Religião na escola
A cena, que teve lugar numa escola pública de Samambaia, cidade-satélite de Brasília, abre a reportagem de Angela Pinho sobre o ensino religioso no Brasil, publicada no último domingo na Folha. É um retrato perfeito da encrenca em que essa disciplina, que vem crescendo e hoje abarca mais ou menos a metade das escolas do país, nos lança.
Se as historietas bíblicas são reais, como quer a professora, então nós temos vários problemas. Procedamos por ramos do saber, a começar da física. De acordo, com Josué 10:12, Deus parou o Sol para que os israelitas pudessem massacrar os amorreus. Mesmo que eu não duvidasse da onipotência do Senhor, pelo que sabemos hoje de mecânica, nada na Terra sobreviveria a uma súbita interrupção de seu movimento de rotação. Em quem o aluno deve acreditar, no professor de religião ou no de ciência?
A física não o comoveu? Que tal a geologia? Pela Bíblia, a Terra tem cerca de 6.000 anos --5.771, a confiar nas contas dos rabinos. Pela geologia, são 4,5 bilhões. É difícil, para não dizer impossível, conciliar a literalidade das Escrituras com a existência de fósseis com idades substancialmente maiores que os seis milênios. Do lado de qual professor o aluno deve perfilar-se?
Talvez o problema esteja nas ciências "duras". Passemos às humanidades. A Bíblia, como todo mundo sabe ou deveria saber, é a fonte da moral, e os ensinamentos que ela traz nessa área são incontestáveis. Será? Em várias passagens, o "bom livro" autoriza ou mesmo manda fazer coisas que hoje consideraríamos horríveis, como vender nossas filhas como escravas (Êxodo 21:7) e assassinar parentes que abracem outras religiões (Deuteronômio 13:7). Se julgamos que a ética se aprende através de exemplos livrescos, sugiro trocar as Escrituras pelo mais benigno Marquês de Sade.
OK. Alguém pode argumentar que essa professora é uma exceção. Afinal, ela parece estar sustentando a inerrância da Bíblia, conceito que, no Brasil, é defendido por poucas religiões, notadamente adventistas e testemunhas de Jeová. Para as demais, as Escrituras não precisam e nem podem ser tomadas ao pé da letra.
Admito que essa mudança de discurso nos livra de algumas das dificuldades mais vexatórias --já não precisamos conciliar o criacionismo da Terra jovem com as aulas de ciência--, mas nem de longe acaba com elas.
Como já expliquei numa coluna antiga, embora seja em teoria possível juntar uma teologia um bocadinho mais sofisticada com a seleção natural neodarwinista, essa conciliação acaba resultando num Deus menos atuante, que cria as leis do universo e se retira. Ocorre que esse é o Deus de Newton e de Leibniz, mas não o das pessoas que vão a cultos. Para elas, um Deus que não ouve preces e não interfere nos destinos dos humanos é inútil. E esse Deus que elas querem --e que os sacerdotes pretendem colocar nas aulas de religião-- é, pelo menos no plano psicológico, incompatível com a ciência contemporânea que deveria ser ensinada nas escolas.
Não estou evidentemente sugerindo que as pessoas devam rifar Deus para ficar com a ciência. Essa é a minha opção, mas não acho que deva impô-la a ninguém. O simples fato de uns 90% da humanidade manifestar preferências religiosas é um bom indício de que essa é uma característica da espécie, como a tendência a gostar de música ou aquela quedinha por substâncias psicoativas. A verdade é que o ser humano tem algo de esquizofrênico. Só conseguimos conchavar crenças religiosas, que de algum modo acabam apelando ao impossível ou improvável, com o rigor lógico exigido pelo método científico, porque nosso cérebro está dividido em módulos. "Grosso modo", quando a parte responsável pelo pensamento lógico está ativa, inibe a área da religião, e vice-versa. Com esse mecanismo, as contradições, quando não passam despercebidas, tornam-se digeríveis.
Até para facilitar esse processo, não convém que religião e ciência sejam ensinadas no mesmo espaço. Para que a criançada aprenda desde cedo a distinguir o discurso do "lógos" (científico) do do "mythos" (religioso), é melhor que a escola trate apenas da ciência e que a religião fique a cargo dos templos.
