17 julho 2017

Revista Perspectivas: "Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos"

A revista Perspectivas, da área de Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Araraquara, publicou um artigo de minha autoria, intitulado "Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos".

O texto pode ser lido aquiReproduzo abaixo o resumo e as palavras-chaves do texto.

RESUMO: O presente artigo propõe-se a apresentar e analisar algumas das principais ideias defendidas, em diferentes momentos, pelos positivistas ortodoxos brasileiros, isto é, pelos integrantes da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil (IPB). Tais ideias podem ser encontradas em publicações de 1887, 1906 e 1913, de autoria de Raimundo Teixeira Mendes, as quais têm como tema central o que, à época, era denominado de “separação entre os dois poderes” (o Temporal e o Espiritual). Hodiernamente, esse tema pode ser abordado, embora de forma pouco precisa, como “laicidade do Estado”. Além de discorrer sobre alguns aspectos do estilo das publicações da IPB, o artigo trata de forma analítica os argumentos sobre a secularização dos cemitérios; a “sinceridade governamental” e o Decreto n. 119-A/1890 – presentes, respectivamente, nas publicações 049, 230 e 343 – e conclui que a “separação dos dois poderes” pode ser uma fórmula abrangente que abarca não apenas a laicidade do Estado como também outros projetos sócio-políticos.
PALAVRAS-CHAVE: Positivismo. Positivistas ortodoxos. Raimundo Teixeira Mendes. I República. Laicidade.

Esse artigo é uma versão resumida do livro de mesmo nome, publicado em 2016 pela editora Appris (e que pode ser comprado aqui).

13 junho 2017

Guia do Estudante: "Entenda o Estado laico"

O Guia do Estudante, tradicional publicação da editora Abril, publicou em sua versão eletrônica um pequeno texto sobre o Estado laico. Como ele dirige-se aos estudantes secundaristas e primários, é um texto básico; ainda assim, é bastante didático e informativo; acima de tudo, não apresenta problemas conceituais.

O original pode ser lido aqui.

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Entenda o que é o Estado laico

Veja o que significa o Estado ser laico, as origens históricas do laicismo e como o Brasil se apresenta dentro deste contexto

politize
No mundo inteiro, o ideal do Estado laico gera polêmicas. Nos últimos anos, foram registrados diversos casos em que a liberdade religiosa se chocou com a ideia de laicismo, gerando protestos. Ocorreu na França, com a proibição do uso do véu, na Alemanha, com a proibição de freiras de usarem hábito em escolas e repartições públicas e também aqui no Brasil, onde foi discutida a questão da presença de crucifixos em repartições públicas, entre outros assuntos.
Afinal, o que significa um Estado ser laico? Vamos apresentar esse significado, as origens históricas do laicismo e como o Brasil se apresenta dentro deste contexto.
Pleno do STF com símbolo religioso à direita. (STF/Divulgação)

Conceito

Um Estado é considerado laico quando promove oficialmente a separação entre Estado e religião. A partir da ideia de laicidade, o Estado não permitiria a interferência de correntes religiosas em assuntos estatais, nem privilegiaria uma ou algumas religiões sobre as demais. O Estado laico trata todos os seus cidadãos igualmente, independentemente de sua escolha religiosa, e não deve dar preferência a indivíduos de certa religião.
O Estado também deve garantir e proteger a liberdade religiosa de cada cidadão, evitando que grupos religiosos exerçam interferência em questões políticas. Por outro lado, isso não significa dizer que o Estado é ateu, ou agnóstico. A descrença religiosa é tratada da mesma forma que os diversos tipos de crença.

História do Estado laico

laicismo é uma doutrina que defende que a religião não deve ter influência nos assuntos de Estado. Essa ideia foi responsável pela separação moderna entre a Igreja e o Estado e ganhou força com a Revolução Francesa (1789-1799). Portanto, podemos dizer que o Estado laico nasce com a Revolução Francesa e que a França é a mãe do laicismo.
Nos anos que se seguiram à revolução, o Estado francês tomou medidas em direção ao laicismo propriamente dito.
  • 1790: todos os bens da Igreja foram nacionalizados;
  • 1801: a Igreja passou para a tutela do Estado;
  • 1882: o governo determina que o sistema de ensino público deve ser laico;
  • 1905: a França se tornou um Estado Laico, separando definitivamente Estado e Igreja e garantindo a liberdade filosófica e religiosa;
  • 2004: entra em vigor uma lei que proíbe vestes e símbolos religiosos em quaisquer estabelecimentos de ensino.

Posições do Estado em relação à religião

Apesar de a laicidade ser adotada em diversos países mundo afora (alguns exemplos são Estados Unidos, Japão, Canadá, Áustria e África do Sul), ainda existem outras formas de relação entre Estado e religião. Abaixo, relacionamos algumas delas:
Estado confessional
O Estado confessional é aquele que adota oficialmente uma ou mais religiões. Existe influência religiosa nas decisões do Estado, mas o poder secular predomina. São exemplos de Estados confessionais:
  • Reino Unido: a Inglaterra, maior nação do país, adota o cristianismo anglicano como religião oficial. Bispos anglicanos têm direito a 26 vagas na Câmara dos Lordes (equivalente ao nosso Senado). Na prática, é o primeiro-ministro e a Câmara dos Comuns que concentram o poder político;
  • Dinamarca: o Estado dinamarquês adota o cristianismo luterano como sua religião. Na prática, há ampla liberdade religiosa no país, onde vivem muitos imigrantes muçulmanos;
  • Butão: a constituição do país estabelece o budismo tibetano como religião oficial. Essa nação asiática garante liberdade religiosa, mas tem colocado limites a práticas de outras religiões (como atividades missionárias e construção de templos);
  • Arábia Saudita (islamismo): adota oficialmente o Islã e proíbe a prática de qualquer outra religião. Todos os cidadãos sauditas devem professar a fé islâmica, sob pena de serem executados pelo crime de apostasia.
Estado teocrático
Nas teocracias, as decisões políticas e jurídicas passam pelas regras da religião oficial adotada. Em países teocráticos, a religião pode exercer o poder político de forma direta, quando membros do próprio clero têm cargos públicos, ou de forma indireta, quando as decisões dos governantes e juízes (não religiosos) são controladas pelo clero.
Exemplos de Estados teocráticos são: o Irã, que adota o islamismo como religião oficial e possui um aiatolá como chefe de Estado; e o Vaticano, o país-sede da Igreja Católica, cujo chefe de Estado é o próprio papa.
Estado ateu
Um Estado ateu é caracterizado pela proibição ou perseguição a práticas religiosas. O Estado não apenas se separa da religião, mas a combate. Exemplos de ateísmo de Estado podem ser encontrados em experiências socialistas ou comunistas do século XX: União Soviética (URSS), Cuba, China, Coreia do Norte, Camboja, entre outros.
Hoje em dia, parte desses países adota a liberdade religiosa e o secularismo: a Rússia é um país laico; a China garante a liberdade de crença, apesar de permitir apenas um conjunto de religiões registradas; e a Coreia do Norte também permite oficialmente a liberdade religiosa, apesar de que cerca de 64% da população norte-coreana não professa nenhuma religião, segundo David Alton.

