A revista Insight Inteligência - que se dedica a (in)formar a opinião pública por meio de artigos com debates políticos mais profundos que o habitual dos jornais diários, mas sem os formalismos acadêmicos - publicou em seu número 89 um artigo de nossa autoria sobre a crise política e moral que vive o nosso país há alguns anos.
O texto pode ser lido aqui. Já a versão completa da revista, com o nosso texto diagramado em formato PDF, pode ser lido aqui.
A versão original do texto, com algumas pequenas diferenças de estilo em relação ao publicado na revista, está reproduzida abaixo.
* * *
Mais que crise
política, o Brasil vive uma crise moral[i]
A sã política é filha da moral e da razão
(José
Bonifácio)
Agir por afeição e pensar para agir
O amor por princípio e a ordem por base; o
progresso por fim
(Augusto
Comte)
O Brasil atravessa uma crise
político-moral
Já virou um triste mas correto senso comum dizer que o
Brasil atravessa desde há vários anos uma crise política; essa crise, como
facilmente se percebe, é também moral, no sentido de que a própria atividade
política encontra-se profundamente desmoralizada. Essa desmoralização, por sua
vez, também se deve a motivos de caráter moral, em particular a percepção,
certa ou errada mas com certeza generalizada, de que os políticos profissionais
costumeiramente não falam a verdade; de que eles não buscam o bem comum em suas
atividades cotidianas; de que são corruptos e corruptores: assim, a percepção é
que os políticos são mentirosos, mesquinhos e corruptos. Por extensão, os
partidos políticos e as instituições republicanas (aí incluídos os membros do
poder Judiciário) são vistas não como a serviço dos cidadãos e do país, mas dos
próprios políticos. Tudo isso conduz a uma forte crise de legitimidade, ou
seja, da adesão subjetiva dos cidadãos à ordem política vigente[ii].
Realismo ou moralismo?
Muitas das críticas político-morais feitas contra o nosso
sistema político são mais ou menos ingênuas e por vezes equivocadas, ao passo
que outras são bastante densas e certeiras. Muitos analistas políticos costumam
chamar pejorativamente as críticas morais de “moralistas”, com isso querendo
reduzi-las todas a concepções ingênuas, altamente abstratas e desvinculadas da
realidade; o moralismo, nesse sentido, seria uma visão “idealista”, que
despreza as negociações e as disputas de interesses e que pretende que todos os
políticos sejam como que vestais[iii].
Os analistas que denunciam o moralismo adotariam, por sua vez, uma concepção
“realista”, que aceita que a política é uma constante disputa entre grupos de
interesses e indivíduos que desejam repartir entre si o mando, as riquezas e o status resultante do poder político.
Deveria ser claro que não se pode nem desprezar as críticas
de caráter moral como sendo simples moralismo, nem querer que a prática
política seja a atividade de indivíduos sempre modelares. Os autoproclamados
“realistas” não raro são cínicos que reduzem a política ao enfrentamento de
grupos opostos; no limite, para eles a política é uma forma disfarçada de
guerra[iv].
Já os apodados de “idealistas” muitas vezes rejeitam de maneira efetivamente
ingênua e tola as necessárias negociações e transações (inclusive os processos
de convencimento) que devem sempre ocorrer para que os assuntos públicos sejam
levados a cabo.
Para o ser humano agir, a realidade sempre tem que ser
idealizada: isso quer dizer que temos que ter noções gerais mais ou menos
ideais guiando-nos em nossas condutas, indicando o que é certo e o que é
errado, da mesma forma que o que pode e o que não pode ser feito, assim como
quais os principais grupos sociais que atuam e porquê. Nesses termos, idealidade
e realidade andam de mãos dadas, em que por um lado reconhece-se a legitimidade
das negociações e da atividade própria aos políticos e, por outro lado,
proclamam-se com clareza os princípios e os valores que estruturam, limitam e
norteiam a ordem política. Como dizia o grande fundador da pátria brasileira,
José Bonifácio: “a sã política é filha da moral e da razão”.
Aprofundando o entendimento da
“moral”
As observações acima são apenas uma introdução para
discutirmos a profundidade da crise moral que atravessamos. Na verdade, após
superarmos a tola dicotomia entre realismo e moralismo, temos que aprofundar o
entendimento do que seria a “moral”. O melhor caminho para isso – e não por
acaso, diga-se de passagem – é o indicado pelo Positivismo, ou seja, pelas
longas elaborações de Augusto Comte.
