20 outubro 2008

Problemas do Estado laico brasileiro: a Universidade (Confessional) Federal do Paraná


(Uma versão bastante resumida deste artigo foi publicada na Gazeta do Povo em 28.10.2008; cf. aqui.)




Para iniciar este artigo, convido o leitor a considerar as seguintes situações:
  1. Em um final de semana em Curitiba, vou a um supermercado e sou abordado por servidores de uma universidade paranaense pedindo doações para o hospital universitário; ao fazer minhas compras, procuro colaborar com a campanha e separo feijão e leite mas, ao entregar as doações, sou saudado com um “deus lhe pague”.
  2. Cotidianamente os servidores dessa mesma universidade usam o serviço institucional de correio eletrônico para fazerem propaganda religiosa ou tendo versículos bíblicos com assinatura institucional.
  3. Comissões internas de caráter técnico-administrativo iniciam ou terminam seus relatórios rogando a deus seus favores.
  4. Tendo que usar os serviços do hospital universitário, ao sair fui presenteado por servidores dessa universidade com alguns folhetos explicativos, entre os quais se encontrava um papel com alguns versículos bíblicos, explicando como deus é bom.
  5. Na biblioteca dos cursos das Ciências Naturais e das Engenharias, logo na entrada, em uma mesa em destaque e decorada com uma toalha de renda e um ramo de trigo, há uma grande bíblia, aberta em um “capítulo edificante”.
  6. Na biblioteca dos cursos de Ciências Humanas, sozinho em uma parede e com grande destaque, há um crucifixo com cerca de um metro de comprimento, belamente entalhado.
  7. Nos corredores do prédio que abriga os cursos de Ciências Humanas há vários cartazes em que se lê: “Missa”, “Culto”, “Encontre Jesus”.
  8. Para comemorar o cinqüentenário da Capela Universitária, a Reitoria da universidade encomendou uma missa e deu grande destaque a esse evento.
  9. Ao perguntarmos se essas situações são corretas, as respostas que ouvimos são no sentido de que isso é correto, ou que “sempre foi assim”, ou recebemos um raivoso descaso.
O leitor deve pensar que se trata ou de uma universidade católica ou de alguma outra instituição confessional de ensino superior. No entanto, todas as situações descritas acima são verídicas e ocorrem na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Além disso, todas elas são absolutamente corriqueiras, ou seja, estão longe de serem exceções ou de serem fatos isolados. Aliás: elas são corriqueiras em inúmeras outras universidades e outras instituições públicas do Brasil, de tal sorte que a UFPR é apenas um exemplo de uma situação generalizada no Estado brasileiro.

E daí que essas situações ocorrem na UFPR? Daí que a UFPR é uma instituição laica, que não professa nem pode professar nenhuma crença religiosa. Isso significa que a Universidade não pode ostentar crucifixos nem colocar bíblias para “reflexão pública” nas bibliotecas ou em qualquer outro recinto; também significa que a Universidade não pode encomendar missas ou cultos religiosos para o que quer que seja; também significa que os servidores da Universidade não podem referir-se a deus ou a suas crenças pessoais enquanto estiverem trabalhando na Universidade ou estiverem representando-a. As universidades particulares ou as confessionais têm total liberdade para exprimirem as crenças que lhes aprouverem, das maneiras que considerarem corretas: essa é uma possibilidade que as universidades públicas, entretanto, não possuem. Por que não?

Porque as universidades públicas integram o Estado brasileiro e o Estado brasileiro é laico, ou seja, não tem crença nenhuma. Há quem afirme, com bastante maldade, que o Estado laico é um “Estado ateu”, mas isso é falso. O Estado laico estaria mais para “Estado agnóstico”: afinal, o ateísmo consiste em negar deus, o que equivale a assumir uma posição religiosa, ao passo que o “Estado agnóstico” seria aquele que não decide a respeito das crenças individuais e, portanto, nesse sentido, não assume nenhuma perspectiva.