E o Brasil?

O Brasil é o maior país católico do mundo, com uma estimativa de 127 milhões de fiéis, o que equivale a 65% da população do país e aproximadamente 12% dos católicos no mundo (dados de 2013 do IBGE). Mesmo com maioria católica, o país é oficialmente um Estado laico, ou seja, adota uma posição neutra no campo religioso, busca a imparcialidade nesses assuntos e não apoiando, nem discrimina nenhuma religião.
Apesar de citar Deus no preâmbulo, Constituição Federal afirma no artigo 19, inciso I:
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.” 
Esse trecho de nossa Constituição determina, portanto, que o Estado brasileiro não pode se manifestar religiosamente. Também vale notar que o artigo 5º, inciso VI também diz:
“É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;” 
Dessa forma, a liberdade religiosa na vida privada está completamente mantida, desde que devidamente separada do Estado.
Em 2012, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello fez afirmações nesse sentido em sua decisão sobre o aborto de anencéfalos. Ele afirmou que “os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais.” Também sustentou que: “as concepções morais religiosas — unânimes, majoritárias ou minoritárias — não podem guiar as decisões de Estado, devendo, portanto, se limitar às esferas privadas.”
Polêmica: o caso dos crucifixos em repartições públicas
Uma das principais polêmicas em relação à laicidade do Estado brasileiro é o uso de símbolos religiosos, como crucifixos, em repartições públicas. De acordo com críticos, essa prática fere os princípios do Estado laico porque, uma vez que instituições públicas ostentam símbolos de uma religião, estariam privilegiando-a em detrimento das demais crenças (ou descrenças). 
A controvérsia já motivou decisões como a do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), que determinou a retirada de crucifixos de todos os prédios da Justiça gaúcha, em 2012. Mas a decisão foi revertida mais tarde pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que entendeu que a colocação dos crucifixos “não exclui ou diminui a garantia dos que praticam outras crenças, também não afeta o Estado laico, porque não induz nenhum indivíduo a adotar qualquer tipo de religião”.
Outros pontos em que a laicidade não estaria sendo respeitada são a frase “Deus seja louvado”, imprimida no canto das notas da moeda oficial do país, o real, e a expressão “sob proteção de Deus” inserida no preâmbulo da Constituição Federal.
A bancada evangélica
Além da presença de referências religiosas em instituições estatais, existe preocupação em relação ao crescimento do grupo de deputados federais e senadores evangélicos. A bancada evangélica se opõe a pautas como descriminalização do aborto, da eutanásia e leis contra a discriminação contra homossexuais e transexuais, enquanto defendem projetos como o Estatuto da Família, que reconhece como único núcleo familiar a união entre um homem e uma mulher, e a redução da maioridade penal para 16 anos em casos de crimes hediondos.
O número de evangélicos apenas cresce no país e isso se refletiu na composição do Congresso. De acordo com dados da Câmara, a bancada evangélica teria cerca de 200 integrantes (198 deputados, incluindo alguns que não estão no exercício do mandato, e 4 senadores).
A presença de um amplo grupo identificado com correntes religiosas específicas é vista como um desafio para a laicidade do Estado, uma vez que muitas das pautas citadas possuem relação com as convicções religiosas dos parlamentares (a ideia de família apenas como união entre homem e mulher, por exemplo).
A bancada também não é unanimidade entre os próprios evangélicos. Teólogos ouvidos no 10º seminário LGBT na Câmara entendem que o grupo é fundamentalista, porque busca impor suas convicções morais a toda a sociedade, além de fazer proselitismo religioso (ou seja, promover esforços para converter pessoas para sua religião).

Conclusão

Como você pode perceber, a laicidade é um tema que gera muitas controvérsias, pois implica a manutenção de um equilíbrio tênue entre liberdade de crença e imparcialidade do Estado em relação à religião. Esse equilíbrio é delicado, mas tem como benefício esperado um Estado que respeita a diversidade de crença existente dentro da população. E você, como enxerga a questão da laicidade? Deixe sua opinião!
Referências: UOL – Câmara

12 junho 2017

"Teoria do Brasil" dos positivistas: composição étnica e unidade nacional

A revista Política & Sociedade - da Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - acabou de publicar, em seu número mais recente (v. 16, n. 35, jan.-abr.2017) um artigo de minha autoria, intitulado "A “Teoria do Brasil” dos Positivistas Ortodoxos Brasileiros: composição étnica e independência nacional".

O texto pode ser obtido aqui.

Eis o resumo e as palavras-chave do artigo:

Resumo: Podemos definir como “teoria do Brasil” o conjunto de concepções que um autor ou um grupo político-intelectual possui a respeito da história e da estrutura da sociedade e do Estado brasileiros, bem como de suas relações mútuas; essas concepções costumam ser incluídas no “pensamento político e social brasileiro”. Nesse sentido, os positivistas ortodoxos brasileiros – ou seja, aqueles ligados à Igreja Positivista do Brasil, especialmente Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes – tinham a sua “teoria do Brasil”. Embora haja estudos sobre alguns aspectos do pensamento e da prática dos positivistas (como a respeito da escravidão), há uma importante lacuna na literatura a respeito da sua “teoria do Brasil”. Dessa forma, o presente artigo pretende abordar precisamente essa questão, tratando de modo específico (1) da formação étnica brasileira e (2) das condições sociais e políticas brasileiras que conduziram à Independência nacional, em 1822; para isso, serão analisados alguns documentos escritos por Teixeira Mendes. Preliminarmente serão expostos alguns elementos da doutrina positivista, conforme definida por Augusto Comte; já nas conclusões são expostas algumas considerações sobre a importância política e intelectual dos positivistas no Brasil e na área acadêmica do “pensamento político brasileiro”.

