo, proclamando a subordinação da política à moral. Mas a natureza quimérica e egoísta das crenças dominantes, assim como o caráter militar e aristocrático desse regime transitório, não permitiram então outra preparação imediata que a indispensável abolição de toda escravidão pessoal, principal resultado dessa grande época. Os hábitos industriais tendo assim começado a prevalecer, o sentimento de fraternidade pôde apoiar-se sobre uma atividade verdadeiramente universal. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento decisivo da positividade racional preparou a elaboração final da ciência social, a única capaz de sistematizar tais preparações, para construir diretamente a noção do verdadeiro Grande Ser. Essa concepção foi inicialmente tornada sistemática quanto às funções especulativas, sobretudo científicas, que suscitaram, faz dois séculos, a primeira fórmula relativa a esse imenso e eterno organismo[1]. Ao longo da indispensável dissolução do sistema teológico e militar, a evolução moderna fez em seguida surgir, com base nas suas diversas preparações orgânicas, a noção real do progresso contínuo que caracteriza essa vida coletiva. Mas a concepção da Humanidade não pôde constituir uma nova unidade fundamental senão após o estremecimento decisivo que, de uma parte, manifestou a urgência de uma regeneração universal e, de outra parte, suscitou a filosofia capaz de sistematizá-la. É assim que a contemplação do Grande Ser acompanha sempre sua formação gradual. Sua concepção atual resume tanto o conjunto de nossas preparações sociais quanto o de nossas especulações positivas.

Ao caracterizar assim a consagração direta da ciência regenerada, seria supérfluo insistir aqui na dignidade que ela fornece ao seu indispensável preâmbulo inorgânico e biológico, desde então intimamente anexado ao dogma final. As partes mais inferiores recebem dessa forma uma augusta destinação social, seja com base em sua superioridade lógica, seja em virtude de sua necessidade científica. É verdade que a religião da Humanidade exige hoje a abolição radical do regime acadêmico, como sendo ao mesmo tempo imoral e irracional, sobretudo na França. Esse duplo perigo resulta, com efeito, entre os geômetras, de sua cega limitação ao simples começo da iniciação positiva; entre os biólogos, de um tendência empírica a instituir seus estudos sem base e sem destinação sistemáticos. O bom senso e a moral proscreverão logo toda especialidade teórica que não seja concebida e cultivada de acordo com as vistas enciclopédicas, próprias a vinculá-la sempre ao conjunto de nossa existência. Não se pode conter de outra forma o idiotismo e o egoísmo, já demais desenvolvidos, que suscitam necessariamente a anarquia atual. Mas essa indispensável depuração assegurará em seguida a consagração pública de todos os verdadeiros trabalhos científicos, mesmo a respeito dos menores objetos. Assim corrigidos de sua desastrosa secura, os estudos matemáticos manifestarão sempre sua secreta aptidão moral, como as únicas reais de convicções verdadeiramente inabaláveis, que não saberiam obter nas altas especulações aqueles que não saibam obtê-las nas mais simples. Quando a íntima conexão de todas as nossas concepções encontrar-se assaz apreciada, o Grande Ser afastará tanto o publicista que se mantém estrangeiro à geometria quanto o geômetra que desdenha da Sociologia. Da mesma forma, purificados de seu perigoso materialismo, os estudos biológicos adquirirão desde então a imponente grandeza devida às teorias preliminares mais próximas da ciência final e as mais próprias a preparar o dogma fundamental. O espírito que aspirava a compreender o Ser Supremo sem ter de início apreciado as vitalidades inferiores não seria menos censurável que aquele que se recusava a vincular a Biologia à sua única destinação normal. Tornados indispensáveis às demonstrações morais e dignamente subordinadas às inspirações do coração, todos os sãos estudos científicos encontrar-se-ão doravante ligados profundamente ao sacerdócio da Humanidade. O reino do verdadeiro sentimento desenvolverá o impulso da reta razão [droite raison], que, por seu turno, consolidá-la-á por uma sanção sistemática. Além de sua evidente necessidade para regularizar a atividade espontânea do Grande Ser, a filosofia natural tende imediatamente a aperfeiçoá-la, ao tirar do exterior a única base de fixidez que comporta o conjunto de nossas afeições.