O princípio da laicidade do Estado é tão simples de enunciar quanto, à primeira vista, difícil de praticar. Como vimos, ele consiste simplesmente em que o Estado não tem religião, o que equivale dizer que as estruturas políticas e burocráticas – os órgãos públicos, em outras palavras – não podem beneficiar nenhuma religião nem podem professar nenhuma fé.

A crença religiosa dos cidadãos brasileiros é matéria de foro íntimo, não de foro público. Isso tem uma conseqüência muito clara e direta para o que se refere ao Estado: nem os servidores públicos nem os ocupantes de cargos públicos podem referir-se às suas crenças íntimas enquanto estiverem no exercício de suas funções. Afinal de contas, enquanto estão no exercício de suas funções, esses cidadãos referem-se ao conjunto da coletividade, isto é, a todos os brasileiros, e não apenas aos membros de suas próprias igrejas[1].

Embora a laicidade baseie-se em uma negação – a proibição de o Estado professar qualquer crença –, os benefícios que ela traz são enormes; na verdade, o Estado laico é o garantidor das liberdades que podemos chamar, sem margem para dúvidas, de liberdades verdadeiramente fundamentais, que são as de pensamento e de expressão: sem elas, ou seja, sem que seja possível a cada indivíduo pensar por si próprio e dizer o que pensa sem medo de retaliação, nenhuma outra liberdade é possível e a cidadania torna-se apenas uma palavra.

O Estado laico não é uma instituição gratuita. Isso quer dizer que ele não é nem fruto do acaso nem que não ele não tem valor – nem, além disso, que ocorra sem custos.

Ele começou a ser praticado e teorizado quanto as guerras motivadas pelas religiões cessaram na Europa, no século XVII. Até então, ser cidadão de um país equivalia a professar uma crença específica; a partir de então, que cada cidadão devia ao seu governo obediência às leis, mas não necessariamente devia seguir a mesma religião que seu governante. Foi mais ou menos nessa época que as religiões tornaram-se tema de foro íntimo, ficando no foro público os temas propriamente políticos[2]. Ainda assim, apenas no transcurso das revoluções Americana e Francesa, no final do século XVIII, é que surgiram os primeiros estados completamente laicos, em que o Estado não obriga os cidadãos a seguir nenhuma religião porque o próprio Estado não professa nenhuma religião.

No Brasil, o Estado laico foi instituído em 1890, com a proclamação da República, contra o privilégio que a Igreja Católica possuía como religião oficial. Com Benjamin Constant à frente, os participantes da proclamação buscavam uma sociedade de liberdades, com desenvolvimento e justiça social. Nos Estados Unidos, a separação entre a Igreja e o Estado foi uma solução de compromisso, pois não se determinou nenhuma religião como oficial porque não houve acordo a respeito de qual seria a melhor: aqui, ao contrário, consagrou-se desde o início como princípio norteador do Estado republicano que a garantia fundamental para as liberdades seria o Estado não possuir nenhuma religião.

Os fundadores da UFPR tinham exatamente os mesmos valores: há quase um século, ao criarem em 1912 a então Universidade do Paraná, Benjamin Lins, Victor Ferreira do Amaral e, mais do que todos, Nilo Cairo queriam desenvolver a sociedade paranaense em termos materiais, intelectuais e morais por meio dos estudos de nível superior. Juntamente com esses valores fundamentais, tinham clareza de que a separação entre a Igreja e o Estado é uma condição fundamental para que qualquer sociedade progrida. Não seria exagero dizer que eles tinham horror à idéia de um Estado que patrocinasse ou permitisse em seu interior práticas religiosas – mas, detalhe: práticas religiosas no e pelo Estado, mas não na sociedade.

Como dissemos, a laicidade não ocorre sem custos. Qual o seu custo? É este: cada indivíduo e cada igreja deve limitar suas ações no que se refere ao Estado, no sentido de respeitar a laicidade: não impor sua crença ao Estado nem usar o Estado para impor sua crença. No que se refere às igrejas, como há um aspecto institucional, é mais simples de perceber quando ocorre a sua interferência, mas no que se refere aos indivíduos a fiscalização da sociedade é bem mais difícil. Ainda assim, é necessário formular sem rodeios como deve ocorrer a autolimitação da parte dos indivíduos.

