20 outubro 2008

Problemas do Estado laico brasileiro: a Universidade (Confessional) Federal do Paraná


(Uma versão bastante resumida deste artigo foi publicada na Gazeta do Povo em 28.10.2008; cf. aqui.)




Para iniciar este artigo, convido o leitor a considerar as seguintes situações:
  1. Em um final de semana em Curitiba, vou a um supermercado e sou abordado por servidores de uma universidade paranaense pedindo doações para o hospital universitário; ao fazer minhas compras, procuro colaborar com a campanha e separo feijão e leite mas, ao entregar as doações, sou saudado com um “deus lhe pague”.
  2. Cotidianamente os servidores dessa mesma universidade usam o serviço institucional de correio eletrônico para fazerem propaganda religiosa ou tendo versículos bíblicos com assinatura institucional.
  3. Comissões internas de caráter técnico-administrativo iniciam ou terminam seus relatórios rogando a deus seus favores.
  4. Tendo que usar os serviços do hospital universitário, ao sair fui presenteado por servidores dessa universidade com alguns folhetos explicativos, entre os quais se encontrava um papel com alguns versículos bíblicos, explicando como deus é bom.
  5. Na biblioteca dos cursos das Ciências Naturais e das Engenharias, logo na entrada, em uma mesa em destaque e decorada com uma toalha de renda e um ramo de trigo, há uma grande bíblia, aberta em um “capítulo edificante”.
  6. Na biblioteca dos cursos de Ciências Humanas, sozinho em uma parede e com grande destaque, há um crucifixo com cerca de um metro de comprimento, belamente entalhado.
  7. Nos corredores do prédio que abriga os cursos de Ciências Humanas há vários cartazes em que se lê: “Missa”, “Culto”, “Encontre Jesus”.
  8. Para comemorar o cinqüentenário da Capela Universitária, a Reitoria da universidade encomendou uma missa e deu grande destaque a esse evento.
  9. Ao perguntarmos se essas situações são corretas, as respostas que ouvimos são no sentido de que isso é correto, ou que “sempre foi assim”, ou recebemos um raivoso descaso.
O leitor deve pensar que se trata ou de uma universidade católica ou de alguma outra instituição confessional de ensino superior. No entanto, todas as situações descritas acima são verídicas e ocorrem na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Além disso, todas elas são absolutamente corriqueiras, ou seja, estão longe de serem exceções ou de serem fatos isolados. Aliás: elas são corriqueiras em inúmeras outras universidades e outras instituições públicas do Brasil, de tal sorte que a UFPR é apenas um exemplo de uma situação generalizada no Estado brasileiro.

E daí que essas situações ocorrem na UFPR? Daí que a UFPR é uma instituição laica, que não professa nem pode professar nenhuma crença religiosa. Isso significa que a Universidade não pode ostentar crucifixos nem colocar bíblias para “reflexão pública” nas bibliotecas ou em qualquer outro recinto; também significa que a Universidade não pode encomendar missas ou cultos religiosos para o que quer que seja; também significa que os servidores da Universidade não podem referir-se a deus ou a suas crenças pessoais enquanto estiverem trabalhando na Universidade ou estiverem representando-a. As universidades particulares ou as confessionais têm total liberdade para exprimirem as crenças que lhes aprouverem, das maneiras que considerarem corretas: essa é uma possibilidade que as universidades públicas, entretanto, não possuem. Por que não?

Porque as universidades públicas integram o Estado brasileiro e o Estado brasileiro é laico, ou seja, não tem crença nenhuma. Há quem afirme, com bastante maldade, que o Estado laico é um “Estado ateu”, mas isso é falso. O Estado laico estaria mais para “Estado agnóstico”: afinal, o ateísmo consiste em negar deus, o que equivale a assumir uma posição religiosa, ao passo que o “Estado agnóstico” seria aquele que não decide a respeito das crenças individuais e, portanto, nesse sentido, não assume nenhuma perspectiva.

O princípio da laicidade do Estado é tão simples de enunciar quanto, à primeira vista, difícil de praticar. Como vimos, ele consiste simplesmente em que o Estado não tem religião, o que equivale dizer que as estruturas políticas e burocráticas – os órgãos públicos, em outras palavras – não podem beneficiar nenhuma religião nem podem professar nenhuma fé.

A crença religiosa dos cidadãos brasileiros é matéria de foro íntimo, não de foro público. Isso tem uma conseqüência muito clara e direta para o que se refere ao Estado: nem os servidores públicos nem os ocupantes de cargos públicos podem referir-se às suas crenças íntimas enquanto estiverem no exercício de suas funções. Afinal de contas, enquanto estão no exercício de suas funções, esses cidadãos referem-se ao conjunto da coletividade, isto é, a todos os brasileiros, e não apenas aos membros de suas próprias igrejas[1].

Embora a laicidade baseie-se em uma negação – a proibição de o Estado professar qualquer crença –, os benefícios que ela traz são enormes; na verdade, o Estado laico é o garantidor das liberdades que podemos chamar, sem margem para dúvidas, de liberdades verdadeiramente fundamentais, que são as de pensamento e de expressão: sem elas, ou seja, sem que seja possível a cada indivíduo pensar por si próprio e dizer o que pensa sem medo de retaliação, nenhuma outra liberdade é possível e a cidadania torna-se apenas uma palavra.

O Estado laico não é uma instituição gratuita. Isso quer dizer que ele não é nem fruto do acaso nem que não ele não tem valor – nem, além disso, que ocorra sem custos.

Ele começou a ser praticado e teorizado quanto as guerras motivadas pelas religiões cessaram na Europa, no século XVII. Até então, ser cidadão de um país equivalia a professar uma crença específica; a partir de então, que cada cidadão devia ao seu governo obediência às leis, mas não necessariamente devia seguir a mesma religião que seu governante. Foi mais ou menos nessa época que as religiões tornaram-se tema de foro íntimo, ficando no foro público os temas propriamente políticos[2]. Ainda assim, apenas no transcurso das revoluções Americana e Francesa, no final do século XVIII, é que surgiram os primeiros estados completamente laicos, em que o Estado não obriga os cidadãos a seguir nenhuma religião porque o próprio Estado não professa nenhuma religião.

No Brasil, o Estado laico foi instituído em 1890, com a proclamação da República, contra o privilégio que a Igreja Católica possuía como religião oficial. Com Benjamin Constant à frente, os participantes da proclamação buscavam uma sociedade de liberdades, com desenvolvimento e justiça social. Nos Estados Unidos, a separação entre a Igreja e o Estado foi uma solução de compromisso, pois não se determinou nenhuma religião como oficial porque não houve acordo a respeito de qual seria a melhor: aqui, ao contrário, consagrou-se desde o início como princípio norteador do Estado republicano que a garantia fundamental para as liberdades seria o Estado não possuir nenhuma religião.

Os fundadores da UFPR tinham exatamente os mesmos valores: há quase um século, ao criarem em 1912 a então Universidade do Paraná, Benjamin Lins, Victor Ferreira do Amaral e, mais do que todos, Nilo Cairo queriam desenvolver a sociedade paranaense em termos materiais, intelectuais e morais por meio dos estudos de nível superior. Juntamente com esses valores fundamentais, tinham clareza de que a separação entre a Igreja e o Estado é uma condição fundamental para que qualquer sociedade progrida. Não seria exagero dizer que eles tinham horror à idéia de um Estado que patrocinasse ou permitisse em seu interior práticas religiosas – mas, detalhe: práticas religiosas no e pelo Estado, mas não na sociedade.