Para Comte, a Moral é a ciência suprema, aquela que resume
todas as ciências abstratas anteriores[v], que
se caracteriza pela identidade entre sujeito e objeto e pelo menor grau de
abstração em seus estudos, que realiza naturalmente a transição entre o
conhecimento abstrato (científico) e a atividade prática (das artes práticas) e
que, assim, que estabelece os parâmetros de conduta coletiva e individual.
Todos esses atributos da Moral – que de maneira muito, muito imperfeita
poderíamos chamar de “Psicologia” e de “Pedagogia” – baseiam-se na própria
natureza humana, isto é, na constituição cerebral do ser humano. O homem é um
ser que age buscando a satisfação de seus instintos, sendo que a inteligência
atua aí para esclarecer o mundo, o próprio homem e os meios possíveis para tal
satisfação. Ocorre que a respeito dos “instintos” não se deve ter uma concepção
rasa, como as que identificam os instintos com a fome e os impulsos sexuais;
isto é, sem dúvida que a fome e o impulso sexual integram o quadro de
instintos, mas não são os únicos nem os principais. O que importa notar é que,
além do egoísmo – que Augusto Comte identificou como composto pelos instintos
nutritivo, sexual, materno, destrutivo, construtivo, orgulho e vaidade –, o ser
humano possui o altruísmo – composto pelo apego, pela veneração e pela bondade.
Não há dúvida de que o egoísmo é mais forte que o altruísmo; entretanto, essa
maior força não equivale à inexistência do altruísmo – como, aliás, os “realistas”
e os cínicos costumam afirmar – nem equivale a que o egoísmo seja sempre
dominante com a mesma intensidade.
O que importa notar é que o ser humano – da mesma forma que
os animais superiores, como o cachorro, o cavalo, a vaca e até o gato – é
naturalmente altruísta e que desde sempre esse altruísmo atua. Mais do que
isso: à medida que o ser humano desenvolveu-se historicamente, o altruísmo
tornou-se mais ativo e, portanto, mais forte. Se nos proverbiais tempos
pré-históricos o ser humano mantinha-se em pequenos grupos familiares para
comer, reproduzir-se e proteger-se, à medida que as associações sociais
aumentaram os traços de nossa natureza que submetem e disciplinam o egoísmo
tornaram-se cada vez mais intensos: a própria noção de “disciplina” exige a subordinação
do indivíduo a uma ordem externa (objetiva e subjetiva), da mesma forma que
todo aperfeiçoamento requer que um indivíduo ou um grupo reconheça suas
próprias limitações e suas próprias imperfeições e, assim, submeta-se a outrem.
A noção de “Humanidade” desenvolveu-se gradativamente, superando as limitações
familiares e pátrias; com isso, a veneração cedeu lugar primeiro para o apego e
estes dois, por sua vez, abriram espaço para a bondade universal.
A ciência da Moral de Augusto Comte apresenta inúmeras
outras características; mas, além do caráter inato do altruísmo e do seu
desenvolvimento histórico, uma das mais importantes descobertas do fundador da
Religião da Humanidade foi que é apenas o altruísmo que é capaz de disciplinar
moralmente um indivíduo, ao oferecer um princípio interno capaz de orientar os
vários instintos. O egoísmo, em contraposição, caso deseje tornar-se o guia
geral, fica sempre em uma constante disputa entre os seus vários instintos, sem
que nenhum consiga obter a ascendência sobre os demais: em outras palavras, a
harmonia mental e a conduta regrada surgem apenas quando o altruísmo disciplina
e orienta o egoísmo.
Considerando essa relação entre egoísmo e altruísmo, Augusto
Comte definiu-a como sendo própria aos sentimentos (evidenciando, assim, as
maiores importância e dignidade do altruísmo em relação ao egoísmo). Os
sentimentos são a base, são a origem das ações humanas; ao mesmo tempo, os
sentimentos são os objetivos de nossas ações; em outras palavras, agimos
movidos pelos sentimentos com vistas à satisfação dos sentimentos. A
inteligência, como indicamos antes, ocupa um papel secundário, ainda que da
maior importância, nessa economia moral: é a inteligência que explica o mundo e
o homem e, portanto, permite que a realidade faça sentido; além disso, a
inteligência esclarece quais são os meios possíveis (eventualmente os mais
adequados) à consecução dos nossos objetivos[vi].