Irrevogavelmente votada ao estudo, direto ou indireto, da Humanidade, a ciência assumirá doravante um caráter verdadeiramente sagrado, como fundamento sistemático do culto universal. Somente ela pode fazer-nos bem conhecer, não somente a natureza e a condição do Grande Ser, mas também seus destinos e suas tendências sucessivas. Nesse sacro ofício, cuja imensa dificuldade exige a combinação habitual de todas as nossas forças especulativas, nossos menores procedimentos científicos enobrecer-se-ão por seu vínculo permanente com as mais altas funções. A precisão escrupulosa e a austera circunspecção do método positivo, que parecem tão geralmente pueris em sua aplicação ociosa, serão então respeitadas e recomendadas como garantias indispensáveis à eficácia de uma elaboração relativa às nossas principais necessidades. Sentir-se-á que, longe de ser incompatível com o verdadeiro sentimento, a verdadeira racionalidade pode concorrer bastante para consolidá-lo e desenvolvê-lo, ao manifestar melhor todas as relações reais, sobretudos sociais.

Mas qualquer imponente grandeza que a ciência regenerada deva assim receber do novo culto, este fornecerá à poesia uma consagração ainda mais direta e mais completa, assinalando-lhe uma destinação mais ativa e mais familiar. Daqui por diante votado a cantar a Humanidade, o gênio estético sentir-se-á diretamente chamado à sua missão natural, de que todo o seu desenvolvimento anterior não constitui senão seu prelúdio necessário, quase sempre realizado com impaciência pela arte, que escapou antes da ciência do jugo teocrático. Ele não aceita francamente senão o regime politeico, que lhe permite idealizar livremente todos os nossos sentimentos elementares, para representar os deuses ingenuamente conforme o tipo humano. Secretamente rebelde à concentração monotéica, que não lhe deixa senão um papel demasiado subalterno, ele tendeu, após o fim da Idade Média, a apoderar-se enfim de seu verdadeiro domínio, subordinado até então a tenebrosas quimeras. O culto do verdadeiro Grande Ser abrir-lhe-á rapidamente uma carreira inesgotável, chamando-o sobretudo a idealizar nossa existência coletiva, de que a Antigüidade não pôde oferecer-lhe senão um fraco esboço, pouco favorável à alta poesia.

De início, a arte deve participar bastante da construção direta do tipo fundamental, sob a única condição de conformar-se sempre aos grandes dados científicos. Pois a ciência não pode determinar assaz a natureza e o destino do novo Ser Supremo para satisfazer as necessidades de um culto cujo objeto deve conceber-se com clareza a fim de que se possa amá-lo sem esforço e servi-lo com ardor. Pertence ao gênio estético preencher, a esse respeito, as inevitáveis lacunas que deixa o gênio científico, sempre contido nos estreitos limites da realidade, sobretudo em um tal assunto. Seu próprio caráter dispõe-no a representar melhor o da humanidade, pois a arte participa dela mais que a ciência. A independência e o concurso, cuja combinação distingue o Grande Ser de todas as outras vitalidades, constituem também os atributos espontâneos da poesia. Ainda que sua natureza seja mais simpática que a da ciência, suas produções são entretanto as mais individuais de todas, aquelas em que o gênio próprio de cada compositor encontra-se mais marcado, pois ele deve menos a seus predecessores e a seus contemporâneos. Assim, a síntese fundamental que inaugurará o culto final convém mais à arte que à ciência, que lhe fornecerá somente uma base indispensável. A poesia terá aí ainda mais parte que na elaboração primitiva dos tipos politeicos, em que sua cooperação tão vangloriada foi mais aparente que real e reduziu-se, no fundo, a ornar os mitos construídos por uma teocracia obscurecida. Somente ela possibilitará pôr-nos no verdadeiro ponto de vista humanista, ao fazer-nos sentir dignamente todos os atributos essenciais do Grande Ser que nós compomos. Ela cantará fase por fase sua força material, seu melhoramento físico, seu progresso intelectual e sobretudo seu aperfeiçoamento moral. Antipática a toda análise, a arte explicar-nos-á a natureza e a condição da Humanidade ao representar-nos seu verdadeiro destino, sua luta contínua contra uma dolorosa fatalidade, tornada uma fonte de felicidade e de glória, sua lenta evolução preliminar e suas altas esperanças vindouras. Somente a história do amor universal, alma necessária do novo Grande Ser, forneceria à poesia regenerada um objeto inesgotável, para representar, no indivíduo e sobretudo na espécie, a admirável progressão que nos eleva gradualmente à mais pura ternura, partindo entretanto de um brutal apetite.