De maneira bastante direta: os indivíduos que atuam no Estado têm que ter claro que, como servidores ou agentes públicos, não podem professar nenhuma religião: não podem falar em deus, não podem distribuir panfletos de caráter religioso, não podem exibir símbolos religiosos em seus ambientes de trabalho. Isso pode parecer um esforço muito grande, mas não é – e por dois motivos.

Em primeiro lugar, quando um cidadão comum vai a uma repartição pública e vê um servidor público falando em deus, portando símbolos religiosos ou distribuindo panfletos com esse teor, o que o cidadão percebe não é um outro cidadão manifestando sua fé particular, mas o Estado como um todo, representado pelo servidor, demonstrando sua adesão a determinados princípios religiosos. Em outras palavras, o cidadão comum verá que as autoridades beneficiam uma crença e, portanto, afirmam que essa crença é a “correta” para ser seguida. Não há dúvidas de que essa é uma forma de constrangimento, de imposição de crenças, de opressão.

O segundo motivo porque a autocontenção de servidores e agentes públicos não exige um grande esforço ou não é muito pesada é o seguinte. Imagine-se um trabalhador no mercado de trabalho: ao ingressar em qualquer emprego, ele submete-se a uma disciplina específica – a um código de conduta. São regras escritas e não-escritas que devem ser seguidas para o bom desempenho das atividades, com procedimentos a realizar e ações a evitar. Eis alguns exemplos simples mas que ilustram com clareza a idéia: não se pode falar palavrões, não se pode ir mal-vestido (ou, por outra: em vários casos é necessário usar determinados tipos de roupas), não se pode ir trabalhar alcoolizado e assim por diante. Todos esses exemplos são proibições que os trabalhadores aceitam como corretas para o bom desempenho de suas funções. Essas proibições ocorrem para o ambiente do trabalho, não para o espaço doméstico: em suas casas, no foro íntimo, os indivíduos têm liberdade para fazer mais ou menos tudo o que desejam.

Ora, se é aceitável que os indivíduos adaptem suas condutas para o trabalho em geral, deixando de agir de determinadas maneiras e agindo de outras formas em relação a como procedem em suas famílias, é ainda mais aceitável que os servidores públicos tenham um comportamento claro para realizarem suas atividades: afinal de contas, de modo geral é possível aos cidadãos escolherem uma empresa ou outra, mas os serviços públicos são universais. A bem da verdade, no âmbito do serviço público federal, existe uma lei que estipula precisamente esses comportamentos aceitáveis e inaceitáveis: trata-se do Decreto n. 1 171/94, o Código de Ética do Servidor Público Civil Federal. No caso da religião, se mesmo em empresas privadas é consensual que não se deve conversar esse assunto, o que se dirá no âmbito do Estado!

Apesar de todos esses motivos para a laicidade do Estado, há dois argumentos especialmente daninhos que se utiliza para tentar justificar o uso de símbolos e a prática de cultos religiosos no âmbito público: digo “argumentos”, mas são mais sofismas políticos. O primeiro diz respeito às crenças da população em geral; o segundo baseia-se em uma certo tradicionalismo.

Comecemos pelo segundo sofisma. Para justificar a celebração pelo Estado de determinada crença religiosa, muitos afirmam que se tratam de práticas há muito tempo praticadas e que já se tornaram tradicionais. Exemplos: a transmissão em emissoras públicas (isto é, estatais) de missas e cultos e a presença de crucifixos em bibliotecas públicas, tribunais, parlamentos e espaços públicos de modo geral. O problema aqui é que essa “tradição” baseia-se no desrespeito a um dos princípios fundamentais da República brasileira: é como querer justificar o coronelismo ou a corrupção ou a miséria no país afirmando que eles são “tradicionais”; é querer justificar algo errado porque esse errado existe faz tempo e é mais ou menos comum. Além disso, essas “tradições” são vistas como imutáveis e, literalmente, sacrossantas, isto é, intocáveis: é o raciocínio que se utiliza para justificar, por exemplo, o uso da violência física no trote aos calouros das universidades; ou para que bares, lanchonetes e restaurantes sofram enormes calotes por estudantes de Direito no dia 11 de agosto (o “dia do pindura”); ou que mulheres sejam espancadas por maridos supostamente traídos; ou que, em países que aceitam a xaria – a lei tradicional do islã – ladrões tenham as mãos decepadas e mulheres consideradas adúlteras sejam apedrejadas até a morte.