Como dissemos, a laicidade não ocorre sem custos. Qual o seu custo? É este: cada indivíduo e cada igreja deve limitar suas ações no que se refere ao Estado, no sentido de respeitar a laicidade: não impor sua crença ao Estado nem usar o Estado para impor sua crença. No que se refere às igrejas, como há um aspecto institucional, é mais simples de perceber quando ocorre a sua interferência, mas no que se refere aos indivíduos a fiscalização da sociedade é bem mais difícil. Ainda assim, é necessário formular sem rodeios como deve ocorrer a autolimitação da parte dos indivíduos.

De maneira bastante direta: os indivíduos que atuam no Estado têm que ter claro que, como servidores ou agentes públicos, não podem professar nenhuma religião: não podem falar em deus, não podem distribuir panfletos de caráter religioso, não podem exibir símbolos religiosos em seus ambientes de trabalho. Isso pode parecer um esforço muito grande, mas não é – e por dois motivos.

Em primeiro lugar, quando um cidadão comum vai a uma repartição pública e vê um servidor público falando em deus, portando símbolos religiosos ou distribuindo panfletos com esse teor, o que o cidadão percebe não é um outro cidadão manifestando sua fé particular, mas o Estado como um todo, representado pelo servidor, demonstrando sua adesão a determinados princípios religiosos. Em outras palavras, o cidadão comum verá que as autoridades beneficiam uma crença e, portanto, afirmam que essa crença é a “correta” para ser seguida. Não há dúvidas de que essa é uma forma de constrangimento, de imposição de crenças, de opressão.

O segundo motivo porque a autocontenção de servidores e agentes públicos não exige um grande esforço ou não é muito pesada é o seguinte. Imagine-se um trabalhador no mercado de trabalho: ao ingressar em qualquer emprego, ele submete-se a uma disciplina específica – a um código de conduta. São regras escritas e não-escritas que devem ser seguidas para o bom desempenho das atividades, com procedimentos a realizar e ações a evitar. Eis alguns exemplos simples mas que ilustram com clareza a idéia: não se pode falar palavrões, não se pode ir mal-vestido (ou, por outra: em vários casos é necessário usar determinados tipos de roupas), não se pode ir trabalhar alcoolizado e assim por diante. Todos esses exemplos são proibições que os trabalhadores aceitam como corretas para o bom desempenho de suas funções. Essas proibições ocorrem para o ambiente do trabalho, não para o espaço doméstico: em suas casas, no foro íntimo, os indivíduos têm liberdade para fazer mais ou menos tudo o que desejam.

Ora, se é aceitável que os indivíduos adaptem suas condutas para o trabalho em geral, deixando de agir de determinadas maneiras e agindo de outras formas em relação a como procedem em suas famílias, é ainda mais aceitável que os servidores públicos tenham um comportamento claro para realizarem suas atividades: afinal de contas, de modo geral é possível aos cidadãos escolherem uma empresa ou outra, mas os serviços públicos são universais. A bem da verdade, no âmbito do serviço público federal, existe uma lei que estipula precisamente esses comportamentos aceitáveis e inaceitáveis: trata-se do Decreto n. 1 171/94, o Código de Ética do Servidor Público Civil Federal. No caso da religião, se mesmo em empresas privadas é consensual que não se deve conversar esse assunto, o que se dirá no âmbito do Estado!

Apesar de todos esses motivos para a laicidade do Estado, há dois argumentos especialmente daninhos que se utiliza para tentar justificar o uso de símbolos e a prática de cultos religiosos no âmbito público: digo “argumentos”, mas são mais sofismas políticos. O primeiro diz respeito às crenças da população em geral; o segundo baseia-se em uma certo tradicionalismo.

Comecemos pelo segundo sofisma. Para justificar a celebração pelo Estado de determinada crença religiosa, muitos afirmam que se tratam de práticas há muito tempo praticadas e que já se tornaram tradicionais. Exemplos: a transmissão em emissoras públicas (isto é, estatais) de missas e cultos e a presença de crucifixos em bibliotecas públicas, tribunais, parlamentos e espaços públicos de modo geral. O problema aqui é que essa “tradição” baseia-se no desrespeito a um dos princípios fundamentais da República brasileira: é como querer justificar o coronelismo ou a corrupção ou a miséria no país afirmando que eles são “tradicionais”; é querer justificar algo errado porque esse errado existe faz tempo e é mais ou menos comum. Além disso, essas “tradições” são vistas como imutáveis e, literalmente, sacrossantas, isto é, intocáveis: é o raciocínio que se utiliza para justificar, por exemplo, o uso da violência física no trote aos calouros das universidades; ou para que bares, lanchonetes e restaurantes sofram enormes calotes por estudantes de Direito no dia 11 de agosto (o “dia do pindura”); ou que mulheres sejam espancadas por maridos supostamente traídos; ou que, em países que aceitam a xaria – a lei tradicional do islã – ladrões tenham as mãos decepadas e mulheres consideradas adúlteras sejam apedrejadas até a morte.

O argumento que se refere à religião da população brasileira é mais especioso, mas não é menos falso. O fato de a maioria da população brasileira ter uma determinada crença é freqüentemente invocado como justificativa para que o Estado adote práticas derivadas diretamente dessa crença; em outras palavras, a “vontade da maioria da população” é uma justificativa para que a (vontade da) minoria seja desconsiderada. “Maioria” e “minoria”, aqui, podem variar, é claro: no caso específico do Brasil podemos considerar a “maioria católica” – cerca de 73% da população – ou a “maioria cristã” – cerca de 90% da população –; assim, apenas em casos específicos é possível falar simplesmente em “maioria”, de tal sorte que na prática há apenas maiorias, no plural. Mas a questão é que tanto faz quem é maioria ou quem é minoria: o que importa é que as minorias devem ser respeitadas como cidadãs, ou seja, em seus valores e, portanto, a maioria não pode usar sua força numérica para impor suas crenças à minoria.

A relação entre maioria e minoria remete a uma diferença entre “democracia” e “república”. Enquanto a democracia é o governo da maioria, a república é o governo baseado na lei e que respeita as minorias. Sem dúvida que essa definição que apresentei de democracia é sujeita a polêmicas, mas a verdade é que não existe uma democracia tout court, exceto se considerarmos a experiência da Atenas antiga, que foi celebrizada durante a magistratura de Péricles, no século V a. c.; por outro lado, se pensarmos nos grandes teóricos republicanos, especialmente os das revoluções Francesa e Americana, eles sempre objetaram à democracia a possibilidade de tirania das maiorias que ela pode criar.

Para evitar mal-entendidos, quero deixar claro que de maneira alguma considero que a democracia, como ela é percebida nos dias atuais, seja simplesmente a imposição das vontades da maioria sobre a minoria oprimida. Entretanto, a verdade é que o argumento que justifica ser legítimo, no Brasil, o Estado assumir ares cristãos baseia-se exatamente nessa concepção de democracia, ignorando os elementos republicanos de respeito às diferenças e de Estado de Direito. Essa concepção de democracia, claro, é bastante conveniente, pois beneficia quem pode mais e manda às favas quem pode menos, desconsiderando a idéia de cidadania, isto é, o respeito universal aos membros de uma coletividade política.

Essa idéia de democracia religiosa majoritária já foi utilizada no Brasil: durante a Guerra Fria, governos progressistas, como o de Juscelino Kubitschek, e governos autoritários, como os dos militares, fizeram apelo constante ao caráter supostamente cristão do país. O problema que surge é o seguinte: se tivermos que escolher – e não há dúvidas de que se trata aqui, precisamente, dessa escolha – como definiremos o Brasil, como um país republicano ou um país cristão? O que nos define como comunidade política é uma crença compartilhada pela população ou é o respeito universal a leis universais?

Cada uma dessas definições tem conseqüências claras e muito diversas entre si. Se o Brasil é definido pelo respeito às leis, para ser brasileiro basta respeitar as leis brasileiras e cumprir as obrigações cívicas definidas por essas leis: esse é o conceito de cidadania definido durante a Revolução Francesa. De acordo com essa perspectiva, a partir de 1792 – ano da proclamação da I República francesa – para ser francês não importava mais se cada indivíduo era judeu, católico, huguenote (protestante) ou se nascera na Alemanha, na Inglaterra, na China ou no Zaire: bastava aceitar e seguir as leis e os usos franceses (além de falar francês).