Esse grande ofício estético assumirá geralmente uma forma comparativa, que caracterizará a superioridade do novo culto, sem exigir nenhuma crítica especial sobre o antigo. Para melhor indicar os principais atributos do verdadeiro Grande Ser, a arte será freqüentemente conduzida, sobretudo no começo, a opor-lhe a imperfeição necessária de seus diversos precursores. A natureza absoluta, indefinida e imutável dos tipos teológicos não permitiu nunca conciliar suficientemente neles as condições essenciais de bondade, sabedoria e força, cuja combinação não se torna inteligível para nós senão em uma existência real, sujeita a leis insuperáveis. O monoteísmo substituiu os deuses ativos e simpáticos, mas sem dignidade e sem moralidade, por uma divindade tanto inerte e impassível quanto impenetrável e inflexível, ainda que sempre majestosa. Conforme a realidade que caracteriza o novo Ser Supremo, sua natureza relativa e modificável permite-nos uma apreciação mais completa e sobretudo mais apta a elevar-nos sem cessar de dominar-nos. Cada um sente nele um superior, de que depende, a todos os respeitos, o seu próprio destino, sempre subordinado à evolução coletiva. Mas essa dominação não nos anula como a antiga onipotência, pois cada digna individualidade reconhece-se, por sua vez, como indispensável para o grande organismo. Ele não é supremo senão por nosso concurso e seu ascendente é superior às outras existências conhecidas. Nenhum terror degradante atrapalha nosso amor por ele e, todavia, ele inspira-nos sempre uma sincera veneração. Longe de supô-lo perfeito, nós estudamos com cuidado suas imperfeições naturais, a fim de corrigi-las tanto quanto possível. Nós amamo-lo com uma afeição tão nobre quanto terna, que, em vez de uma vergonhosa adulação, inspira uma ativa solicitude de aperfeiçoamento. Mas todas essas vantagens do novo culto, indicadas no começo pela filosofia, não podem ser suficientemente desenvolvidas senão pela poesia. Já Goethe, e sobretudo Byron, pressentiram a grandeza moral do homem libertado de toda quimera opressiva. Todavia, eles não puderam chegar assim senão a tipos insurrecionais, em conformidade com seus ofícios revolucionários. É necessário sair do estado negativo em que seus gênios ficaram retidos por sua situação e elevar-se à contemplação positiva do conjunto das leis naturais, sobretudo sociológicas, para cantar dignamente o novo homem em presença do novo deus.

Enfim, a missão sacerdotal da arte regenerada desenvolver-se-á sob uma terceira forma geral, ao presidir o sistema de festas, públicas ou privadas, que constituirá a maior parte do culto propriamente dito. Para um tal ofício, os padres da Humanidade deverão, com efeito, aplicar mais sua aptidão estética que seu talento científico. Afinal, essa imensa função deve, no fundo, consistir em manifestar melhor a natureza, estática e dinâmica, do grande organismo, por meio da idealização de suas diversas características.