Palavras-chave: Positivistas ortodoxos. Teoria do Brasil. Evolução sócio-política. Formação étnica. Independência do Brasil. Raimundo Teixeira Mendes. 

Luís Antônio Cunha: Laicidade do Império à I República

Luís Antônio Cunha, fundador e pesquisador do Observatório da Laicidade na Educação (OLÉ), publicou recentemente o livro A educação brasileira na primeira onda laica: do Império à República. O livro está disponível em versão eletrônica gratuita aqui.

Com mais de 530 páginas, é uma obra de fôlego, essencial para quem quer entender a laicidade, a história da laicidade e mesmo partes importantes da história do Brasil.

08 junho 2017

Um elogio à política, a partir de "O discurso do rei"

Um elogio à política,
ou reflexões didáticas a partir de O discurso do rei

Gustavo Biscaia de Lacerda

O filme O discurso do rei (2010) é um grande filme; a história é bem contada e os atores têm grandes desempenhos. Sem ser uma história muito densa, ela entra na categoria de “drama político” ou até “drama histórico”, em que as dificuldades pessoais de um herdeiro do trono inglês são mostradas como um problema, eventualmente um obstáculo, à sua atuação política; assim, a solução do drama pessoal é condição para solução (ou encaminhamento) do drama político. Mais uma vez: isso rende uma excelente história, que é muito bem contada; não foi à toa que ganhou os prêmios Oscar de melhores filme, direção e ator, entre outros, em 2011.

Há diversos aspectos políticos e sociológicos que valem a pena ser destacados a respeito do filme. Esses aspectos são bastante evidentes na história, compõem o seu pano de fundo e também a sua moldura e, portanto, integram o rol de elementos que tornam o filme tão interessante – aliás, interessante e instrutivo.

Sem procurar esgotar as possibilidades teóricas e históricas, vejamos alguns desses aspectos. Procurarei apresentar esses elementos com alguns exemplos, às vezes tirados da história da Inglaterra, às vezes da França, às vezes do Brasil; ainda assim, evitarei ao máximo referir-me aos problemas brasileiros atuais – não porque as reflexões abaixo não podem ser aplicadas ao nosso país (elas podem, sim!), mas para evitar a dispersão mental e polarizações político-intelectuais a respeito de um escrito que é para ser, antes de mais nada, didático. (Aliás, por esse mesmo motivo, não incluirei nenhuma nota de rodapé e reduzirei ao máximo as referências eruditas e a pensadores.)

  1. O respeito aos governantes como elemento integrante da vida política.

Antes de mais nada, é importante notar que sou republicano e que abomino as monarquias existentes neste século XXI; aliás, desde a Revolução Francesa (1789-1799) as monarquias já são relíquias históricas, a despeito de suas sobrevivências mundo afora e dos discursos laudatórios a seu favor. No caso da monarquia inglesa, ela sofreu uma importante solução de continuidade no século XVII, após a Guerra Civil, durante o Protetorado e o Commonwealth de Oliver Cromwell; além disso, até meados do século XVIII, a monarquia inglesa apresentou inúmeras mudanças dinásticas, com golpes orquestrados pela nobreza local e líderes escoceses, franceses, neerlandeses (“holandeses”) e até alemães assumindo o trono.

Dito isso, a noção de respeito aos governantes perpassa todo o filme. Evidentemente, como se trata de uma história centrada no relacionamento entre o Duque de Iorque (futuro Jorge VI) e o fonoaudiólogo Lionel Logue e a importância atribuída ao sucesso do tratamento do herdeiro, não se vê no filme outros atores políticos relevantes além do irmão mais velho do Duque, o futuro Eduardo VIII, bem como alguns primeiros-ministros, Winston Churchill e o arcebispo de Cantuária em papéis secundários. Dito de outra forma, não há verdadeiramente conflitos políticos no filme: não se vê situação e oposição, não se vê os trabalhadores etc. Ainda assim, está subjacente o respeito às tradições e aos governantes; na verdade, em alguns momentos do filme, esse respeito é tornado explícito, como quando o Duque de Iorque afirma que Logue está sugerindo traição.

Na Inglaterra, a monarquia é vista como esteio moral, social e político do país, precisamente por ser uma instituição antiga e tradicional; ela é vista como integrando a identidade do país. A função da monarquia, portanto, é simbólica, não “prática”. Nesses termos, poder-se-ia argumentar que é muito mais fácil respeitar os governantes em monarquias que em repúblicas e que, por outro lado, o que se chama de “política democrática” incentiva precisamente o desrespeito aos governantes.

Até certo ponto isso é verdade; instituições tradicionais, pelo mero fato de sua longevidade, inspiram um respeito “primordial”; da mesma forma, as disputas políticas das democracias estimulam as críticas sistemáticas aos governantes. Mas no caso inglês, o respeito à monarquia deve-se a outros dois aspectos: por um lado, o fato de que o rei (ou rainha) reina mas não governa, ou seja, como já indicamos, o fato de que a monarquia cumpre funções puramente simbólicas: a monarquia em si está afastada, e cada vez mais afastada, da vida política; as notícias mais importantes a seu respeito cabem cada vez mais nas páginas das chamadas “colunas sociais”, isto é, nas páginas de fofocas. Por outro lado, como é expressamente dito em um momento de conflito no filme, a legitimidade da monarquia reside, em última análise, na concepção do direito divino dos reis, que consiste em que os reis governariam por serem emissários dos deuses na Terra – algo feliz e evidentemente fora de propósito nos dias atuais.