Por outro lado, se o que define o brasileiro é a adesão à religião cristão, a conseqüência direta é que os não-cristãos não são brasileiros, ou melhor, não são “verdadeiros” brasileiros; discordar de ou criticar alguma das religiões cristãs é alta traição, é crime de lesa-pátria. No contexto da Guerra Fria, era comum denunciar os crimes que os soviéticos praticavam contra quem discordava dos dogmas comunistas – afinal de contas, o comunismo era a doutrina oficial do Estado –, incluindo aí todos os que confessavam crenças religiosas; mas muitas das pessoas que denunciavam esses distantes crimes do comunismo praticavam as mesmas ações em casa, ou seja, para o que nos interessa, o Brasil: os não-cristãos eram sujeitos a suspeitas a que os cristãos não estavam.

Outros exemplos semelhantes são as perseguições que religiosos nos Estados Unidos promovem contra quem discorda deles ou simplesmente não é da mesma religião que eles (nos dias atuais, em particular os muçulmanos): não é o que a candidata a vice-Presidente na chapa de John McCain, Sara Palin, tem feito a respeito de Barack Obama, ao sugerir que “ele não é como nós [cristãos]”? Ou, ainda, os atos de profunda intolerância praticados pelos talibãs no Afeganistão ou pelo regime dos aiatolás no Irã[3]?

A verdade é que os governantes brasileiros não estão muito atrás desses exemplos e dão péssimo exemplo à população, rejeitando de maneira demagógica a laicidade do Estado: sejam os presidentes da República que inscreveram nas cédulas “Deus seja louvado” e, depois, deixaram essa frase em negrito; sejam os autores da Constituição Federal de 1988 que inseriram um agradecimento a deus no “Preâmbulo” da Carta Magna; sejam governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores que afirmam governar com base na vontade divina; seja o Presidente da República que a todo instante fala em deus; sejam os ministros de Estado que usam verbas públicas para viajarem a encontros religiosos ou para patrocinar encontros de suas seitas; seja o governador do Paraná que em 2003 resumiu as comemorações dos 150 anos do estado a uma missa pública e a palavras de ódio contra empresas transnacionais de soja transgênica.

Mais do que isso. Nas recentes eleições para vereadores municipais, os analistas políticos indicaram uma série de fatores interessantes: as conseqüências eleitorais dos mecanismos de votação; as “vontades populares” expressas pelas novas bancadas de vereadores e assim por diante. Entretanto, um elemento central foi completamente ignorado ou desprezado: a quantidade assustadora de candidatos que fizeram suas campanhas apelando diretamente para os valores religiosos. “Acredita em deus e valoriza o ser humano”, “Evangelizando na política”, “Com deus, por você” foram alguns dos motes das campanhas não apenas em Curitiba, mas, pelo que se pôde perceber pelas matérias jornalísticas divulgadas nos meios de comunicação, no país inteiro. Considerando que os parlamentares devem representar interesses, a pergunta que não quer calar-se é a seguinte: quais os interesses que os candidatos religiosos representam? Quaisquer que sejam, certamente que a laicidade do Estado não está entre eles[4].

À parte algumas importantes iniciativas da sociedade civil – como as organizações não-governamentais Brasil para Todos e Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos e o Observatório da Laicidade do Estado, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) –, a única iniciativa política de que temos conhecimento e que visasa a combater esse gênero de desvio institucional é da autoria da ex-Deputada Federal e ex-Juíza Denise Frossard, que propôs o Projeto de Lei Complementar n. 216/2004, vedando aos sacerdotes o exercício de funções eletivas. Não por acaso, Denise Frossard é da cidade e do estado do Rio de Janeiro, onde, como se sabe, há teocracias em germe faz tempo. É forçoso reconhecer que, também não por acaso, o seu projeto de lei foi rejeitado no Congresso Nacional, onde há crescentes bancadas especificamente religiosas.

Começamos este artigo fazendo referência à UFPR; é importante concluí-lo voltando a ela. Há algum tempo a Universidade comemorou seus 90 anos: apesar da propaganda a favor do “papel que desempenha na sociedade paranaense”, não houve uma única menção aos seus fundadores; na verdade, exceto os historiadores e alguns especialistas em história do Paraná, o fato é que a comunidade universitária ignora completamente quem foram esses fundadores e quais os ideais que os moveram ao criar a então Universidade do Paraná. Pois bem: face à missa que a Reitoria da UFPR mandou rezar e face a todas as manifestações de imbricação entre igreja e Estado na Universidade, essa ignorância não poderia ser mais emblemática. Passamos da Universidade Federal do Paraná para a Universidade Confessional Federal do Paraná.





[1] Isso tem uma outra conseqüência: as religiões não são temas políticos, ou seja, não é possível e não é aceitável, nesse sentido, que se faça campanhas políticas fazendo apelo às crenças individuais de cada um.

[2] Conforme indicou meu amigo Valter Duarte, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), na verdade o processo de laicização como é conhecido atualmente começou no final da Idade Média – mais precisamente na Inglaterra –, quando, por motivos políticos e filosóficos, passou-se a buscar fundamentações não-religiosas para a autoridade política. As obras de John Locke sobre a tolerância, sobre a organização política e sobre o entendimento humano foram importância capital nesse sentido.

[3] Convém notar: esse mesmo raciocínio de comunidade política fundada em valores religiosos – com as conseqüências indicadas acima – foi recentemente utilizado pelo Presidente da República da França e pelo Papa para proibir o ingresso da Turquia na União Européia. Ora, o que Nicolas Sarkozy e Bento XVI pressupõem é que a Europa é essencialmente cristã, deixando de lado 1) o profundo e crescente secularismo das sociedades européias; 2) o caráter principalmente republicano das democracias européias; 3) a importância capital que tiveram os muçulmanos para o desenvolvimento da Europa e mesmo do catolicismo – afinal, sem os árabes não existiria São Tomás de Aquino –; 4) o longo e multimilenar relacionamento político, econômico e cultural entre os europeus e os muçulmanos (particularmente turcos) e 5) o fato de que o único país muçulmano que assumiu convictamente os valores (ocidentais) da secularização e da democratização foi a Turquia. Em suma: essa proibição é uma pérola da intolerância religiosa convertida em argumento político, a serviço do “choque de civilizações”. Não por acaso, por outro lado, Sarkozy e Bento XVI têm defendido o conceito de “laicidade positiva”, segundo o qual é lícito ao Estado professar alguma religião – o que, em outras palavras, é a própria negação da laicidade.

[4] É tão grande a quantidade de infrações ao princípio da laicidade do Estado que seria verdadeiramente cansativo tentar citá-las todas. Por isso, para encerrar aqui essa lista, citamos apenas mais dois exemplos: 1) a existência de capelães concursados na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e, claro, nas Forças Armadas; 2) as reiteradas propostas de “Ensino Religioso” obrigatório no Ensino Fundamental (e, se duvidar, também no Ensino Médio), a ser ministrado, sem dúvida, por sacerdotes.


10 outubro 2008

Comte e os romanos



Os romanos representam para Augusto Comte um caso exemplar de sociedade; em sua opinião, eles foram os que mais se aproximaram do tipo ideal de sociocracia, com a dedicação individual para o benefício coletivo ao longo de inúmeras gerações. Essa valorização não ocorreu desde o início da carreira do fundador da Sociologia: afinal, inicialmente ele tinha em melhor conta a modernidade científica, em seguida a Idade Média católica e, finalmente, a Antigüidade romana. Não se trata de um recuo cada vez maior no tempo nem um romantismo que idealiza o passado para planejar uma suposta reação contra o presente (no sentido de restabelecer atualmente períodos anteriores da história): trata-se de perceber as características públicas e privadas, coletivas e individuais, que os romanos tinham e que são dignas de emulação e imitação.