Essa dinâmica foi sintetizada por Augusto Comte da seguinte maneira: “agir por
afeição e pensar para agir”.
É claro que, embora a inteligência tenha um papel
instrumental na economia humana, ela não é inerte, ou seja, ela é ativa e
funciona com relativa autonomia. Isso resulta em dois problemas sucessivos para
a inteligência: por um lado, ela pode buscar soluções para problemas propostos
pelo altruísmo ou pelo egoísmo; como vimos, é necessário que ela sirva o
altruísmo; por outro lado, a inteligência atua e obtém resultados, que podem
ser utilizados pelo altruísmo ou pelo egoísmo[vii].
Dito de outra maneira: não apenas os fins que buscamos têm sempre que ser
altruístas, como as possíveis soluções para esses objetivos têm sempre que ser
altruístas[viii].
Com isso fica evidente que o altruísmo tem que ser continuamente afirmado e
estimulado, a fim de poder sempre orientar e disciplinar a inteligência; os
meios para esse estímulo do altruísmo Augusto Comte compendiou na parte do
culto da Religião da Humanidade (mas de que não trataremos aqui)[ix].
Política brasileira: falta de
altruísmo nos objetivos e nas soluções
As considerações que fizemos até agora serviram para
evidenciar que qualquer descrição realista da política tem que incorporar,
necessariamente, os aspectos morais dessa atividade, seja porque a legitimação do sistema político envolve
aspectos morais, seja porque qualquer ação humana é moralmente orientada e
justificada. Assim, por um lado abandonamos as críticas que afirmam que as
considerações morais são mero “moralismo” e, por outro lado, evidenciamos que a
análise científica da política exige uma extensa análise científica da própria moral
(que, por sua vez, tem que ser moralmente orientada). Tudo isso se fundamenta
no Positivismo, ou melhor, na Religião da Humanidade.
Podemos abordar o tema que nos interessa, que é o fato de
que a presente crise política brasileira é também, ou melhor, é antes de mais
nada uma crise moral.
No cotidiano da política as concepções normativas dos vários
grupos sociais entram em choque entre si, da mesma forma que seus interesses
econômicos, políticos, culturais etc.; com freqüência valores e interesses
sobrepõem-se, resultando daí muito da riqueza da atividade política. Vale
também notar que a política envolve disputas e negociações para que políticas
públicas sejam implementadas e a tomada de decisões e a implementação das
políticas públicas envolvem beneficiar alguns grupos e algumas práticas em
detrimento de outros, escolhendo-se alguns caminhos de preferência a outros;
assim, embora as negociações ocorram o tempo todo, elas visam a converter-se,
em algum momento, em decisões concretas.
Os grupos que se confrontam nas arenas políticas têm que
concordar com alguns princípios elementares – pelo menos têm que aceitar que as
instituições existentes são minimamente aceitáveis e capazes de processar as
demandas sociopolíticas. Por certo que em alguns momentos as instituições são
vistas como incapazes de processarem as demandas sociais ou, além disso, são de
fato incapazes de tal processamento; nesses momentos, por diversos meios –
alguns pacíficos, outros nem tanto – as instituições mudam, regimes políticos
alteram-se e assim por diante. Em todo caso, o que queremos indicar é que no
dia-a-dia da política mesmo grupos que se opõem de maneira frontal têm que
concordar com as regras do jogo; além disso, é sabido que discordâncias morais
e intelectuais profundas não são nem nunca foram impeditivas de acordos
práticos a respeito de determinadas questões – o que é uma outra forma de dizer
que as conversas e as negociações ocorrem continuamente e que, se não o
respeito mútuo, pelo menos a tolerância e o convívio civilizado são bases da
atividade política.