O argumento que se refere à religião da população brasileira é mais especioso, mas não é menos falso. O fato de a maioria da população brasileira ter uma determinada crença é freqüentemente invocado como justificativa para que o Estado adote práticas derivadas diretamente dessa crença; em outras palavras, a “vontade da maioria da população” é uma justificativa para que a (vontade da) minoria seja desconsiderada. “Maioria” e “minoria”, aqui, podem variar, é claro: no caso específico do Brasil podemos considerar a “maioria católica” – cerca de 73% da população – ou a “maioria cristã” – cerca de 90% da população –; assim, apenas em casos específicos é possível falar simplesmente em “maioria”, de tal sorte que na prática há apenas maiorias, no plural. Mas a questão é que tanto faz quem é maioria ou quem é minoria: o que importa é que as minorias devem ser respeitadas como cidadãs, ou seja, em seus valores e, portanto, a maioria não pode usar sua força numérica para impor suas crenças à minoria.

A relação entre maioria e minoria remete a uma diferença entre “democracia” e “república”. Enquanto a democracia é o governo da maioria, a república é o governo baseado na lei e que respeita as minorias. Sem dúvida que essa definição que apresentei de democracia é sujeita a polêmicas, mas a verdade é que não existe uma democracia tout court, exceto se considerarmos a experiência da Atenas antiga, que foi celebrizada durante a magistratura de Péricles, no século V a. c.; por outro lado, se pensarmos nos grandes teóricos republicanos, especialmente os das revoluções Francesa e Americana, eles sempre objetaram à democracia a possibilidade de tirania das maiorias que ela pode criar.

Para evitar mal-entendidos, quero deixar claro que de maneira alguma considero que a democracia, como ela é percebida nos dias atuais, seja simplesmente a imposição das vontades da maioria sobre a minoria oprimida. Entretanto, a verdade é que o argumento que justifica ser legítimo, no Brasil, o Estado assumir ares cristãos baseia-se exatamente nessa concepção de democracia, ignorando os elementos republicanos de respeito às diferenças e de Estado de Direito. Essa concepção de democracia, claro, é bastante conveniente, pois beneficia quem pode mais e manda às favas quem pode menos, desconsiderando a idéia de cidadania, isto é, o respeito universal aos membros de uma coletividade política.

Essa idéia de democracia religiosa majoritária já foi utilizada no Brasil: durante a Guerra Fria, governos progressistas, como o de Juscelino Kubitschek, e governos autoritários, como os dos militares, fizeram apelo constante ao caráter supostamente cristão do país. O problema que surge é o seguinte: se tivermos que escolher – e não há dúvidas de que se trata aqui, precisamente, dessa escolha – como definiremos o Brasil, como um país republicano ou um país cristão? O que nos define como comunidade política é uma crença compartilhada pela população ou é o respeito universal a leis universais?

Cada uma dessas definições tem conseqüências claras e muito diversas entre si. Se o Brasil é definido pelo respeito às leis, para ser brasileiro basta respeitar as leis brasileiras e cumprir as obrigações cívicas definidas por essas leis: esse é o conceito de cidadania definido durante a Revolução Francesa. De acordo com essa perspectiva, a partir de 1792 – ano da proclamação da I República francesa – para ser francês não importava mais se cada indivíduo era judeu, católico, huguenote (protestante) ou se nascera na Alemanha, na Inglaterra, na China ou no Zaire: bastava aceitar e seguir as leis e os usos franceses (além de falar francês).