Não se trata de romantismo nem de reação (isto é, de idealização de um passado para retorno a ele): Augusto Comte estabeleceu, desde o início de sua carreira, uma diferenciação muito clara entre o que chama de “Antigüidade” e “Modernidade”, próxima, em alguns aspectos importantes, à que o suiço Benjamin Constant elaborou em 1819 a respeito das liberdades dos antigos e dos modernos. A bem da verdade, a classificação comtiana é bem mais elaborada que a constantiana: por um lado, ela desenvolveu-se em um primeiríssimo momento como oposição entre a Idade Média (guerreira, feudal e católica) e a modernidade, em particular posterior à Revolução Francesa, de caráter pacífica, industrial e científica. Mas para explicar a transição medievo-moderna, Comte recua no tempo para abarcar, pelo menos, a Antigüidade clássica, tanto por motivos teórico-metodológicos quanto por motivos históricos: historicamente a Idade Média surgiu a partir tanto da desagregação do Império Romano quanto das estruturas sociais criadas e consolidadas pelo Império; do ponto de vista teórico-metodológico, Comte afirmava a visão de conjunto histórico, o que deveria abarcar também a Antigüidade.

O que importa notar, de qualquer forma, é que a Antigüidade opõe-se à modernidade em termos espirituais e temporais da seguinte maneira:

Comparação entre a Antigüidade, a Idade Média e a Modernidade
Âmbito
Antigüidade
Idade Média
Modernidade
Temporal
Militar
Pacífico-industrial
Conquistador
Defensivo
Espiritual
Teológico
Positividade
Politeico
Monoteico

Essa é uma comparação, mas, no pensamento de Comte, é bem mais uma transição de sociedades guerreiras para pacíficas, com um estágio intermediário de guerreiros que, em vez de atacar, defendem-se de agressões externas e corresponde à lei dos três estados da atividade prática. O que importa notar, de qualquer forma, é que o retorno à Antigüidade não é possível porque as respectivas sociedades organizam-se de maneira diversa. Ora, dizer isso de maneira tão direta e simples é apenas afirmar uma platitude; importa insistir, assim, no que poderíamos chamar de “lógica social profunda”: enquanto a modernidade busca conhecer a realidade como ela é e o conforto material, a Antigüidade compreendia a realidade por meio de seres supra-humanos e buscava a glória e a honra nacionais. Não apenas as sociedades visam a objetivos bastante diversos como, de qualquer forma, um retorno à Antigüidade, na visão comtiana, teria como resultado apenas forçar a lei da história a repetir-se em sua marcha.

Uma outra indicação de que Comte não deseja um retorno ao passado[1] é a avaliação que fez de Maquiavel, no Sistema de filosofia positiva: “Maquiavel, antes deles [Hobbes e Bossuet], fez algumas felizes tentativas parciais para vincular a explicação de certos fenômenos políticos a causas puramente naturais, embora tenha desfigurado sua obra por uma apreciação em todos os sentidos viciosa da sociabilidade moderna, que ele não pôde jamais distinguir suficientemente da antiga” (Comte, 1895, p. 491). À parte a crítica ao imoralismo e ao amoralismo de Maquiavel, Comte critica aqui a emulação maquiavélica da antigüidade romana e sua incompreensão do caráter pacificante da modernidade.
Antes de tratarmos mais detidamente da avaliação comtiana dos romanos, convém notar que tal valorização contradiz a voz corrente segundo a qual a Religião da Humanidade seria uma imitação do catolicismo, um mero “catolicismo sem deus”, como disse Thomas Huxley. Se tal afirmação procedesse, a Idade Média católica seria idealizada não apenas como um período de prevalência dos valores morais sobre o conjunto da sociedade, com um clero independente – que é como Augusto Comte percebe esse período – mas também como exemplo de organização e ação política prática. Em termos especificamente sociais, ou seja, de incorporação de diferentes povos em uma cidadania que lhes concedia condições de vida, é Roma que é percebida, mutatis mutandis, como modelar.
Mais: Comte relevava as perseguições que Trajano fez aos cristãos: “[...] Desde Cipião e César até Trajano e Constantino, os pensadores e os homens de Estado sentiram de mais a mais que o conjunto do movimento romano permitia a prevalência das noções positivas sobre as crenças teológicas ou metafísicas e a atividade industrial sobre a vida guerreira. Falhos de um estudo assaz preciso sobre a marcha humana, eles desconheceram inteiramente a necessidade da transição monoteica e feudal. Os melhores dentre eles foram assim conduzidos bastante freqüentemente a sujar seus nomes com as atrozes perseguições conduzidas sobre os verdadeiros promotores espontâneos do nobre regime que não cessou de seguir à procura de um tipo abstrato” (Comte, 1851, p. 471-472). “Habituados, após a ditadura, a conceber sua própria evolução como uma preparação necessária ao estado final da humanidade, os romanos parecem poder facilmente compreender a nova transição, complemento natural da fase anterior.. Mas, falhos de uma teoria histórica, o advento de uma ordem normal pareceu-lhes tão imediato quanto aos cristãos, ainda que eles se formassem sob outras noções. Longe de reconhecerem a necessidade da transição monoteica, eles a julgaram diretamente hostil ao conjunto de nossos destinos. Por profunda e funesta que tenha sido esse erro, ele devia ser inevitável, considerando os vícios, intelectuais e morais, da nova doutrina, em uma época em que ninguém podia prever o quanto eles seriam neutralizados pela situação ocidental. Tácito e Trajano são plenamente excusáveis de terem considerado a fé nascente como inimiga do gênero humano, haja vista a impossibilidade de pressentir então uma reação social que não é hoje compreendida senão pelos verdadeiros filósofos” (Comte, 1853, p. 410-411).
Quais são os elementos romanos que Augusto Comte valorizava?
  1. A destinação da vida coletiva para fins coletivos, resguardando o âmbito privado e as individualidades mas orientando-as para um fim social;
  2. a realização da guerra para a criação dos hábitos da paz, ou seja, a cessação do padrão de comportamento da Antigüidade;
  3. o caráter bastante emancipado dos romanos;
  4. a subordinação da teoria à ação, após a absorção da filosofia grega;
  5. o respeito à cultura dos povos vencidos, que tinham como obrigação apenas seguir algumas leis gerais de Roma;
  6. a incorporação dos povos vencidos e sua posterior assimilação ao Império.
Pierre Laffitte (1876) comenta que o principal serviço que Roma prestou à Humanidade foi a assimilação dos povos vencidos, preparando socialmente o terreno para a constituição posterior do Ocidente. Dessa forma, as principais conquistas romanas foram as Gálias (por César), a Espanha (durante a II Guerra Púnica, cujo principal líder foi Cipião, o Africano) e a Grécia, além, sem dúvida, da própria península itálica. As províncias orientais (particularmente a Síria, atual Palestina) não foram assimiladas tão completamente ao Império Romano e mantiveram seus hábitos intelectuais e políticos, ou seja, eram mais teológicas e supersticiosas que propensas à emancipação que Roma indicava. Não por acaso, foram as províncias não-orientais que constituíram posteriormente o “Ocidente”.
A assimilação dos povos conquistados, muito mais que sua conquista, dominação ou incorporação, pode ser verificada por uma contraprova bastante interessante, a partir de Renan (s/d). Entre 65 e 69 a Judéia pegou em armas, no que se chamou “revolução judaica”, contra a dominação romana. Embora inicialmente os revoltosos judeus quisessem apenas sair do jugo romano, quando Nero morreu, eles passaram a propor o fim do Império, conclamando as demais províncias a sublevarem-se e a proclamarem autonomia: ora, nenhuma fez isso, exceto a própria Judéia; as outras províncias fizeram questão de permanecer pacíficas[2] e/ou de reafirmarem sua lealdade ao Império e seu desejo de continuarem integrando aquela organização sociopolítica. Não era para menos: o Império permitira que uma quantidade imensa de povos e nações convivessem em harmonia, além de terem acesso a direitos e privilégios que antes eram exclusivos dos dominadores (lembremo-nos, por exemplo, de que as democracias gregas eram radicalmente xenófobas, com preconceitos étnicos bastante marcados). Assim, qual o interesse que esses províncias teriam em sair do Império?
A política de assimilação ao Império Romano pode ser exemplificado por Trajano, que era espanhol: “Além da admirável superioridade de Trajano, pelo coração, pelo espírito e pelo caráter, é preciso notar sua origem espanhola, eminentemente própria para testemunhar quanto estava, então, já realizada uma incorporação que permitia ao chefe romano um tal imperador” (A. Comte apud Carneiro, 1942, p. 113).
A análise dos tipos romanos do Calendário positivista é bastante elucidativa.