No Brasil deixaram de existir esses diversos acordos tácitos
e explícitos que permitem a convivência de grupos opostos. A crítica moral ao
sistema político brasileiro sempre houve, tanto da parte da “direita” – como na
famosa União Democrática Nacional (UDN, 1946-1967), cuja reiterada crítica
moral tornou o “udenismo” sinônimo de “moralismo” – quanto da parte da
“esquerda” – fosse durante o regime militar (1964-1985), realizado pelas
oposições, fosse da parte do Partido dos Trabalhadores, que sistematicamente
rejeitou em nome de princípios morais todas as grandes mudanças políticas
brasileiras entre 1982 (quando foi fundado o partido) e 2002 (quando afinal foi
eleito para a Presidência da República). Ocorre que, devido a fatores sociais
profundos, na década de 2010 o descontentamento social com a política no Brasil
tornou-se mais profundo e mais radical e ultrapassando em muito a mera perda de
legitimidade do sistema político (como se tal perda fosse pouca coisa!). Não
faz sentido historiar os acontecimentos que resultaram em tal quadro; o ano de
2013 geralmente é indicado como deflagrador de amplas insatisfações populares,
mas é claro que as “jornadas de junho” tiveram causas que as antecederam e
acontecimentos posteriores e concomitantes aumentaram ainda mais a
radicalização.
A perda da legitimidade do sistema político é um problema de
perda de confiança; é uma questão moral, mas bem vistas as coisas a “moral”
implicada nele é bastante rasteira, na medida em que os sentimentos e as ideias
não estão em jogo: os sentimentos e as idéias de fundo permanecem, o que se
perde é a crença de que o sistema pode, de alguma forma, corresponder aos
sentimentos e às idéias, bem como os satisfazer.
O problema vivido atualmente no Brasil consiste no
aprofundamento radical dessa crise de legitimidade; os sentimentos e as idéias
de fundo anteriores perderam-se ou corromperam-se, sendo cada vez mais
substituídas por outras coisas muito ruins e muito piores: em vez de termos amor,
temos ódio; em vez de termos altruísmo, temos egoísmo; em vez de termos
bondade, temos mesquinhez. As interpretações racionais e racionalizadoras seguem
de maneira quase automática tais sentimentos duros, agressivos e destrutivos.
Essa alteração profunda não ocorreu no vazio; ela foi
realizada de maneira intencional por vários grupos e indivíduos que a desejam
conscientemente. Na verdade, ela corresponde à infeliz reunião de políticos
anti-intelectualistas mas extremamente violentos e promotores da violência como
política de Estado com intelectuais que, em nome de interpretações bastante
específicas do catolicismo, promovem o culto ao ódio, à intolerância e ao
desrespeito. Injunções político-partidárias muito específicas criaram o
ambiente específico para que frutificasse politicamente a união de violentos
políticos anti-intelectuais com intelectuais imorais. Como se sabe, apoiam essa
coligação empresários e capitalistas que buscam meios de sistematicamente se
furtarem às suas responsabilidades sociais, da mesma forma que líderes
religiosos que buscam apenas explorar a pobreza, a ignorância e a boa-fé
popular.
Em tal quadro os sentimentos estão profundamente alterados
e, como dissemos, chegam a estar pervertidos: por um lado há o culto à
mesquinhez individual e coletiva, disfarçado sob um manto que conspurca a idéia
de “bem comum”; mas, por outro lado, o que permite essa conspurcação é que o
altruísmo, a bondade, a generosidade – em uma palavra, o amor – foram
substituídos não pela mesquinhez e pelo egoísmo, mas pelo ódio. De fato, o
intelectual imoral que exerce a tarefa de legitimar a aberração política que
atualmente ocorre no Brasil já disse diversas vezes que o ódio é um sentimento
tanto quanto o amor e que, portanto, ele é tão legítimo quanto o amor para
motivar as ações humanas. Daí se segue naturalmente o culto à morte, a
dicotomização da política, o desrespeito e a intolerância a todos aqueles de
quem discordam. A paranóia é mais um traço dessa política degenerada; não há
dúvida de que ela é um traço específico de vários importantes líderes dessa
onda política, mas é bastante claro que ela também se constitui em uma
característica própria ao movimento como um todo: afinal, a política, ou
melhor, a República e a cidadania pressupõem uma confiança generalizada, mesmo
que abstrata, e essa mesma confiança generalizada é negada sistematicamente
pelos cultores do ódio e da violência.
Se o ódio é o sentimento de base e a violência a prática
política justificada, do ponto de vista intelectual essa política nutre-se das
teorias da conspiração. É fácil ver como as teorias da conspiração vinculam-se
ao ódio e à violência: elas também se baseiam na desconfiança sistemática, na
falta de respeito pelos outros, na exclusão dos “inimigos” e na autoexclusão
dos “eleitos”. A inteligência, aí, não cumpre o papel de esclarecer, mas apenas
o de justificar – sempre a posteriori
– as idéias derivadas do sentimento de ódio e da prática da violência
sistemática.