Todavia, na república romana – e mesmo no império romano –, dizia-se com freqüência que só pode governar quem soube antes obedecer; em outras palavras, a obediência dos governados integra suas obrigações e permite aos governantes entender os ônus da própria obediência e as responsabilidades vinculadas ao mando, ao exercício do governo, da parte dos governantes. Uma outra forma de entender essa regra romana é que os governados não podem estimular a anarquia; o escrutínio público a que o governo deve ser continuamente submetido não pode equivaler a desprezar sem mais os governantes e, de modo mais direto, não pode equivaler a desrespeitar as instituições governativas. Nesse sentido, observava Pierre Laffitte, no final do século XIX, que uma das obrigações políticas básicas de qualquer cidadão – e, note-se: estamos tratando aí da cidadania, isto é, da participação ativa nos assuntos públicos e coletivos – é justamente respeitar os governantes.

Nesse aspecto, a idéia de democracia como “governo do povo” simplesmente não ajuda muito, na medida em que permite e mesmo estimula concepções como a de que o “povo” governará diretamente a sociedade, o que equivale a dizer que não haverá governo e que qualquer indivíduo, independentemente de sua formação, de sua experiência, de suas reflexões, é capaz de fazer quaisquer críticas que quiser, no tom e na forma que quiser, aos governantes. Nesse caso, a idéia de “república” – como conjunto de instituições e também de práticas voltadas para o bem comum – é muito superior à de “democracia”.

  1. O papel da noção dever na condução da vida.

Ao longo do filme, em diversos momentos o Duque de Iorque observa que suas ações vão no sentido de ajudar ao máximo o reinado de seu irmão mais velho, o rei Eduardo VIII, mesmo apesar da futilidade desse rei, em especial ao descuidar dos assuntos públicos em benefício de uma tola aventura amorosa. O respeito do Duque de Iorque às suas próprias obrigações fica evidente quando ele chama de “traição” a sugestão feita pelo fonoaudiólogo Logue no sentido de que o próprio Duque poderia, em breve, assumir o trono inglês.

O respeito escrupuloso às obrigações pauta-se em uma certa concepção de honra e, de maneira vinculada, à noção de dever. Se deixarmos as ilhas britânicas e passarmos ao arquipélago japonês, é fácil lembrarmos quantos filmes ambientados no Japão feudal tratam de honra: basta pensarmos no um tanto fabuloso 47 ronins (de 2013) e no mais estereotipado O último samurai (de 2003).

A “honra” que aparece nesses filmes é uma virtude ao mesmo tempo militar e pessoal; refere-se por um lado ao respeito que cada um deve às inúmeras obrigações sociais e, por outro lado, à reputação de cada qual. Os valores sociais são internalizados e orientam a conduta dos indivíduos; o desrespeito às regras coletivas é punido e a punição é aceita como correta e necessária pelos punidos. Não há dúvida nenhuma de que uma parte importante do apelo desses filmes do Japão feudal deve-se, precisamente, ao respeito prestado por indivíduos de personalidades fortíssimas às regras sociais, chegando ao limite da auto-imolação. Sem pretender chegar ao ponto do suicídio, o público que assiste a esses filmes com freqüência fica mais que impressionado com essas demonstrações de força de vontade; na verdade, o público reconhece um valor moral em tão possante obediência às regras. Mais que leis externas, a obediência interna impressiona e é valorizada: os deveres, de caráter social, são poderosos.

A dificuldade está no caráter marcial dessa noção de honra. Nos filmes ambientados no Japão feudal, a ordem social é imutável (47 ronins); quando não é mais imutável (O último samurai), a mudança é vista como algo ruim, como necessariamente decadência. Não apenas a ordem social é sacrossanta, como ela é profundamente militarista: como fica evidente de maneira caricata em O último samurai, enquanto o militarismo é visto como virtuoso, a indústria é vista como corrupta e corruptora. Ora, por definição a riqueza e o bem-estar são possíveis apenas com o trabalho, a indústria e o comércio; a guerra produz apenas destruição e dominação. Nesses filmes, a “honra” tem que ser, sempre, recuperada apenas por meio dos conflitos militares. Se sairmos do Japão feudal e voltarmos à Europa, é fácil reconhecermos essa mesma “honra” em ação nos duelos: os duelos eram uma forma privada, militar e feudal de resolver as disputas, entendidas sempre como “honra” ofendida. Não por acaso, no início do século XX a Alemanha militarista caracterizava-se pela prática ritual dos duelos. (Em contraposição, pelo menos desde o século XVII a França envidou sérios esforços para coibir, quando não proibir, os duelos.)

Retornando a O discurso do rei: o respeito do Duque de Iorque às suas obrigações não tem esse caráter militarista e feudal da honra, a despeito de a monarquia inglesa ser propriamente feudal. Como indicamos antes, esse respeito vincula-se muito mais à noção de dever, constituindo-se em obrigações auto-impostas e seguidas com bastante escrúpulo.

É interessante notar que esses deveres são assumidos com liberdade; embora o Duque de Iorque em diversos momentos lamente não poder escolher suas ações – ou seja, lamente não ter liberdade –, nem por isso ele deixa de respeitar suas obrigações. Sua própria vida e a comparação com a vida do irmão realçam esses aspectos: o Duque de Iorque era canhoto, tinha as pernas tortas e era maltratado por uma das babás; agüentou os mal-tratos, foi obrigado a tornar-se destro e a usar doloridos aparelhos corretivos nas pernas; aliás, sendo gago, enfrentava dificuldades quase intransponíveis no início para ler discursos: apesar disso tudo, aceitou suas responsabilidades, persistiu em suas metas, superou suas dificuldades. Seu irmão mais velho livremente escolheu renunciar ao trono para consumar sua aventura amorosa; após isso, o Duque de Iorque livremente aceitou coroar-se.

É certo que se pode argumentar que as obrigações assumidas pelo Duque do Iorque eram próprias à sociedade inglesa, ao ambiente real e ao início do século XX; nesse sentido, o quadro de deveres a serem assumidos pelo futuro Jorge VI estava estruturado com clareza e sua aceitação era mais ou menos “automática” e obrigatória. Todas essas afirmações são verdadeiras; a conseqüência desse fato é que pode parecer um pouco estranho, mesmo um pouco anacrônico, defender a validade dos deveres no início do século XXI, na sociedade civil do Brasil. Ainda assim, parece-me que o fascínio causado pelo respeito aos deveres em O discurso do rei e mesmo nos filmes sobre o Japão feudal vai além da mera admiração pelo exótico e fundamenta-se no reconhecimento de uma realidade humana mais profunda.