Extrato do Calendário Positivista: 5o mês – CÉSAR – A civilização militar
Dia
Tipo principal
Tipo adjunto
Calendário católico
15.
Júnio Bruto
7 de maio
16.
Camilo
Cincinato
8
17.
Fabrício
Régulo
9
18.
Aníbal
10
19.
Paulo Emílio
11
20.
Mário
Os Gracos
12
21.
Cipião
13
22.
Augusto
Mecenas
14
23.
Vespasiano
Tito
15
24.
Adriano
Nerva
16
25.
Antonino
Marco Aurélio
17
26.
Papiniano
Ulpiano
18
27.
Alexandre Severo
Aécio
19
28.
Trajano
20

Estudar os tipos leva-nos imediatamente à filosofia da história do positivismo, que é a da historicidade e profunda continuidade humanas, particularmente no que se refere ao Ocidente. Algumas figuras apenas marginalmente nos levam à filosofia da história de A. Comte; outras, contudo, levam-nos mais diretamente a ela: São Paulo, Carlos Magno, Frederico, Descartes, Bichat – e César. O caso de César é interessante devido ao juízo que fazia Augusto Comte da civilização romana, por ele bastante admirada: para o fundador do Positivismo, os romanos estavam já bastante próximos do ideal de sociocracia, faltando-lhes principalmente apenas o desenvolvimento afetivo, reservado à Idade Média.
Augusto Comte considerava que as civilizações militares surgiram da decomposição dos regimes teocráticos, quando o governo dos sacerdotes – conservadores – foi substituído pelo dos guerreiros – progressistas –: desde seu início foi esse o caso romano. O espírito positivo era bastante desenvolvido no povo do Lácio, e a maior aproximação empírica da sociocracia dava-se com o desenvolvimento do altruísmo – da veneração em seu estágio pátrio –; com a subordinação da especulação à ação; com o desenvolvimento progressivo dos motivos humanos (iniciado mesmo pela substituição dos sacerdotes pelos guerreiros, na teocracia inicial); com a busca dos hábitos da paz após feitas as guerras, com a assimilação dos vencidos e com a meritocracia. Todas essas características encontramos por metonímia em César, ou seja, nos romanos.
A história romana divide-se em três momentos: a monarquia, a república e o império. O período republicano é o mais caracteristicamente sociocrático – o advento mesmo de César foi nesse período. Por outro lado, a hereditariedade sociocrática foi estabelecida no Império. Augusto Comte considerava que os três melhores tipos romanos foram César, Cipião (o Africano) e Trajano, citando-os nominalmente e reservando-lhes, no Calendário Positivista, o nome de um mês – portanto, de todo um aspecto da história humana – e a chefia de duas semanas, respectivamente. Cipião, César e Trajano representam o papel histórico desempenhado por Roma: assimilação, humanização, meritocracia, indústria. “[...] Os três tipos essenciais da sociabilidade militar, Cipião, César e Trajano, dignos precursores da sociocracia, após sua nobre apreciação da vida pacífica” (Comte, 1854, p. 144).
Posteriormente, o catolicismo veio completar a “transição ocidental”, com o desenvolvimento sistemático dos sentimentos – embora ainda parcialmente, por ter um fundo egoísta e sendo auxiliado pelo cavalheirismo empírico e altruísta devido ao feudalismo. É devido aos defeitos teóricos do catolicismo que Augusto Comte sempre elogiou a “sabedoria prática” do sacerdócio católico, que, baseado em um dogma vicioso, soube elaborar uma doutrina social altruísta, de que Santa Teresa – com sua lenda sobre andar nas ruas de Paris com o archote e o balde d’água na mão, para queimar o céu e apagar o inferno – e São Francisco de Assis são grandes exemplos.
Os problemas teóricos do catolicismo são também devidos ao seu caráter anti-histórico, ao negar, ao pretender ignorar e desprezar todo o passado que o precedeu. “Todavia, cumpre reconhecer aqui, como por toda parte alhures, que a eminente sabedoria do sacerdócio católico neutralizou, durante muito tempo, os principais vícios de sua deplorável doutrina. Apropriando-se da língua de Roma, quando ela cessou de prevalecer, ele conservou espontaneamente todos os tesouros intelectuais da Antigüidade, inclusive sua bela teologia. A comovente lenda, tão dignamente imortalizada por Dante, acerca da feliz intercessão de um santo papa em favor de Trajano[3], bastará para indicar quanto as nobres almas católicas lastimavam que sua cega doutrina as impedisse de honrar seus melhores antepassados. Mas o respeito geral dos antecedentes gregos foi desenvolvido sobretudo pelos chefes temporais, apesar de sua freqüente ignorância” (Comte, 1934, p. 425).
Voltando a Roma e ao Calendário Positivista: os quatro domingos do mês de César (Temístocles, Alexandre, Cipião, Trajano) indicam por um lado o esforço contínuo em constituir, no Mediterrâneo, uma civilização que unificasse o Ocidente, afastando-o das teocracias orientais (nomeadamente a Pérsia) e das incessantes lutas fratricidas, ao mesmo tempo que consolidando e mantendo seu legado: são esses os papéis de Temístocles e Alexandre. Em seguida, a constituição de uma civilização então universal, afastando seus inimigos e realizando a obra de guerra para a paz: esses foram Cipião e Trajano. Em outras palavras, a “civilização militar” na filosofia da história de Augusto Comte apenas faz sentido, de fato, como uma etapa provisória, cujo fim em si mesmo não era a contenda, porém sim 1) a organização de sociedades que de outro modo seriam dispersas e, 2) em seguida, predispô-las à vida pacífica e industrial, em comum.
É interessante notarmos que a afirmação do caráter de transitoriedade dessa época não levou Augusto Comte a desprezar os tipos característicos do período, ou seja, o caráter militar dos tipos; muito ao contrário. Sempre valorizando todas as etapas parciais da Humanidade, como momentos necessários de sua história, percebemos que o valor de César, Temístocles, Alexandre, Cipião e Trajano relaciona-se à hábil conjugação da visão de estadistas com o de militares.
Reafirmando: diziam os romanos – ou melhor, dizia César – que faziam a guerra para levar os hábitos da paz. De fato era assim: os romanos, ao invés de simplesmente manterem uma dominação política sobre seus dominados, explorando-os e exigindo tributos, eventualmente reprimindo rebeliões e sublevações, procuravam de fato romanizar suas províncias. Ora, esse “romanizar” não significava somente impor aos demais os seus próprios hábitos; significava realizar um amálgama das culturas, respeitando-as e difundindo-as – particularmente a grega. É o aforisma: a Grécia pensou e Roma executou. Todavia, essa “execução romana do pensamento grego” deu-se com a adaptação dos elementos gregos aos hábitos e particularidades do povo do Lácio. Essa relação exemplifica como o pensamento deve subordinar-se à ação, para Augusto Comte.
Isso nos leva a outros dois pontos. Em primeiro lugar, de fato realizou-se primeiramente a guerra para depois se manter a paz: a chamada pax romanna, inaugurada no período de Augusto, não era uma idéia justificativa para enganar os ingênuos, uma “ideologia”, mas uma realidade concreta. Todos sendo então mais ou menos militares, sua conquista uns pelos outros não oferecia novidade alguma – ao contrário da iniciativa romana. Assim, os povos submetidos ao jugo romano, em vez de guerrearem-se mutuamente, passaram a trabalhar em conjunto para o desenvolvimento da economia comum, nas margens do Mediterrâneo. Prova disso foi a cessação das conquistas. Otávio Augusto formulara o preceito segundo o qual o Império deveria ter como limites naturais os acidentes geográficos, isto é, o Atlântico, o Reno, o Danúbio, os rios mesopotâmicos, o Egito e os desertos africanos. Houve duas exceções a esse preceito. A primeira foi a Bretanha, até antes da atual Escócia, conquistada por Domiciano, com Agrícola no comando. A outra exceção foi a Dácia, atual Romênia, na região balcânica transdanubiana, conquistada por Trajano em duas expedições, ocorridas em 101-102 e 105, e depois devolvida por Adriano aos dácios.
Em segundo lugar, já comentamos que a incorporação dos povos a Roma foi suficientemente grande para permitir que um espanhol, isto é, alguém oriundo da periferia do Império, assumisse o manto púrpura: o próprio Trajano, depois seguido e continuado por Adriano. As opiniões de Augusto Comte a propósito cabem aqui: “[...] Em relação às artes especiais do som e da forma, os romanos essencialmente marcaram a apreciação, embora muito mais por meio de demonstração de seu testemunho passivo, de como a preponderância da vida cívica pode dispor todos a sentir que se pode aperfeiçoar a Humanidade.
Essa primeira fase da ditadura foi dignamente instalada por dois tipos eminentes, que merecem ser pessoalmente indicados. Sábio herdeiro do general César, Augusto soube nobremente ultrapassar os impulsos de suas longas lutas, e governou o Ocidente com uma solicitude sociocrática, na qual todas as classes deviam concorrer para o bem público de acordo com suas aptidões respectivas. Essa característica geral foi energicamente desenvolvida por Tibério, que, malgrado as torpezas privadas de seus últimos anos, suplantou, no conjunto de suas qualidades, intelectuais e morais, seus preconceitos de origem aristocrática.
Um nobre velho [Nerva] inaugurou sabiamente a segunda fase, introduzindo o sistema de sucessão adotiva que a caracterizará sempre. Sua honrosa iniciativa, depois muito imitada, conferiu à ditadura ocidental os melhores tipos de que ela pudesse honrar-se.
Além da admirável superioridade de Trajano, pelo coração, pelo espírito e pelo caráter, é necessário indicar sua origem espanhola, eminentemente própria a testemunhar como estava então realizada uma incorporação que permitisse ao chefe romano preferir um tal sucessor. Ainda que nada seja comparável à ditadura assim surgida durante a primeira meia geração do segundo século, ela foi seguida de uma digna série de eventos, sempre devidos à sua adoção” (COMTE, 1853, p. 394-395).
Gibbon indicou como os romanos souberam desprezar os preconceitos mantidos pelos gregos a respeito da “pureza da raça” e misturaram-se aos seus vencidos, procurando daí tirar os benefícios decorrentes, particularmente no que se referia à conservação e à expansão de seus domínios: “A política estreita de preservar sem qualquer mistura estrangeira o puro sangue dos antigos cidadãos forçou a sorte e acarretou a ruína de Atenas e Esparta. O gênio dominador de Roma sacrificou a vaidade à ambição, julgando mais prudente, assim como mais honroso, adotar a virtude e o mérito para si própria, onde quer que fossem encontrados, mesmo entre escravos ou estrangeiros, inimigos ou bárbaros” (GIBBON, 1998, p. 32).
Os tipos comemorados na semana de Cipião Africano referem-se aos republicanos, ou seja, àqueles que durante a fase da República romana realizaram ações positivas para a incorporação do proletariado e para a expansão da dominação romana no sentido indicado acima. Eles vão desde a própria fundação da república, com Júnio Bruto, até Mário e os irmãos Gracos, que eram representantes e defensores da plebe, passando pelos diversos tipos que revelaram virtudes cívicas e militares em prol da sociedade romana.
Duas observações importantes. Em primeiro lugar, à exceção do próprio Júlio César (que dá nome ao mês), de Otávio Augusto (que está na semana seguinte, relativa ao império) e de Mário e dos Gracos, não há nenhum tipo do fim da república nem nessa semana nem no mês de Júlio César. Isso significa muita coisa: podemos pensar, por exemplo, na ausência de Catão de Útica, que era defensor das antigas virtudes romanas e, a partir disso, porta-voz da oligarquia romana. Embora Augusto Comte relevasse a importância simbólica do eterno luto de Catão – que lamentava os mortos nas guerras travadas por Roma –, não deixou de reconhecer a hipocrisia da defesa das tradições que Catão realizava: era uma defesa unicamente com vistas à exploração do proletariado e à exclusão social dos vencidos; em outras palavras, completamente contrária ao sentido atribuído por Augusto Comte à dominação romana[4]. Pierre Laffitte (1876), sem dúvida repetindo um juízo de Augusto Comte, usa literalmente a palavra “hipocrisia” para referir-se às exortações morais de Catão.
A segunda observação é a presença de outros tipos da política romana em outros meses: desde logo indico Rômulo, Numa Pompílio e Caio Túlio Cícero. Rômulo, o lendário fundador de Roma, encontra-se no calendário positivista concreto, mas no mês de Moisés, dedicado às teocracias iniciais, na semana de Numa Pompílio. Numa Pompílio, por sua vez, foi o sucessor de Rômulo e “verdadeiro” legislador da cidade, comparável a Licurgo para Esparta; sua semana apresenta tipos envoltos em mito mas que foram beneméritos para o ser humano, como mártires (Prometeu, que roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens e foi sentenciado a um suplício eterno), heróis (Hércules), fundadores de cidades (Teseu (Atenas), Rômulo (Roma)) ou legisladores (Licurgo (Esparta), Numa (Roma)). Por sua vez, Caio Túlio Cícero aparece no mês de Aristóteles (a filosofia antiga), na semana de Sócrates (as filosofias morais): para Augusto Comte, se Cícero teve alguma importância efetiva para a Humanidade, não foi como político – além de covarde e hipócrita, apoiou os conspiradores contra César –, mas como moralista, com obras como Sobre os deveres, Sobre a república, Sobre a amizade.