Em termos coletivos, esses vários traços convergem para uma
postura destrutiva e destruidora, que abomina o diálogo e a tolerância; também
constitui um grupo que se torna cada vez mais coeso, ao isolar-se
progressivamente do resto da sociedade – a quem, aliás, trata na base da
pancada (ou do tiro) – e ao realizar um culto à personalidade. A paranóia, as
teorias da conspiração e o autoisolamento produzem outro resultado mental: a
lavagem cerebral.
O conjunto disso tudo traduz-se na constituição de grupos
fanáticos, autoritários, violentos, agressivos, intolerantes – e lamentavelmente
extremamente ativos. A experiência histórica já deu nome para esse tipo de
movimento: fascismo. O repertório das
atividades práticas fascistas também já é conhecido e é constituído não apenas
pelo que vimos indicando até o momento, mas também de outras táticas
reiteradas, como o emprego sistemático da desinformação, o uso proposital e
perversamente ambígüo das palavras e a atribuição aos seus adversários (sempre
entendidos como “inimigos” a serem abatidos) de práticas e maus sentimentos
que, todavia, correspondem às práticas e sentimentos dos próprios fascistas.
Esse conjunto evidencia, afetivamente, que subjazem a ele não apenas os
sentimentos egoísticos, mas principalmente o desejo de destruir tudo aquilo de
que os fascistas discordam ou que lhes desagradam: é a consagração do ódio e do
medo. Do ponto de vista intelectual, as táticas adotadas pelo fascismo visam a
causar confusão sistemática entre a população e, mais do que isso, a corromper
a confiança básica para qualquer sociedade, seja entre cidadãos e governo, seja
dos cidadãos entre si: é a consagração da desconfiança. A noção de uma
realidade objetiva, externa às vontades individuais e coletivas, é combatida de
maneira direta e indireta, seja por meio da sua negação clara, seja por meio da
confusão e da desconfiança. Assim, o Estado torna-se uma instituição
basicamente repressiva e as únicas coisas de que se pode ter certeza (além do
medo e do ódio) são as decisões tomadas em cada momento pelo líder.
O Brasil vive esse triste quadro há cerca de dois anos; os
grupos sociais que se baseiam e que apóiam tais concepções organizam-se há
muito tempo – começaram justamente nos meios de comunicação, empregando a
violência retórica a título de “verdade”
– e obtiveram um inaudito sucesso político nas eleições presidenciais de 2018,
em parte devido ao fracasso retumbante da esquerda, em parte devido à inépcia
política e moral da centro-direita, em parte devido à exitosa manipulação das
idéias e dos valores da população brasileira. Em meados de 2020, quando escrevo
estas páginas, o estado de coisas descrito acima aprofunda-se mais e mais, com
grupos de fanáticos manifestando-se cada vez mais, manipulando as instituições
públicas, realizando lavagem cerebral em seus membros e seus simpatizantes – e,
talvez o mais importante, ocupando espaços públicos (como na constituição de
“acampamentos de resistência” na Esplanada dos Ministérios em Brasília)[x].
Pode-se com legitimidade obtemperar que grupos fascistas
constituem a exceção e não a regra do ambiente sociopolítico brasileiro e que,
assim, não faria muito sentido afirmar a sua importância política. De fato,
esses grupos são realmente minoritários; entretanto, há pelo menos dois fortes
motivos para que não se os considere desimportantes. Em primeiro lugar, indicamos
antes que esses grupos são extremamente ativos e mobilizados; em vez de
diminuírem em tamanho e em quantidade, o movimento que se vê é o de eles
aumentarem em quantidade de membros, em quantidade de grupos e em organização
interna (sem contar a lavagem cerebral, que ocorre continuamente). Associado a
isso está o fato de que, embora tenham um violento discurso antissistêmico,
tais grupos obtiveram o poder em 2018 e o atual Presidente da República não
disfarça sua vivíssima simpatia para com eles. À medida que o tempo passa, a
instabilidade do atual governo federal aumenta, o que aos olhos dos ativistas
parece justificar suas atividades e, portanto, torna-os mais aguerridos: não se
pode desprezar, nunca, a importância política que grupos minoritários e
marginais, mas extremamente aguerridos, podem ter.