Desde o final da II Guerra Mundial o Ocidente passa cada vez mais por “liberações” e “revoluções” nos comportamentos; os movimentos Beat, Hippie, feminista e outros são ilustrações e agentes dessas mudanças. De modo geral, essas alterações consistiram em criticar e, de modo geral, rejeitar os padrões anteriores de comportamento: a expressão “conflito de gerações” era bastante literal e descritiva até há alguns anos. Ora, a crítica aos comportamentos, as “liberações” referiam-se aos padrões, aos hábitos e aos costumes anteriores: nesse caso, os “direitos” ganham espaço, na medida em que a noção dos direitos é basicamente destrutiva; por outro lado, os deveres perdem espaço, na medida em que eles pressupõem valores socialmente compartilhados, não apenas entre indivíduos da mesma geração, mas também de gerações distintas. Nesse sentido, é notável como o “politicamente correto” é uma tentativa bastante acadêmica, de caráter multiculturalista, de tentar converter essas “liberações” (que consistem na ausência de padrões) em novos padrões de relacionamento; em outras palavras, o “politicamente correto” é um esforço (malogrado) para tentar constituir deveres a partir de uma ética radicalmente contrária aos deveres.

A dificuldade em aceitar contemporaneamente os deveres reside, então, em aceitar livremente uma restrição no próprio comportamento em benefício dos demais. O problema está (1) na restrição e (2) no benefício aos demais. Os dois impedimentos consistem na consagração da individualidade, do individualismo, e ambos entendem a liberdade de maneira antissocial e anárquica. A liberdade, nesses termos, não é entendida como passível de fundar uma “ordem” social, pois seria contrária a qualquer ordem; a ação individual, de maneira correlata, é sempre entendida como impassível de ser orientada para os demais, pois essa orientação altruísta é entendida como negadora, como limitadora da própria individualidade. Assim, a rejeição contemporânea aos deveres baseia-se em concepções simplistas e extremas da vida social e dos próprios indivíduos.

Ora, os deveres são parte integrante da sociedade: é necessário, é imperativo que os indivíduos internalizem os valores coletivos, que compartilhem os valores, e que, com base nisso, ajam uns em benefício dos demais. A ação individual em benefício dos demais não impede nem evita o benefício individual; o que ocorre é que a ação individual pode ser orientada para melhorar as condições dos demais, para piorá-las; para satisfazer única e exclusivamente as próprias necessidades ou para satisfazer tanto as próprias necessidades quanto as alheias. Como Augusto Comte indicou faz mais de 150 anos, a harmonia social – e mesmo o progresso – é impossível tendo como base apenas a satisfação egoísta; ao contrário, a orientação altruísta dos egoísmos permite a coordenação das diversas atividades sociais.

Assim, os deveres permitem também a regulação de cada um dos indivíduos, permitindo a harmonia pessoal e evitando o isolamento individualista. Até o início do século XX entendia-se por “disciplina” a regulação das diversas forças disponíveis; a “autoridade” era a figura a ser respeitada e seguida. Não deixa de ser significativa o fato de que a disciplina signifique atualmente militarismo e/ou vigilância, assim como a autoridade seja sempre entendida como autoritarismo: nesses termos, a ordem é sempre entendida como despotismo, a liberdade é sempre anárquica e os deveres tornam-se impossíveis – o que está bem longe de ser o melhor projeto político-social.

  1. A importância da qualidade da liderança política.

O contraste entre os dois irmãos, os sucessivos reis Eduardo VIII e Jorge VI, ressalta um aspecto importante na vida política de qualquer lugar: a importância da qualidade da liderança política. É claro que no filme o comportamento de Eduardo VIII é um tanto caricato e, de qualquer maneira, o seu comportamento objetivo foi bastante insensato, de um romantismo infantil e mesmo idiota. Da mesma forma, é necessário termos clareza de que as lideranças políticas podem ter diferentes qualidades e que mesmo essas qualidades podem ser necessárias em diferentes doses ao longo do tempo: às vezes é necessária maior moderação, às vezes é necessária maior energia etc.

Isso já nos permite duas ordens de reflexões. Em primeiro lugar, há personalidades que não possuem a menor qualificação para ocuparem cargos públicos. Esse, aliás, é um dos grandes problemas práticos ligados às monarquias: se, por um lado, os problemas conexos da sucessão entre os governantes e da continuidade administrativa estão mais ou menos resolvidos previamente, por outro lado os líderes são “escolhidos” apenas porque tiveram a sorte, ou o azar, de nascerem em determinada família. Esse sério problema anda em conjunto com a concepção estamental da sociedade – em que as ocupações dos indivíduos são dadas pelo berço e não pelas qualificações e pelos interesses individuais – e com a legitimação sobrenatural do Estado – em que o governante governa por ordem divina e não como um servidor da sociedade –; o resultado é que as monarquias não são aceitáveis em sociedades livres e racionais.

Em segundo lugar, vale a pena insistirmos na idéia de que diferentes indivíduos possuem diferentes qualidades, que são requeridas em diferentes situações. Isso quer dizer que um político pode desenvolver uma atuação fundamental em um determinado momento, mas que em uma outra conjuntura suas habilidades já não serão úteis ou mesmo acabarão atrapalhando. Há situações que exigem determinadas qualidades para serem enfrentadas, mas nas quais não se apresentam líderes capazes de lidar com eles, isto é, não se apresentam políticos com as habilidades requeridas pelo momento.

É claro que, mesmo quando adequados ao momento, isto é, quando ocupam o poder e possuem as qualidades necessárias para lidar com os problemas que enfrentam, muitas vezes os líderes políticos podem ter idéias parciais sobre como lidar com os problemas e mesmo as soluções que implementarem podem ter implementadas de maneira parcial ou simplesmente não serem as soluções ideais. Isso tudo lembra-nos de que a política é um processo, ou seja, de que ela desenvolve-se ao longo do tempo; soluções parciais de hoje podem ser completadas amanhã; soluções parciais de hoje podem modificar as condições sociais de tal maneira que amanhã tenhamos outras dificuldades, completamente diferentes, para serem enfrentadas; problemas a serem enfrentados hoje podem tornar-se completamente irrelevantes amanhã.