Por outro lado, se o que define o brasileiro é a adesão à religião cristão, a conseqüência direta é que os não-cristãos não são brasileiros, ou melhor, não são “verdadeiros” brasileiros; discordar de ou criticar alguma das religiões cristãs é alta traição, é crime de lesa-pátria. No contexto da Guerra Fria, era comum denunciar os crimes que os soviéticos praticavam contra quem discordava dos dogmas comunistas – afinal de contas, o comunismo era a doutrina oficial do Estado –, incluindo aí todos os que confessavam crenças religiosas; mas muitas das pessoas que denunciavam esses distantes crimes do comunismo praticavam as mesmas ações em casa, ou seja, para o que nos interessa, o Brasil: os não-cristãos eram sujeitos a suspeitas a que os cristãos não estavam.

Outros exemplos semelhantes são as perseguições que religiosos nos Estados Unidos promovem contra quem discorda deles ou simplesmente não é da mesma religião que eles (nos dias atuais, em particular os muçulmanos): não é o que a candidata a vice-Presidente na chapa de John McCain, Sara Palin, tem feito a respeito de Barack Obama, ao sugerir que “ele não é como nós [cristãos]”? Ou, ainda, os atos de profunda intolerância praticados pelos talibãs no Afeganistão ou pelo regime dos aiatolás no Irã[3]?

A verdade é que os governantes brasileiros não estão muito atrás desses exemplos e dão péssimo exemplo à população, rejeitando de maneira demagógica a laicidade do Estado: sejam os presidentes da República que inscreveram nas cédulas “Deus seja louvado” e, depois, deixaram essa frase em negrito; sejam os autores da Constituição Federal de 1988 que inseriram um agradecimento a deus no “Preâmbulo” da Carta Magna; sejam governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores que afirmam governar com base na vontade divina; seja o Presidente da República que a todo instante fala em deus; sejam os ministros de Estado que usam verbas públicas para viajarem a encontros religiosos ou para patrocinar encontros de suas seitas; seja o governador do Paraná que em 2003 resumiu as comemorações dos 150 anos do estado a uma missa pública e a palavras de ódio contra empresas transnacionais de soja transgênica.

Mais do que isso. Nas recentes eleições para vereadores municipais, os analistas políticos indicaram uma série de fatores interessantes: as conseqüências eleitorais dos mecanismos de votação; as “vontades populares” expressas pelas novas bancadas de vereadores e assim por diante. Entretanto, um elemento central foi completamente ignorado ou desprezado: a quantidade assustadora de candidatos que fizeram suas campanhas apelando diretamente para os valores religiosos. “Acredita em deus e valoriza o ser humano”, “Evangelizando na política”, “Com deus, por você” foram alguns dos motes das campanhas não apenas em Curitiba, mas, pelo que se pôde perceber pelas matérias jornalísticas divulgadas nos meios de comunicação, no país inteiro. Considerando que os parlamentares devem representar interesses, a pergunta que não quer calar-se é a seguinte: quais os interesses que os candidatos religiosos representam? Quaisquer que sejam, certamente que a laicidade do Estado não está entre eles[4].

À parte algumas importantes iniciativas da sociedade civil – como as organizações não-governamentais Brasil para Todos e Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos e o Observatório da Laicidade do Estado, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) –, a única iniciativa política de que temos conhecimento e que visasa a combater esse gênero de desvio institucional é da autoria da ex-Deputada Federal e ex-Juíza Denise Frossard, que propôs o Projeto de Lei Complementar n. 216/2004, vedando aos sacerdotes o exercício de funções eletivas. Não por acaso, Denise Frossard é da cidade e do estado do Rio de Janeiro, onde, como se sabe, há teocracias em germe faz tempo. É forçoso reconhecer que, também não por acaso, o seu projeto de lei foi rejeitado no Congresso Nacional, onde há crescentes bancadas especificamente religiosas.