Em segundo lugar, embora os grupos paramilitares sejam
minoritários em relação à totalidade da população brasileira e sejam
evidentemente radicais, ou ultrarradicais, em seus posicionamentos
sociopolíticos, o fato é que eles legitimam a sensibilidade, o discurso e a
prática da violência, do ódio e da intolerância, abrindo espaço para que grupos
menos extremos que eles, mas defensores de comportamentos assemelhados,
organizem-se, manifestem-se e obtenham poder. Na verdade, o caráter exemplar
dos extremistas para os não-extremistas não é uma simples possibilidade, mas
uma realidade efetiva, como se pode constatar no comportamento reacionário de
inúmeros grandes empresários brasileiros que apóiam tais grupos e combatem com
palavras, dinheiro e humilhações de seus empregados a dignidade indígena, a
qualidade de vida dos trabalhadores, a proteção ao meio ambiente, as liberdades
de consciência, expressão e organização (com a evidente exceção das suas
próprias “consciências”, expressão e organizações) – e, durante a presente
pandemia de covid-19, o trabalho quase compulsório de todos os que não são
doentes e/ou idosos, em franca oposição às recomendações de todas as
organizações médicas do mundo inteiro[xi].
Em outras palavras, a mera existência de tais grupos extremistas abre espaço
para que seus valores e suas idéias ganhem espaço na sociedade, passando a
estar disponíveis no repertório sociopolítico nacional; nesse sentido, mesmo
pessoas que poderíamos em outros contextos julgar sensatas, razoáveis, dotadas
de boa vontade, podem deixar-se seduzir pelo fascismo, mesmo e principalmente
quando suas idéias e valores não são apresentadas com clareza como sendo
fascistas.
A necessidade de ligas religiosas
e políticas
Como dizia Augusto Comte, a natureza do problema indica a
natureza da sua solução. O problema vivido atualmente no Brasil é político e
moral; assim, são necessárias medidas políticas e morais. Essas medidas devem
ser tanto diretivas (educativas) quanto repressivas (jurídico-policiais) e
devem ser aplicadas com urgência cada vez maior.
As medidas políticas são as mais diretas e as mais fáceis de
serem implementadas; o ordenamento político brasileiro orienta-se claramente em
prol das liberdades, do respeito à vida, da tolerância etc.: as autoridades,
portanto, devem fazer cumprir as leis e coibir o máximo possível, mas sempre
dentro dos limites da lei, todos os comportamentos violentos e de ódio.
Todavia, a repressão é o ambiente em que os fascistas
sentem-se mais à vontade; a planta do fascismo só é exterminada quando o
conjunto da população afirma com todas as letras, de maneira clara, que o
fascismo é inaceitável; aliás, quando o conjunto da população recusa a árvore e
também impede que as sementes do fascismo surjam e brotem. Esse trabalho, não
há dúvida, é muito mais difícil e de longo prazo – o que não quer dizer,
todavia, que ele não possa render frutos de imediato.
A ação pedagógica depende de ligas religiosas e políticas.
Os conservadores, que tradicionalmente afirmam a importância dos valores
morais, devem reafirmar essa importância, mas ao mesmo tempo devem deixar de
lado suas repugnâncias pelo que consideram os exageros do progresso e devem
assumir que no Brasil as liberdades, o respeito mútuo, a tolerância são
efetivamente tradicionais e, portanto, devem ser valorizadas e respeitadas. As
diversas religiões existentes no Brasil – fetíchicas, politeístas, monoteístas,
metafísicas e positiva – devem igualmente afirmar, isoladas ou em grupos, que
só o amor constrói, que o altruísmo deve prevalecer sobre o egoísmo, que o ódio
não pode nunca ser considerado o pilar de nenhuma política nem de nenhuma
organização social. Em várias ocasiões as religiões teológicas defenderam
valores contrários a esses, em particular algumas religiões monoteístas;
entretanto, ao menos nominalmente todas – fetichistas, teológicas, metafísicas,
positiva – defendem atualmente o amor, o altruísmo, a tolerância: que o afirmem
mais e mais vezes, que repudiem o ódio, o egoísmo, a intolerância[xii].