Um exemplo histórico brasileiro. Em 1822, o Brasil enfrentava um sério dilema: após ser explorado economicamente e dominado politicamente ao longo do século XVIII, mesmo a despeito de várias revoltas (como a da Inconfidência Mineira), após a vinda da família real para o país em 1808 as coisas mudaram, para melhor; a antiga colônia subira de status para “reino unido” e a sua infra-estrutura econômica, política, cultural e educacional estava sendo desenvolvida com rapidez. Mas em 1821 o rei português voltou à Europa e eram grandes as chances de os avanços obtidos nos anos anteriores serem todos revertidos, com o Brasil voltando à posição de colônia. O governo do país estava entregue ao príncipe regente, um rapaz de boa vontade mas estouvado, mais preocupado com diversões e casos amorosos que com questões políticas. Nesse momento, surge José Bonifácio, um cientista brasileiro de renome internacional, que, começando uma atividade política como deputado provincial em São Paulo, em pouco tempo tornou-se conselheiro do príncipe regente. Nessa condição, José Bonifácio conseguiu que a independência nacional fosse feita pelo próprio herdeiro do trono – evitando, assim, um conflito armado que seria danoso tanto para o Brasil quanto para Portugal. Além disso, é interessante notar que José Bonifácio era a favor da república e contra a escravidão; mas, ao mesmo tempo, ele entendia ser importante manter a unidade nacional: a república permitiria um fim rápido na escravidão, mas daria azo à fragmentação política; já a monarquia manteria a unidade mas também a escravidão. Face a essas opções, José Bonifácio optou pela segunda melhor, mas que respondia mais prontamente às dificuldades do momento: a monarquia permitiria a independência nacional com integridade territorial e ainda aceitaria a escravidão (que, como se sabe, perdurou até o final do regime dinástico no país).

Um aspecto que ficou subentendido nos comentários acima é o relativo ao “conjunto da sociedade”. Como nos referimos aqui aos líderes políticos, aos indivíduos, pode parecer que eles agem no vácuo, no vazio, mas isso não ocorre; aliás, como são líderes políticos, por definição eles não agem no vácuo. Os líderes só podem liderar se agirem em meio aos vários grupos sociais que, por sua vez, podem facilitar ou dificultar as várias ações sociais. É certo que por vezes os líderes assumem posições proeminentes devido a atuações mais isoladas – foi o caso de Churchill, na Inglaterra –, mas de modo geral os líderes políticos destacam-se em grupos sociais específicos e é como líderes de tais grupos que ascendem ao poder (Um dos principais grupos que permite o acesso ao poder – mas, claro, não o único grupo que o permite – é o partido político.) A ascensão é apoiada ou recusada por outros grupos e outros políticos – e é essa dinâmica que constitui o dia-a-dia da política.

Procuramos insistir até agora nas qualidades dos políticos, isto é, nas suas boas qualidades, mas algumas palavras devem ser ditas sobre as más qualidades, ou seja, sobre os seus defeitos – dois, em particular. Observamos acima que um líder costuma surgir como representante de um grupo específico: ora, ao passar do grupo específico para um cargo de direção, esse líder não deixa de lado seus valores e preocupações anteriores, mas deve ampliá-los, considerando que trata de interesses de toda a sociedade e não mais grupos particulares. Uma frase do francês François Mitterrand ilustra maravilhosamente bem o ponto: eleito Presidente da França por uma coligação entre socialistas e comunistas em 1981, perguntaram-lhe se ele governaria para esses grupos; Mitterrand respondeu que era Presidente dos franceses, isto é, de todos os franceses e não apenas dos socialistas e dos comunistas.

Ora, não é incomum líderes políticos fazerem a transição de cargos ou de funções mas não fazerem a transição de perspectivas, assumindo posições de poder mas mantendo idéias e posturas particularistas. O resultado disso costuma ser desastroso, geralmente com a divisão da sociedade em grupos rivais gradativamente inconciliáveis – o que, em última análise, pode resultar em guerra civil.

O segundo defeito que queremos comentar é o da demagogia. Um dos principais traços dos políticos é sua capacidade retórica; de modo geral, um bom político é um bom orador (embora nem sempre). No filme O discurso do rei, o papel central da retórica fica bastante evidente – mas também fica evidente a crítica aos políticos e aos líderes que são apenas oradores, como no momento em que o rei Jorge V reclama ao Duque de Iorque que o rádio transformou o rei em um mero ator. Assim como indicamos vários e sérios defeitos da monarquia, é importante indicar que a república (mas a monarquia também!) pode ficar sujeita a demagogos, a puros retóricos, a políticos que se destacam por suas habilidades com as palavras mas que são somente faladores habilidosos, sem força de caráter, sem idéias gerais, sem preocupações com o bem comum etc. Nesse sentido, talvez uma das piores combinações é aquela em que um mero orador é fraco de caráter e/ou só entende a política em termos de divisões sociais.

  1. A importância da fala e dos discursos para a vida política.

O tema central do filme é o problema da fala do Duque de Iorque, futuro rei Jorge VI; esse problema é especificamente grave porque, mesmo sem desejar, ele ocupa uma posição social de destaque, podendo ocupar o trono (o que de fato ocorre). Assim, no filme a dificuldade da fala é acima de tudo uma dificuldade política.

No início do filme o idoso rei Jorge V observa, em tom de reclamação, que “até há pouco tempo” (ou seja, até o início do século XX) não fazia muita diferença se um líder não era ouvido pelas massas; conversas mais reservadas eram o comum da política. Mas com a invenção e a difusão do rádio, a palavra falada disseminou-se e tornou-se um elemento central na vida política dos povos. Em sentido semelhante, podemos também notar que até a década de 1950 – quando surgiu a televisão – a aparência física dos políticos também não tinha tanta relevância.