Tipo principal
Tipo adjunto
Importância histórica
Júnio Bruto
Expulsão do rei Tarquínio Soberbo e fundação da República
Camilo
Cincinato
Defesa de Roma contra os gauleses; organização do exército. Cincinato atuou também como apaziguador e mediador nas disputas entre patrícios e plebeus no século V a. C.
Fabrício
Régulo
Honra pessoal, devotamento cívico e capacidade militar
Aníbal
Gênio militar que desafiou Roma
Paulo Emílio
General romano que concluiu as Guerras Púnicas; virtudes “telúricas”[5] e cívicas
Mário
Os Gracos
Reforma social; preocupação com o proletariado urbano
Cipião
General que venceu a II Guerra Púnica e demonstrou uma clemência inexistente até então

Convém aqui uma pequena digressão a respeito da palavra “império”, distinguindo a realidade social – e também política, mas política em um sentido “fraco” – da realidade institucional – política em um sentido “forte”.
Desde o início a república romana – como, aliás, todas as cidades e as sociedades da época – era imperialista, isto é, expansionista, procurando ampliar cada vez mais a abrangência da sua dominação. O aumento da área de dominação é que o constitui a criação de um “império”, especialmente se essa área for vasta e incluir uma variedade de povos e culturas submetidos. Dessa forma, podemos aplicar a Roma o sugestivo epíteto que Raymond Aron deu aos Estados Unidos: uma “república imperial”, que é apenas na aparência um oximoro. Institucionalmente, a república romana era uma república, mas, como sua dominação alcançava regiões vastíssimas e distantes, era também um império. Essa realidade, como dissemos, não é incoerente, embora a expressão “república imperial” possa sugerir, à primeira vista, um oximoro. Como a realidade política era de dominação pela república, usei a expressão “império em um sentido político fraco”: a política em sentido forte – ou seja, as regras do jogo, as práticas institucionalizadas, os valores e a cultura política –, nesse período, correspondia à república e às suas instituições.
Por outro lado, a solução das crises por que a república passou a partir de mais ou menos 150 a. c. foi a criação do império como realidade institucional. Na verdade, não foi tanto o império como o principado, em que o título honorífico concedido a alguns cidadãos tornou-se exclusividade do chefe supremo das formas armadas (imperator) e do primeiro cidadão da república (princeps). Assim, pode-se falar que, a partir de 14 a. c., o império passou a ser uma realidade política em sentido forte, pois as regras, os valores e a cultura políticos tornaram-se propriamente “imperiais”, isto é, monárquicos.
Curiosamente, houve uma inversão da força atribuída às palavras “império” e “república” na passagem da República para o Principado: antes a república era a política “forte” e depois se tornou a “fraca”, o inverso ocorrendo com o “império”. (Na verdade, pelo menos durante o longevo governo de Otávio Augusto, não se deixou de usar a palavra república nem de caracterizar o regime como sendo republicano, a despeito da realidade fática reconhecida e estimada por todos. Assim, embora tenha iniciado claramente o principado, Otávio Augusto rendia homenagem ao tradicionalismo dos senadores – aliás, o próprio Senado, instituição-símbolo da república, foi mantido, embora esvaziado de sua importância – ao nomear seu governo como sendo “republicano”.)
Passando para os tipos do império, no calendário positivista a seqüência de imperadores romanos é a seguinte:
· 1o – Augusto – 27aC-14dC (41 anos)
· 9o – Vespasiano – 69-79 (10 anos)
· 10o – Tito – 79-81(2 anos)
· 12o – Nerva – 96-98 (2 anos)
· 13o – Trajano – 98-117 (19 anos)
· 14o – Adriano – 117-138 (21 anos)
· 15o – Antonino – 138-161 (23 anos)
· 16o – Marco Aurélio – 161-180 (19 anos)
· 24o – Alexandre Severo – 222-235 (13 anos)
É interessante percebermos como há uma concentração de imperadores do período de meados do século I até mais ou menos cem anos depois; é o período que os historiadores indicam como sendo da dinastia Flávio-Antonina, após a Júlio-Cláudia; ou, de outra forma, é o período dos chamados “reis-filósofos”, tais as qualidades políticas e humanas desses governantes. Apenas para tomarmos o juízo de Gibbon: “Durante um feliz período de mais de 80 anos, a administração pública foi conduzida pela virtude e pelas habilidades de Nerva, Trajano, Adriano e dos dois Antônios” (Gibbon, 1998, p. 3).
Vimos como Augusto Comte admirava o Império Romano, ou melhor, o povo romano de um modo geral. Ora, o simples exame dos tipos que ele homenageou em seu Calendário, na parte dedicada ao Império, permite perceber com o que o filósofo preocupava-se e o que o admirava: não a decadência precoce representada por Nero, mas a sabedoria daqueles que vieram depois de Vespasiano, até Marco Aurélio, compreendendo aí quase um século de bom governo. Como diria Gibbon, “[...] O firme edifício do poder romano foi baseado na e preservado por meio da sabedoria dos tempos. As obedientes províncias de Trajano e dos Antônios foram unidas por leis e adornadas por atos. Eles podiam ocasionalmente sofrer um abuso parcial de alguma autoridade delegada; mas o princípio geral de governo era sábio, simples e benévolo” (Gibbon, 1998, p. 28).
A importância de Trajano, ademais, ressalta-se quando se se dá conta de que a hereditariedade sociocrática – categoria criada por Augusto Comte – iniciou-se exatamente quando Nerva escolheu Trajano seu sucessor, após o ter feito seu filho adotivo; da mesma forma, Trajano escolheu Adriano seu sucessor, pelo mesmo processo, e assim com alguns outros: todas essas escolhas baseadas na hereditariedade sociocrática foram exitosas.
Há algumas questões que devem ser pesquisadas em investigações subseqüentes, a primeira delas referindo-se à escolha de Augusto Comte em favor de Trajano ao invés de Adriano. Inicialmente, Trajano teve bastante justificada sua invasão à Dácia, haja vista as freqüentes e reiteradas provocações que os dácios lançavam aos romanos. Da mesma forma, os partas, no Oriente Médio, provocavam Roma. Contudo, enquanto na Europa do leste Trajano conquistou para cessar uma situação humilhante, no Oriente ele continuou, procurando chegar à Índia, tal qual Alexandre cinco séculos antes; ele não chegou a esse país, mas estendeu o Império até as margens do Oceano Índico. Em outras palavras, manteve ainda um espírito militar conquistador, quando não havia mais necessidade de expansão.
Por outro lado, Adriano executou uma política completamente pacífica, indo às armas apenas quando necessário, ao mesmo tempo que, no caso parta, devolveu a autonomia a esse povo, retirando-o de sua condição de província e mantendo-o como “Estado associado” (cuja soberania dependia francamente da autoridade romana). Da mesma forma, adotou uma extensa política de desenvolvimento do Império, visitando, ao longo de cinco anos, todas as províncias, procurando dotá-las de estruturas urbanas e sociais adequadas. Trajano, da mesma forma, desenvolveu o Império, mas beneficiou mais a Itália, e tinha bastante marcado um espírito mais militarista.
