Sobre a religião
- Antes de vermos o conceito de religião no Positivismo, temos que fazer uma observação prévia fundamental: para o Positivismo, “religião” e “teologia” são coisas muito diferentes
o A teologia é uma das formas de conceber-se a religião
o De acordo com a lei dos três estados, todo conceito passa, ao longo do tempo, por três estados – teológico, metafísico e positivo (o que também pode ser entendido como passando do absolutismo para o relativismo) –; assim, a religião começa teológica, assume um aspecto metafísico e, chegando à relatividade, torna-se positiva
o As religiões teológicas são, pela ordem: o fetichismo (e a astrolatria), o politeísmo, o monoteísmo; as religiões metafísicas são o panteísmo, crenças sobrenaturalistas intelectualistas e espiritualistas de modo geral, as crenças materialistas e até o ateísmo; a religião positiva é, por definição, o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade
- Para o Positivismo, a religião é a instituição que coordena e regula o conjunto da existência humana, em seus vários aspectos: afetivo, intelectual e prático; coletivo e individual; público e privado
o A religião deve ser entendida em termos de religare, isto é, “re-ligar”, ligar duas vezes
§ Conferir a unidade individual (pelo amor) e ligar cada um de nós aos demais (pela fé)
§ Uma outra forma de ver isso é entender em termos de regrar o ser humano e reunir todos para com todos (em francês: regler e rallier)
- A organização da natureza humana é a divisão mais básica para entendermos a Religião da Humanidade
o Cada uma das partes da natureza humana é regulada com instituições específicas: os sentimentos pelo culto, a inteligência pelo dogma, a atividade prática pelo regime
o Na verdade, a divisão tríplice da natureza humana baseia-se em uma divisão dual anterior: o amor e a fé, sendo que o amor, por sua vez, divide-se em sentimentos e atividade
o No que se refere à natureza humana, o aspecto mais importante são os sentimentos; eles são o fundamento da existência humana e o objetivo último de todas as nossas atividades
o A inteligência indica os meios para satisfação dos sentimentos e, assim, é a ministra do coração; a atividade prática provê os meios para tal satisfação e é o regulador geral da existência humana
- A religião – ou seja, a coordenação e regulação geral da existência humana – é necessária porque o ser humano tem inúmeras características que, por um lado, exigem regulação e que, por outro lado, exigem coordenação (quando não subordinação)
o O problema fundamental do ser humano não é nem propriamente o chamado “problema da coordenação”, que é a dificuldade de organizar os muitos indivíduos em ações coletivas; essa dificuldade sempre existe, mas ela é secundária e derivada do problema realmente fundamental
o O problema fundamental é multiplicidade e maior força dos instintos egoístas e o menor número e a maior fraqueza dos instintos altruístas
o Tanto uns quanto outros existem naturalmente e são reais, são efetivos; mas ao longo da história humana, o egoísmo foi mais forte que o altruísmo (embora o altruísmo ganhe intensidade com o passar do tempo)
o Além disso, há uma multiplicidade de instintos, sejam egoístas, sejam altruístas; o egoísmo, que se compõe de oito instintos e divide-se em interesse e ambição, tem seus instintos específicos competindo entre si pela primazia o tempo todo, o que gera instabilidades constantes, sejam individuais, sejam coletivas
o Já o altruísmo tem menos instintos específicos (apego, veneração e bondade) e com menor intensidade, mas eles são harmônicos entre si e, quando devidamente estimulados e orientados, conseguem subordinar e coordenar o egoísmo: daí provêm a nobreza e a força do altruísmo
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A solução
para o problema humano, então, é a primazia do altruísmo e a subordinação do
egoísmo a ele
o A parte da religião que regula e estimula diretamente os sentimentos é o culto
o O altruísmo é inato; como observou Augusto Comte, apenas o cinismo e o egoísmo poderiam negar essa realidade, seja devido ao egoísmo sacramentado pela teologia, seja devido ao intelectualismo academicista