Essas constatações históricas são importantíssimas e realçam um traço da nossa vida contemporânea. Mas o filme também evidencia um outro aspecto, mais amplo e que merece ser comentado: a importância da palavra em geral, dos discursos, para a realização prática da política e para a vida em sociedade. Há pelo menos duas ocasiões em que isso se evidencia, ambas no final do filme: (1) ao ensaiar para o discurso que conclamará a Inglaterra (e, de modo mais amplo, o Império Britânico) para a II Guerra Mundial, Jorge VI reclama que, apesar de ser nominalmente rei, ele não tem poder nenhum: não institui nenhuma lei, não contrata nem demite ninguém, não forma gabinetes etc.; em suma, ele reina mas não governa. A despeito disso tudo, seu papel é o de representar, incorporar a nação – e de ser a sua voz, o que é um trágico problema para ele pessoalmente e para a nação em geral. (2) Em seguida, durante a leitura do discurso, a população inglesa está parada, ouvindo ao redor dos aparelhos de rádio e das torres de difusão: vê-se aí que a própria nação, ou pelo menos a sua unidade, é constituída por meio do discurso.

Vivemos em um mundo caracterizado pela internet; isso, como se sabe, significa muito mais que apenas uma tecnologia largamente utilizada; aliás, assim como nos casos anteriores do rádio e da televisão, a internet modificou profundamente as formas como as sociedades e os indivíduos relacionam-se e, a partir daí, como a política é entendida e praticada. Todavia, no caso específico da internet, há características todas particulares que a distinguem das demais tecnologias de telecomunicações (ou, talvez, que aprofundam bastante algumas tendências sugeridas ou já existentes nas tecnologias anteriores). Deixemos de lado a instantaneidade das informações, pois isso já ocorria desde o rádio: o ponto central aqui é a possibilidade de cada indivíduo ser produtor das próprias mensagens, a todo instante; essa é a diferença que faz absolutamente toda a diferença.

Com o rádio e a televisão, o comum das pessoas era apenas consumidor das mensagens; já houve inúmeros e acerbos debates sobre se esse consumo seria ativo ou passivo, isto é, se as pessoas mais ou menos entenderiam do jeito que quisessem as mensagens ou se as mensagens seriam recebidas prontas e acabadas pelas pessoas. Esse é um debate interessante e importante, mas o fato é que, com a internet e a respeito da internet, essa discussão torna-se um pouco obsoleta, na medida em que com a internet todos podem reagir às mensagens alheias, modificá-las, transmiti-las, aumentá-las, deturpá-las, corrigi-las etc.

É indiscutível que isso representa um passo importante na chamada "democratização do conhecimento", assim como facilita as trocas de informações e de idéias. Contudo, ao mesmo tempo, o imediatismo da produção das mensagens e das respostas virtualmente reduziu a zero o tempo de assimilação e reflexão sobre as mensagens: em outras palavras, as pessoas escrevem o que simplesmente lhes vem à cabeça e reagem imediatamente. Da mesma forma, embora corresponda a um avanço importante a possibilidade de todos expressarem-se a respeito do que lhes interessa – sejam os interesses particulares (como as músicas de que gosta ou desgosta), sejam os interesses públicos (no caso da política) –, essa expressão desimpedida e imediata recusa filtros de inteligibilidade, ou pelo menos reduz suas possibilidades de atuação. O que entendemos por "filtros de inteligibilidade"? Os indivíduos responsáveis pela elaboração de idéias, de valores e de concepções sobre o mundo, que de modo geral também são conhecidos por "intelectuais" e que em outras épocas eram sacerdotes. É certo que estou entendendo aqui que os "filtros de inteligibilidade" teriam o papel de elaborarem idéias e de, ao transmiti-las, apresentarem-nas evitando radicalismos, intolerâncias etc. Também é certo que, historicamente, à direita e à esquerda, muitos desses mesmos intelectuais foram (e são) os responsáveis pela elaboração e pela transmissão de concepções violentas, agressivas, intolerantes; não se deve pensar apenas nas formulações racistas, que são as mais simples de considerar e (com justiça) as mais facilmente criticáveis, mas temos que incluir também pensadores que se diziam (e dizem) "progressistas" e que, em nome de suas concepções de "progresso", incentiva(va)m a violência, a agressividade e por aí vai. Como em outros momentos destas reflexões, é necessário observarmos que, mesmo que haja casos contrários ao ideal que propomos, nem por isso esse ideal torna-se menos correto e menos necessário.

Enfim, a redução brutal da importância dos "filtros de inteligibilidade", dos intelectuais, tem duas conseqüências importantes para a presente discussão.

(1) Cada indivíduo que está postado em frente ao seu computador, ou ao seu tablet, ou ao seu smartphone, arroga-se capacidades intelectuais, morais, técnicas, científicas que o mais das vezes não possui, apenas porque possui os meios técnicos – o acesso à internet – para tal arrogância e porque há a concepção difusa e confusa segundo a qual a cidadania consiste em todos poderem palpitarem sobre tudo o tempo todo. O que está em questão aí é a qualidade moral, científica, técnica e mesmo política dos cidadãos, assim como a responsabilidade que todos deveriam ter ao manifestarem-se na vida política. Muitos pensadores políticos e muitos pensadores ligados à cultura (e mesmo à criação da internet) já alertaram para os sérios problemas políticos e sociais relacionados a tal tipo de comportamento. Sim, sem dúvida que a cidadania implica a participação; entretanto, para participar é necessário estar preparado para isso, além de considerar as conseqüências dos próprios atos: embora palpitar na internet possua custos financeiros baixíssimos, os resultados morais, sociais e políticos do palpitismo desenfreado não são baixos.