Em termos políticos, é necessário que os vários partidos e
grupos sociais unam-se em favor das liberdades e contra o fascismo. Essa união
não precisa ser explícita: basta que tacitamente os grupos deixem de ferir-se
uns aos outros e passem a envidar esforços sinérgicos, ou seja, na mesma
direção, com o mesmo objetivo. Da mesma forma, os líderes políticos devem agir
no sentido de preservar e fortalecer as instituições republicanas, além de
adotarem os remédios republicanos para nossos correntes males políticos. Isso
equivale em particular a duas séries de medidas: por um lado, os líderes
políticos devem deixar de fazer mesquinhos cálculos político-eleitorais e devem
passar a mirar no afastamento constitucional do atual Presidente da República,
cujo comportamento já se revelou mais do que pródigo em crimes comuns, crimes
de responsabilidade, quebras do decoro etc. Por outro lado, os líderes devem
abandonar qualquer esperança de substituir o presidencialismo pelo
parlamentarismo: tal substituição não resolveria nenhum problema, geraria um
desgaste sociopolítico inaceitável para o país atualmente, oneraria o país com
uma estrutura inútil (a Presidência de enfeite) e substituiria o governo do
fascista pelo governo dos mancomunados.
A chamada sociedade civil pode e deve apoiar os esforços
tanto da liga religiosa quanto da liga política. Os chamados “intelectuais”,
por fim, têm que se pôr ao lado da sociedade civil e da liga religiosa, de modo
a atuar como formadores de opinião; assim, devem abandonar os sempre existentes
desejos de assumirem o poder (no lugar dos grupos políticos que a cada momento
governam, geralmente na forma de oportunistas propostas parlamentaristas). No
quadro atual, os intelectuais não podem furtar-se à obrigação de
manifestarem-se publicamente ; atuando como formadores de opinião, os
intelectuais devem indicar as possibilidades de ação para os políticos e os
efeitos sociais e políticos do fascismo; mas, como formadores de opinião, devem
apenas secundar os esforços da liga religiosa, cujo papel é o de reverter a
putrefação moral que se estende pelo país.
A substituição do atual governo, fascista, por um outro que
não o seja não encerra nossos problemas; ela é uma etapa necessária mas
insuficiente. O trabalho pedagógico, da cultura do amor e do respeito, deve ser
mais uma vez retomada no país; em particular, ela deve refletir-se
politicamente no abandono radical de qualquer discurso e de qualquer prática
que oponha brasileiros contra brasileiros, ou “nós” contra “eles”: essa é a
verdadeira e profunda origem dos males que nos afligem.
[i]
Gustavo Biscaia de Lacerda, sociólogo.
[ii]
Este documento deveria ser um pequeno artigo episódico para eventual publicação
em jornal diário; entretanto, a natureza do problema e a necessidade de
explicar com um mínimo de detalhe a interpretação positiva de nossas
dificuldades levou-me a ampliar cada vez mais a redação. Como ficará claro ao
longo das páginas seguintes, esta é uma contribuição positivista para os
profundos problemas que afligem atualmente o Brasil; embora sejamos suspeitos
para falar, até o momento é a única interpretação que considera com a
profundidade necessária os vários aspectos essenciais desses problemas.
[iii]
Os romanos, que como a respeito de tantos outros aspectos são um dos nossos
melhores antepassados políticos, designavam os postulantes aos cargos eletivos
como “candidatos”, ou seja, como indivíduos “cândidos”, que trajavam togas
talares da cor branca exatamente para
indicarem sua pureza moral.
[iv]
Vale notar que muitos dos “realistas” com frequência são acadêmicos que – o
mais das vezes de maneira secreta – gostariam eles m esmos de exercer o poder.
[v] A
Moral foi justamente denominada de “ciência sagrada” por Augusto Comte; ela
está no ápice da série enciclopédica, que organiza por generalidade objetiva
decrescente e generalidade subjetiva crescente as ciências abstratas mais
gerais: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral.
A Moral é a ciência mais complexa e a mais nobre; por isso mesmo foi a última a
constituir-se, pois exigia que o entendimento do mundo e do ser humano
ocorresse antes. O conhecimento teórico, abstrato, da Moral conduz
imediatamente à atividade prática, concreta, que lhe é própria e que consiste
na orientação de cada indivíduo em sua vida, considerando o caráter social do
ser humano.
[vi] A
partir disso se evidencia que a descrição da realidade do mundo não se opõe,
nem pode opor-se, à idealização desse
mesmo mundo. Da mesma forma, isso também evidencia que a busca do conhecimento real tem que se aliar, ou melhor, tem
que se submeter à busca do conhecimento útil.