Será necessário, então, instituir duas sortes de festas, relativas aos dois atributos necessários do ser fundamental, celebrando-lhe tanto a existência quanto a atividade, de modo a desenvolver os dois elementos indispensáveis do verdadeiro sentimento social. As festas estáticas manifestarão a ordem e estimularão o instinto de solidariedade; as festas dinâmicas caracterizarão o progresso, para fazer sentir melhor a continuidade. Nesse duplo complemento periódico da educação universal, todos os princípios que ela terá proposto serão desenvolvidos e consolidados, ainda que sem nenhuma intenção didática, sempre contrária ao verdadeiro gênio da arte, que não deve instruir senão embelezando. Por outro lado, a fixidez natural de tais solenidades não impedirá jamais o sacerdócio positivista de combiná-las oportunamente, em aplicações especiais aos principais incidentes de cada situação real.

As festas da ordem serão necessariamente menos concretas e mais austeras que as do progresso. Elas deverão caracterizar a solidariedade estática do grande organismo, conforme as diversas funções fundamentais do amor que o anima. A mais geral e mais augusta será, então, a da Humanidade, que, em todo o Ocidente, iniciará dignamente cada novo ano, ao regularizar a única tendência universal que embeleza ainda nossa prosaica existência. Essa solenidade inicial será concernente diretamente à mais vasta solidariedade, de modo a dedicar um a todos os ramos de nossa espécie. Ela poderá completar-se, no mesmo mês, por três festas secundárias, relativas aos graus inferiores de associação, a nação, a província e a cidade. A essa primeira celebração direta do vínculo social, suceder-se-ão, no começo de cada um dos quatro meses seguintes, as das quatro relações de família, o casamento, a paternidade, a filiação e a fraternidade, completadas, no mês seguinte, por uma justa glorificação da domesticidade propriamente dita.

Esse sistema estático representará ao mesmo tempo a verdadeira teoria da nossa natureza, tanto coletiva quanto individual, e o conjunto correspondente da sã moral. Os impulsos puramente pessoais, malgrado sua preponderância, não devem figurar nele distintamente, pois um tal culto é sobretudo destinado a melhor subordiná-los aos instintos simpáticos. Ainda que a educação positiva conceda grande importância às virtudes correspondentes, elas não merecem uma celebração especial, que conduziriam ao egoísmo. Elas devem ser glorificadas apenas indiretamente, em todas as partes do culto humanista, conforme sua influência real sobre os afetos generosos. Daí que não resulta, então, nenhuma verdadeira lacuna no quadro estético de nossos atributos e de nossos deveres. Esse quadro não exige u’a manifestação mais especial da subordinação necessária do Grande Ser ao conjunto do mundo exterior. Com efeito, essa necessidade fundamental faz-se sentir em toda parte, seja que se celebre nossas inclinações que ela regula, seja nossas especulações que ela determina, seja nossa atividade que ela impõe. Apenas a periodicidade de nossas solenidades segundo os movimentos do astro que nos conduz lembra suficientemente nossa invencível subordinação às fatalidades exteriores.

Quanto às festas dinâmicas, destinadas a celebrar o progresso, seu conjunto deve representar a história como o outro [faz com] a moral. O culto estético da Humanidade torna-se aí mais concreto e mais animado, consistindo sobretudo em glorificar os melhores tipos individuais das diversas fases da grande evolução. Entretanto, também é necessário que os principais graus da progressão social sejam abstratamente celebrados, independentemente de toda comemoração pessoal. Ao consagrar-lhes os meses que sobraram do culto estático, quatro festas eqüidistantes glorificarão as três grandes fases do passado, fetíchico, politeico e monoteico, para levar à festa do porvir, termo normal de uma tal celebração.


[1] Referência à sugestão de Blaise Pascal (1623-1662) de considerar a Humanidade como um único indivíduo que se desenvolve ao longo do tempo (nota do tradutor).