Cuidado, não estou afirmando que não seja possível estudar a religião com ferramentas científicas. Em princípio, a sociologia, a antropologia, a psicologia e a neurociência estão aí para isso. Mas convém lembrar que estamos falando aqui de crianças de 6 a 15 anos, muitas das quais mal conseguem aprender português e as operações aritméticas básicas. Não me parece que a abordagem científica da religião deva ocupar um lugar muito alto na lista de prioridades. De resto, duvido que o lobby que advoga pelo ensino religioso esteja ansioso para ver a fé submetida a exame crítico.
Para além da cabeça da garotada, o ensino religioso na rede oficial também gera uma série de problemas institucionais. Como eu escrevi em texto que acompanhou a reportagem principal, a existência dessa disciplina em escolas públicas fere a separação entre Estado e igreja.
Pelo menos em teoria, o Brasil é um Estado laico. Não há religião oficial e o artigo 19 da Constituição proíbe expressamente o poder público de estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los ou manter com eles relações de dependência ou aliança. É claro que a teoria soçobra antes mesmo de chegarmos ao artigo 19. O próprio preâmbulo da Carta invoca a "proteção de Deus", e o artigo 210 prevê o ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental.
Vale aqui observar que a única Constituição verdadeiramente laica que tivemos foi a de 1891, que rompeu com a Igreja Católica e eliminou quase todos os seus privilégios. As que a sucederam reintroduziram o ensino religioso.
Embora doutrinadores gostem de dizer que não há contradição entre os artigos 19 e 210, é forçoso reconhecer que colocá-los lado a lado gera pelo menos um mal-estar. Não é o único. A diferença é que, ao contrário de outros estrépitos constitucionais, que conseguem passar relativamente despercebidos, esse está produzindo consequências.
Por considerar que o Estado não pode regular matéria religiosa sem romper sua neutralidade diante delas (que caracteriza o laicismo), o CNE (Conselho Nacional de Educação) optou por não fixar parâmetros curriculares nacionais para a disciplina. A decisão é institucionalmente correta (e constitui uma prova indireta do erro que foi colocar o ensino religioso na escola pública), mas gerou um deus nos acuda, onde cada Estado definiu ao sabor da conjuntura política local como a matéria seria ministrada.
As pesquisadoras Debora Diniz, Tatiana Lionço e Vanessa Carrião, em "Laicidade e Ensino Religioso no Brasil", traçam um panorama desse pequeno caos.
Pelo que elas puderam levantar, Acre, Bahia, Ceará e Rio de Janeiro optaram por um sistema confessional, que não se distingue da educação religiosa oferecida em escolas ligadas a igrejas. Não é preciso PhD em Direito para constatar que esse tipo de ensino afronta o dispositivo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação que veda o proselitismo no ensino religioso.
Os demais Estados menos São Paulo escolheram o modo interconfessional, no qual as religiões hegemônicas se unem contra as mais fracas e contra ateus e agnósticos para definir um núcleo de valores a ser ensinado aos alunos. Tampouco é um exemplo de defesa dos direitos das minorias.
Apenas São Paulo fez uma leitura um pouco mais crítica dos mandamentos constitucionais e se definiu pelo ensino não confessional. Pelo menos no papel, aqui as crianças têm aulas de história das religiões, no que é provavelmente a única forma de juntar sem produzir muitas fagulhas o ensino religioso com o princípio da separação entre Estado e religião.
Resta apenas responder porque a laicidade é assim tão importante. O problema com as religiões reveladas é que elas trazem absolutos morais. Se a lei foi baixada pelo Altíssimo, apenas querer discuti-la já representaria uma segunda ofensa contra o Criador. E utilizar absolutos na política --religiosos ou ideológicos-- é ruim porque eles a descaracterizam como instância de mediação de conflitos. O remédio contra isso, como já intuíram no século 18 os "philosophes" do Iluminismo francês e os "founding fathers" dos EUA, é a separação Estado-igreja. Ela facilita o advento da política como arte da negociação e, mais importante, favorece a noção de que minorias têm direitos que devem ser protegidos mesmo contra a maioria. Aqui, paradoxalmente, o laicismo se torna a principal força a proteger as religiões umas das outras.