(2) De maneira estreitamente relacionada ao problema anterior está o caráter isolado das interações realizadas por meio da internet. A despeito da expressão "redes sociais", não há propriamente interação interpessoal e, daí, social entre os indivíduos na internet; como já se observou inúmeras vezes, o que há são indivíduos que, isolados em seus computadores, publicam mensagens e reagem a elas: o relacionamento pessoal, o tête-à-tête vai perdendo espaço. Em termos políticos, o problema com isso não é somente a perda das relações pessoais diretas, mas a perda dos limites que as interações pessoais impõem à emissão e à reação das mensagens políticas: por exemplo, é muito diferente xingar alguém que não se vê, cujo conhecimento é dado apenas por um abstrato "perfil" na internet, e xingar pessoalmente, face a face, essa mesma pessoa; a diferença em cada um dos casos está em que o tête-à-tête torna muito mais difícil esse gênero de comportamento. Ora, a assustadora facilidade com que se reage na internet tem, cada vez mais, extravasado do ambiente eletrônico para a vida real, de tal sorte que os indivíduos e os grupos tornam-se mais e mais agressivos e menos reflexivos. Um outro aspecto negativo do declínio das interações interpessoais é que a quantidade gigantesca de recursos e elementos presentes na comunicação não-verbal e mesmo variados os recursos da comunicação verbal, como as entonações, os olhares, a linguagem das mãos e do corpo etc., perdem-se na internet; essa perda empobrece a comunicação e facilita os mal-entendidos e os desentendimentos.

Vale notar que os dois pontos acima, conjugados, sugerem que a chamada "democracia digital" é, em larga medida, irrealizável: as propostas de plebiscitos, referendos e mesmo eleições realizadas diretamente dos computadores de cada um prescindem justamente do diálogo, dos debate, das interações interpessoais, além de estimular e basear-se no palpitismo.

Após essa longa e importante digressão, voltemos ao ponto que nos interessa neste momento: o valor dos discursos para a vida política. Já observamos em diversos momentos que a boa política é aquela orientada para o bem comum, para a realização da res publica; ora, para conseguir-se isso, é necessário que os vários indivíduos e grupos interajam entre si – e essa interação ocorre por meio das palavras, dos discursos. As conversas, as negociações, as discussões, os compromissos ocorrem todos por meio das palavras; como se diz popularmente no Brasil, "é conversando que a gente se entende".

O valor que podemos atribuir às palavras e aos discursos é tão grande que já houve autores que afirmaram que a "essência" da política são os discursos – e que, inversamente, quando os discursos cessam, quando as palavras calam-se, acaba-se também a política e entra-se no âmbito da violência. Em sentido um pouco próximo, alguns autores afirmaram que há ações que se realizam única e exclusivamente por meio das palavras: o juiz que declara casados os cônjuges realiza uma ação falando: nesses termos, podemos entender o meio da política como sendo o discurso.

Falamos antes que um dos defeitos que se pode identificar nos líderes políticos é a demagogia, entendida como o traço do político cujos discursos são vazios. É claro que podemos entender a demagogia de outras formas, como no caso do "populismo", isto é, da exploração política das paixões do povo; mas, para as reflexões que desenvolvemos aqui, entender a demagogia como a prática de discursos vazios é aceitável e útil.

As palavras ditas e os discursos pronunciados devem ser valorizadas. Quando, há pouco, notamos que a internet estimula o palpitismo, quisemos com isso preparar o terreno para indicar que nossa época caracteriza-se, tristemente, pelo desperdício das palavras, pela desvalorização dos discursos pronunciados. Há algumas patologias político-intelectuais ligadas às idéias de "discurso" e de "discurso político" e que se desenvolveram nas últimas décadas: por um lado, o pós-modernismo afirma que "tudo é discurso", chegando às vezes a afirmar que "não existe nada fora do discurso": com isso, a realidade concreta, aquela a que a política faz referência e sobre a qual produz seus efeitos, é negada e obscurecida; a vida, suas dificuldades e suas belezas são reduzidas a meros jogos de palavras. Por outro lado, o "politicamente correto" estipula censuras sistemáticas sobre as palavras e os discursos políticos, ou melhor, sobre quaisquer palavras e discursos, em nome da defesa da sensibilidade de minorias que se entendem como essencialmente frágeis e particularistas.

Essas duas patologias deturpam e prejudicam o entendimento do discurso político. Em contraposição a tais patologias, bem como em contraposição às palavras vazias e inflacionadas, à verborragia que caracteriza o demagogo, assistimos no filme a um belo e emocionante discurso, apresentado em sua inteireza como clímax e conclusão da trama: é o pronunciamento de Jorge VI no final de setembro de 1939, conclamando a união nacional da Inglaterra, alertando o povo sobre os terríveis sofrimentos e sacrifícios vindouros, mas afirmando também o apoio dos líderes políticos ao povo, a responsabilidade pelos destinos coletivos, o evitar até o último momento da guerra e defesa incessante dos interesses nacionais (entendidos aí como o combate a um inimigo agressivo). Dito de outra maneira, um grande discurso é aquele que condensa, expõe e orienta os valores, as idéias e os sentimentos coletivos em determinada direção, com isso inspirando a população: é o que vemos Jorge VI fazer de modo exemplar no final do filme.

Podemos pensar em outros exemplos; vêm-nos à mente três trechos de discursos, todos eles tirados da história dos Estados Unidos. Em 1942, quando esse país também ingressava na II Guerra Mundial, Franklin Roosevelt, após afirmar que não queria entrar no conflito e que sacrifícios avizinhavam-se, observou que a única coisa que deveriam temer era o próprio medo. Dando um salto no tempo, nos anos 1960 John Kennedy pronunciou dois discursos que se tornaram justamente lendários: em 1962, ao tratar do programa espacial estadunidense, que acabaria resultando na primeira alunissagem em 1969, Kennedy questionava-se porque se tinha decidido fazer algo tão complicado; sua resposta foi que a viagem à Lua deveria ocorrer não porque era fácil, mas, ao contrário, justamente porque era difícil. No ano seguinte, em 1963, em Berlim, logo após a construção do Muro de Berlim (que dividia a cidade em duas partes, uma controlada pela União Soviética e outra, isolada do resto do país, controlada pelos Estados Unidos), Kennedy disse que o apoio dos EUA à Berlim ocidental era tão grande e tão sério que ele mesmo via-se como um berlinense (é o seu famoso "Ich bin ein Berliner" – "eu sou um berlinense"). Nesses três exemplos, as frases-síntese que apresentamos são muito inspiradoras, ao mesmo tempo em que indicam a direção política a tomar; são discursos "densos", ricos, que honram a prática política.