Ainda assim, de qualquer forma, Trajano tornou tradição a prática adotada por Nerva a seu próprio respeito, ou seja, adotou o critério de hereditariedade sociocrática para o Imperador seguinte, escolhendo, além disso, alguém de inegáveis méritos e qualidades.
De maneira mais rápida, podemos pensar também em questões mais contemporâneas, a partir do exemplo de Trajano e dos romanos de modo geral.
Insistindo sobre a hereditariedade sociocrática, devemos nos lembrar de que Augusto Comte caracterizava-a como o modo romano por excelência de transmissão do poder – ou melhor, de transmissão do comando. O titular do governo em vida indicava seu sucessor, não necessariamente seu filho ou algum seu parente, mas aquele que julgava o mais capacitado para a posição a assumir. Evidentemente diversas virtudes são necessárias, tanto políticas quanto cívicas, e mesmo, mais corriqueiramente, “morais”. A experiência de Roma, como se viu, foi completamente exitosa, e encerrou-se exatamente quando, ao invés de se indicar alguém através da hereditariedade sociocrática, indicou-se através da consangüínea (Cômodo, por seu pai Marco Aurélio). A instituição, de qualquer forma, era completada pela adoção civil do sucessor pelo antecessor (a ad-rogação).
Essa hereditariedade é o que está na base do tão mal-compreendido projeto de “ditadura republicana”, que de “ditadura” tem apenas o nome. A ditadura republicana é o governo republicano de liberdades civis, políticas e sociais, assim como o das responsabilidades civis, políticas e sociais, no qual o governante exerce seu poder executivo – que de maneira alguma é absoluto ou tirânico – segundo limites claros e dependendo sempre das sanções sociais, particularmente da opinião pública. Em outras palavras: Estado de Direito, liberdade civis, proteção ao cidadão com ampliação radical da cidadania – esse é em enorme proporção o projeto “democrático” de governo.
Mudando do âmbito, isto é, passando do setor público para a iniciativa privada, podemos mesmo pensar em se não existem teorias de administração que preconizam exatamente uma transmissão do comando em empresas através de um processo como a hereditariedade sociocrática.
Em seguida, pensamos no valor de um império universal nos dias atuais. Pensamos, claro, nos Estados Unidos, cuja influência é ampla e cada vez maior – apesar de diversos prognósticos em contrário, como o de Paul Kennedy, realizado no final dos anos 1980. O poder norte-americano baseia-se na economia, em sua capacidade de regular as relações econômicas no mundo, ou, ao menos, de influenciá-las poderosamente. Mas, como outros autores já indicaram, esse poder é “multidimensional”, ou seja, baseia-se também em outras fontes, entre as quais a cultural – qual o país que não se sente atraído por Hollywood, pelo American way of life ou pelo jazz e pelo blues? – e, infelizmente, também a militar. O atual líder norte-americano, como é amplamente reconhecido, não está à altura do país que comanda, não sendo efetivamente capacitado para conduzir a bom termo as inúmeras responsabilidades mundiais que essa potência tem, como o caso da não-assinatura do Protocolo de Kyoto, entre outras atitudes, bem ilustra.
Por outro lado, o poder americano baseia-se firmemente, especialmente durante o governo de George W. Bush, no que Kehoane e Nye chamaram de hard power (“poder duro”, isto é, o poderio bélico), mas que é, simplesmente, um militarismo grosseiro, ou seja, a insistência em manter um efetivo militar cada vez mais poderoso (embora não necessariamente mais numeroso), a despeito dos contingentes militares de outros países. A década de 1990 seria marcada pela prevalência dos temas econômicos sobre os militares, com o fim da Guerra Fria, e, portanto, com a passagem, há tanto esperada, das atividades militares para as pacíficas, baseadas exatamente na economia. Contudo, o que se vê atualmente é exatamente o contrário: um retorno extemporâneo às armas.
É nessa altura que percebemos como a comparação entre os Estados Unidos e Roma refere-se apenas à característica supostamente comum de serem ambos “impérios” “universais”. Roma de facto e de jure foi um império, cuja obra estende-se até atualmente; como diria César, a máxima que orientou os patriotas romanos foi o de fazerem a guerra para levarem os hábitos da paz – e de fato foi assim, como a instituição imperial realmente executou (com as exceções da Inglaterra, da Dácia e da Párcia). Foi uma anexação seguida da progressiva incorporação das populações locais, com a elevação cada vez mais ampla de seus súditos à categoria de “cidadãos romanos”. Em outras palavras, Roma imperou com vistas gerais, buscando manter o Império como um todo. Há já um certo tempo que os Estados Unidos estão distantes dessas perspectivas... Além disso, é importante notarmos como Augusto Comte era terminantemente contra a existência de países demasiadamente grandes nos tempos atuais, por serem contra a fraternidade humana, tanto interna quanto externamente aos países. Considerava A. Comte que deve, sim, haver um império atualmente: mas um império das opiniões e dos sentimentos, e não um império das armas.
Finalmente, pode-se ficar pensando no valor que a filosofia da história que Augusto Comte elaborou pode ter para os dias atuais. Um esquema tão ambicioso, tão complexo, que procura relacionar a Grécia, Roma, a Idade Média e a modernidade, atribuindo a cada um deles o desenvolvimento de determinadas características da natureza humana e a preponderância de certas formas de pensar – tudo isso pode ser exagerado, demais. Por que não algo mais simples? Por outro lado, porque essa insistência na continuidade humana? Por que não, simplesmente, rupturas e quebras?
Ora, sem dúvida alguma que A. Comte reconhecia a existência de mudanças e rupturas na história; quem não o reconhecer é incapaz das mais simples observações históricas. O espetáculo da Revolução Francesa apresentou esse caráter de radical ruptura, entre a Idade Média, católico-feudal, e a modernidade, cada vez mais positiva e pacífico-industrial. O que ocorre é que, por debaixo das mudanças e das transformações, o filósofo de Montpellier via apenas um único ser humano, que em diversos momentos assumia, e assume, certas características, de acordo com o momento histórico no qual vive.
Mas o principal está em que, se queremos ser de fato positivos em nossas concepções, temos que nos voltar ao ser humano, ao conjunto de sua história, de suas diversas fases, para termos um ideal a seguir. É exatamente nisso que consiste a filosofia da história do positivismo religioso: um ideal que nos orienta em direção ao futuro, através da observação e da interpretação do passado, de modo a dirigir o presente. Como diria Raymond Aron, se é para fazermos da humanidade, de sua história, uma religião, não há ideal mais elevado que o do positivismo, que a Religião da Humanidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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RENAN, E. s/d. O anticristo. Lisboa: Lello.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)