o A primazia do altruísmo ocorre tanto pelo estímulo direto dos sentimentos altruístas (subjetivamente) quanto pela vida coletiva (objetivamente)
§ A mera vida coletiva força-nos a limitar o egoísmo e a desenvolver o altruísmo
o É sempre importante lembrar: subordinar o egoísmo não equivale a negar o egoísmo: este continua existindo, mas é restringido em sua intensidade e, na medida do possível, é satisfeito por vias altruísticas
§ A solução do problema humano e a relação entre altruísmo e egoísmo é dada pela fórmula “viver para outrem”
§ Qualquer aperfeiçoamento exige a admissão prévia de imperfeição, que, por sua vez, exige a admissão de uma perfeição (ideal ou não) que está acima de nós: assim, o aperfeiçoamento sempre exige a submissão
· A submissão com vistas ao aperfeiçoamento comprime o egoísmo e desenvolve (direta ou indiretamente) o altruísmo
§ Mas é claro que é preferível, ainda que não se possa realizá-lo exclusivamente, o estímulo direto do altruísmo
· O estímulo do altruísmo é a ternura; a compressão do egoísmo é a pureza
o Evidentemente, o enunciado teórico, abstrato, do problema humano é bastante simples, mas a solução concreta do problema humano é de solução complicada, pois a subordinação do egoísmo ao altruísmo tem que ser constante e permanente, além de ocorrer ao mesmo tempo em indivíduos e nas coletividades
§ Por isso, todos os esforços possíveis devem ser envidados, o tempo todo, o máximo que se puder, para que o problema humano seja satisfeito
§ A satisfação do problema humano exige a mobilização de toda a natureza humana, ou seja, a inteligência e a atividade prática devem, necessariamente, ajudar ativamente os sentimentos nesse esforço
§ Quando o problema humano é satisfeito e a natureza humana concorre toda ela para sua satisfação, nós temos a harmonia, com a felicidade individual e o bem-estar coletivo
· Tal satisfação é possível e ocorre mais ou menos em diversas sociedades e ao longo de nossas vidas
o Vale também lembrar que o estímulo do altruísmo ocorre também por meio da idealização, seja a poética, seja a intelectual (seja mesmo a prática, por meio de projetos)
o Por fim: o estímulo do altruísmo e a perspectiva social constituem o padrão de moralidade do Positivismo
§ Inversamente, o que dificulta ou nega o altruísmo e/ou o caráter social do ser humano constitui a imoralidade
§ O mais importante desenvolvimento de que o ser humano é capaz é o progresso moral
- Como indicamos antes, a inteligência é ministra do coração, no dogma
o Isso quer dizer que a inteligência explica a realidade, esclarece os sentimentos, indica os meios de satisfazer as necessidades afetivas, corrige rumos: tudo isso é, de fato, muita coisa; mas ser “muita coisa” não equivale a que a inteligência seja a fonte ou a destinação da existência humana
o Sempre que se considera que a inteligência é a origem das orientações fundamentais do ser humano, o resultado é que a inteligência permanece ministra do coração, mas o coração passa a obedecer – sem que se reconheça isso – ao egoísmo, geralmente ao orgulho e/ou à vaidade
§ Essa relação é dada pela fórmula “agir por afeição e pensar para agir”
o A parte da religião que regula a inteligência é o dogma; o dogma, por sua vez, deve ser entendido como tendo pelo menos duas grandes partes: uma primeira, concreta e abstrata, relativa ao conjunto dos conhecimentos humanos mais ou menos dispersos, e uma segunda parte, abstrata e filosófica: esta segunda parte é chamada de “síntese” e corresponde ao trabalho intelectual que constitui a religião
o Além de auxiliar os sentimentos e a atividade prática, a inteligência também pode e deve, ela mesma, tornar-se mais altruística
§ Isso se dá por meio das idealizações intelectuais, na medida em que toda abstração consiste em idealizações da realidade
§ Uma forma indireta, mas fundamental, de tornar altruística a inteligência é assumir o relativismo dos conhecimentos humanos, rejeitando o absolutismo e as preocupações absolutas
§ Também é importante lembrar que todos os conhecimentos humanos convergem para a Moral, seja como ciência, seja como arte