Começamos este artigo fazendo referência à UFPR; é importante concluí-lo voltando a ela. Há algum tempo a Universidade comemorou seus 90 anos: apesar da propaganda a favor do “papel que desempenha na sociedade paranaense”, não houve uma única menção aos seus fundadores; na verdade, exceto os historiadores e alguns especialistas em história do Paraná, o fato é que a comunidade universitária ignora completamente quem foram esses fundadores e quais os ideais que os moveram ao criar a então Universidade do Paraná. Pois bem: face à missa que a Reitoria da UFPR mandou rezar e face a todas as manifestações de imbricação entre igreja e Estado na Universidade, essa ignorância não poderia ser mais emblemática. Passamos da Universidade Federal do Paraná para a Universidade Confessional Federal do Paraná.





[1] Isso tem uma outra conseqüência: as religiões não são temas políticos, ou seja, não é possível e não é aceitável, nesse sentido, que se faça campanhas políticas fazendo apelo às crenças individuais de cada um.

[2] Conforme indicou meu amigo Valter Duarte, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), na verdade o processo de laicização como é conhecido atualmente começou no final da Idade Média – mais precisamente na Inglaterra –, quando, por motivos políticos e filosóficos, passou-se a buscar fundamentações não-religiosas para a autoridade política. As obras de John Locke sobre a tolerância, sobre a organização política e sobre o entendimento humano foram importância capital nesse sentido.

[3] Convém notar: esse mesmo raciocínio de comunidade política fundada em valores religiosos – com as conseqüências indicadas acima – foi recentemente utilizado pelo Presidente da República da França e pelo Papa para proibir o ingresso da Turquia na União Européia. Ora, o que Nicolas Sarkozy e Bento XVI pressupõem é que a Europa é essencialmente cristã, deixando de lado 1) o profundo e crescente secularismo das sociedades européias; 2) o caráter principalmente republicano das democracias européias; 3) a importância capital que tiveram os muçulmanos para o desenvolvimento da Europa e mesmo do catolicismo – afinal, sem os árabes não existiria São Tomás de Aquino –; 4) o longo e multimilenar relacionamento político, econômico e cultural entre os europeus e os muçulmanos (particularmente turcos) e 5) o fato de que o único país muçulmano que assumiu convictamente os valores (ocidentais) da secularização e da democratização foi a Turquia. Em suma: essa proibição é uma pérola da intolerância religiosa convertida em argumento político, a serviço do “choque de civilizações”. Não por acaso, por outro lado, Sarkozy e Bento XVI têm defendido o conceito de “laicidade positiva”, segundo o qual é lícito ao Estado professar alguma religião – o que, em outras palavras, é a própria negação da laicidade.

[4] É tão grande a quantidade de infrações ao princípio da laicidade do Estado que seria verdadeiramente cansativo tentar citá-las todas. Por isso, para encerrar aqui essa lista, citamos apenas mais dois exemplos: 1) a existência de capelães concursados na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e, claro, nas Forças Armadas; 2) as reiteradas propostas de “Ensino Religioso” obrigatório no Ensino Fundamental (e, se duvidar, também no Ensino Médio), a ser ministrado, sem dúvida, por sacerdotes.


3 comentários:

  1. Caro Gustavo:
    Tomei a liberdade de publicar, este seu artigo, no meu blog O CALHAMAÇO DOS EMBUSTES.
    Como no Brasil, em Portugal também são violadas as mais elementares normas da laicidade, Constitucional,do Estado; desde autarquias que pagam peregrinações de milhares de pessoas, ao santuário de Fátima até capelães hospitalares e nas forças armadas, pagos pelo Estado Português.

    Cumprimentos e parabéns pelo excelente artigo!

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  2. Parabéns pelo texto. Está claro para mim que são instituições de muito poder, mas que a separação clara entre elas pode dar ao povo o mínimo de liberdade que ele deve ter, que é a de pensar. Infelizmente, às vezes nem assim essa liberdade é exercida.

    Cordialmente,
    André Marques

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  3. Ola Gustavo!
    Gostaria de dizer que admiro seus textos,sou super fâ de seu blog,sempre entro para dar uma olhada.
    E hoje decidi comentar,e tentar sanar uma curiosidade minha,tu é jornalista?
    Por favor me responda!
    Grata Aline Moraes
    alinemoraes_judo@hotmail.com
    Parabéns pelo blog!

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