[1] Referimo-nos aqui ao retorno ao passado da Antigüidade, mas, sem dúvida, poderíamos incluir também a rejeição ao retorno à Idade Média.
[2] Na verdade, as Gálias sublevaram-se nesse momento, mas não o objetivo de saírem do Império, mas para retornarem à ordem civil (a morte de Nero produzira convulsões sociais, políticas e militares) e, se possível, imporem um patrício seu como Imperador.
[3] Além de sua importância histórica, Trajano era dono de um caráter corretíssimo, humilde e despojado, preocupado com os destinos pátrios, de modo que todos o respeitavam. Sua vida, assim, era motivo de admiração, de tal sorte que, diz-se, no século V o papa Gregório Magno, após ler uma biografia do Imperador, entristecido pela exclusão de Trajano do paraíso (por ser pagão), orou tanto e tão fervorosamente que obteve a admissão do romano no recinto celeste. Esse episódio, narrado por Dante na Divina comédia, é comentada por Miguel Lemos na edição apostolar do Catecismo Positivista:
“[...] Contava-se que o papa Gregório Magno (599-604), lendo um dia a vida de Trajano e tomado de admiração por tão singulares virtudes, não pode conformar-se com que, por ser pagão, deixasse esse príncipe de salvar-se no outro mundo. Entrou, pois, numa igreja e orou tão fervorosamente a deus pela alma do grande Imperador que ali mesmo deus lhe revelou que sua súplica estava deferida e Trajano admitido no reino celestial.
O passo da Divina comédia em que Dante alude a esta lenda é o seguinte:
Quiv’era storïata l’alta gloria
Del roman principato, il cui valore
Mosse Gregorio a la sua gran vittoria;
I’ dico di Trajano imperadore.
(“Purgatório”, 10o Canto).
Aí se a história a altiva glória
Do príncipe romano que a Gregório
Deu, por alto valor, causa ao triunfo:
Relato aqui o Imperador Trajano.
(Tradução de Bonifácio de Abreu).
No Paraíso o poeta não esqueceu o grande Romano e lá o colocou entre os bem-aventurados (Canto 20o)” (LEMOS, 1934, p. 496). O episódio indicado no Paraíso refere-se ao de uma idosa que agradeceu a Trajano por este ter retardado a partida de uma expedição para atender a suas solicitações de justiça.
[4] Em outras palavras, caso prevalecesse o projeto de Catão, Roma não seria o grande elemento aglutinador do Mediterrâneo, mas apenas mais um império como houvera até então, talvez semelhante ao de Alexandre Magno, um caso intermediário entre o ateniense (pelo racionalismo) e o persa (pela extensão).
[5] Usei a expressão “virtudes ‘telúricas’” para indicar o apego à terra, isto é, ao campo e à agricultura.