- A atividade prática é regulada pelo regime
o É importante notar que, ao mesmo tempo em que o regime deve ser, por si só, regulado, ele também é um importante regulador, tanto dos sentimentos quanto, principalmente, da inteligência
§ Vale notar que a inteligência submete-se duplamente: aos sentimentos e à atividade prática
o A importância da atividade prática é mais ou menos evidente: apenas por meio das atividades práticas é que o ser humano relaciona-se com outros seres humanos e que pode realmente satisfazer suas necessidades
§ Mesmo os sentimentos só têm valor quando resultam em ações concretas, no sentido de que os atos sempre contam mais que as intenções
o É por meio da atividade prática que se realiza principalmente o caráter coletivo do ser humano: logo, é sempre imperativo tratar com grande atenção desse âmbito, para que o problema humano seja satisfeito também coletivamente
o A atividade prática também confere uma utilidade e, daí, uma orientação efetiva para a inteligência – que, como sabemos, entregue a si mesma, descaminha-se com enorme facilidade
o É devido às íntimas relações, às vezes indiretas, entre os sentimentos e a atividade prática (em particular em contraposição à inteligência, ou seja, à “fé”), que esses dois aspectos da natureza humana correspondem ao âmbito geral do “amor” na religião
o O regime é regulado por diversas fórmulas, mas a que é especialmente dedicada à atividade prática é o “viver às claras”
§ Outras fórmulas do regime: a já indicada “agir por afeição e pensar para agir”; “o capital é social em sua origem e deve ser social em sua destinação”; “dedicação dos fortes pelos fracos, devotamento dos fracos pelos fortes”
- Todos esses aspectos são coordenados no Positivismo, na síntese subjetiva positivista; entretanto, a síntese por si só é uma elaboração intelectual, faltando então uma concepção que congregue a síntese intelectual com a simpatia afetiva e a sinergia prática: essa concepção é a “Humanidade” – daí a “Religião da Humanidade”
o A Humanidade deve ser entendida como o conjunto de seres humanos passados, futuros e presentes, de tal modo que a continuidade humana, dada pelas populações subjetivas, seja sempre afirmada sobre a solidariedade, dada pelos agentes presentes
§ Os animais, especialmente os domésticos e os mais diretamente úteis, integram a Humanidade; da mesma forma, por meio do neofetichismo, o meio ambiente (a Terra, o Sol, a Lua) e muitos objetos também integram a Humanidade
o A Humanidade é um ser compósito e subjetivo: ele é composto por muitos pequenos agentes, que atuam de maneira coletiva e que se reúnem subjetivamente para cada um de nós
o A Humanidade não é um ideal distante de nós (embora, por meio da idealização, esteja distante das paixões): cada um de nós tem acesso direto a representantes concretos, objetivos, do Grande Ser: mães, esposas, irmãs; famílias, grupos de amigos, pátrias (ou melhor, mátrias)
o Rigorosamente, os seres humanos vivos não integram a Humanidade: a incorporação é um sacramento póstumo, realizado sete anos após a transformação de cada agente concreto
§ Em outras palavras, devemos merecer a incorporação à Humanidade
o A Religião da Humanidade só foi possível graças ao desenvolvimento histórico do ser humano, em termos de culto, dogma e regime
§ Antes de um limiar de desenvolvimento do ser humano simplesmente não era possível a Religião da Humanidade, embora tenham havido antes ensaios mais ou menos próximos desse ideal
· Para que fosse possível a instituição da Religião da Humanidade, as diversas forças e capacidades humanas tiveram que se desenvolver: o dogma positivo teve que ser completado, o relativismo teve que se afirmar em sua totalidade, a atividade pacífico-industrial teve que se sobrepor crivelmente à guerra, a noção planetária de humanidade teve que se tornar possível em face das famílias e das pátrias
o Isso tudo só ocorreu a partir do século XIX e, em particular, na Europa Ocidental
· Os ensaios prévios foram a Roma antiga (da instituição da República até o final do século II) e, em menor grau, a China confuciana