[vii]
Augusto Comte considerava pelo menos mais um problema relativo à inteligência,
que é a sua busca incessante de ela mesma querer ser o princípio regulador e
coordenador da economia moral em vez de submeter-se aos sentimentos
(altruístas). Essa questão, importante por si só, refere-se mais à autonomia da
inteligência e tem uma aplicação mais direta entre os “intelectuais”; como a
presente reflexão tem um caráter político, esse problema não nos interessa
tanto agora.
[viii]
O conjunto das observações precedentes também esclarece porque os analistas
políticos “realistas” estão errados ao considerarem que a política é apenas a
disputa de poder e ao desprezarem o papel da idealização e dos valores morais na
vida política. Além de fazerem uma descrição extremamente pobre da atividade
política (apesar de dizerem-se “realistas”), eles ou deixam de lado ou ignoram
aspectos centrais da natureza humana que têm impacto direto na realidade
política, como a busca do bem comum, a própria necessidade de idealizar a
realidade para desenvolver atividades, o devotamento pessoal a causas que
ultrapassam as motivações egoísticas.
[ix]
Vale notar, de qualquer maneira, que a Religião da Humanidade sistematiza as
concepções acima e, mais do que tudo, sistematiza o culto, de maneira a
estimular cotidianamente o altruísmo, com vistas à regulação da inteligência e
da atividade prática.
[x] Em
maio de 2020, por exemplo, um grupo denominado de “300 de Brasília” fez um
acampamento na Esplanada. Esse grupo – que, apesar do nome, não se constitui
por 300 mas por cerca de 50 pessoas – é ao mesmo tempo militantemente “cristão”,
agressivo em seu linguajar, defensor da extinção de instituições como o Supremo
Tribunal Federal e o Congresso Nacional, defensor do fim da “imprensa
tradicional”, defensor de intervenção militar na política e do Ato
Institucional n. 5 (de 13.12.1968, o mais violento de todos os AIs), defensor
do uso de armas para “proteção”, defensor de uma “ucrainização do Brasil” (ou
seja, da ocorrência de uma guerra civil no país, de maneira semelhante ao que
ocorre na Ucrânia, após a invasão russa e a tomada violenta da Criméia em
2015). E tudo isso ao mesmo tempo em que dizem que são “não-violentos” e “a
favor da vida”. O grau de confusão moral, intelectual e política é evidenciado
pelo uso simultâneo de camisetas e de bandeiras enaltecendo a monarquia
brasileira e a bandeira nacional republicana!
Aliás, no
que se refere à bandeira nacional, esses grupos repetem sem cessar o “Ordem e
Progresso”, entendendo por “ordem” um autoritarismo militar, ao mesmo tempo em
que desprezam o “Positivismo” e ignoram profundamente que, para Comte e o
Positivismo, a “ordem” inclui as liberdades civis e o repúdio à violência.
Por fim, a
referência à Ucrânia é reveladora: se há lá uma guerra civil, isso se deve a
que grupos pró-russos defendem ou a anexação total do país à Rússia ou a
independência de partes do território ucraniano (seguidas, evidentemente, pela
anexação “voluntária” à Rússia). A Rússia, nesse caso, não é uma expectadora
inocente: baseada em um fascismo místico, pelo menos desde o início do século
XXI ela defende a anexação da Ucrânia ao seu território e o combate sistemático
ao Ocidente (daí, aliás, o apoio russo à eleição de Donald Trump nos EUA e à
saída da Inglaterra da União Européia).
[xi]
Reveladora da intensidade da degradação moral desses empresários é a afirmação
de que na pandemia não haveria problemas em que morressem umas cinco ou sete
mil pessoas, de modo geral idosas; o importante seria que a economia
continuasse a funcionar (e, portanto, que todos infectassem-se com o
coronavírus-2, até o momento sem vacina disponível contra ele). Em meados de
maio, enquanto escrevemos, a taxa de mortes já ultrapassou a marca dos 14 mil
mortos – mas é claro que tais empresários não mudaram de opinião: desde que a
economia continue funcionando, as mortes podem continuar ocorrendo.
[xii] Como
estamos indicando, o Positivismo prega exatamente o contrário do que tais grupos ultraconservadores atribuem-lhe; mas,
ainda assim, pessoas de boa vontade, movidas por boas intenções, repetem erros
sistemáticos na ânsia de serem “críticos” e de evidenciarem alguma cultura
histórica – exemplo disso foi a desastrada e profundamente injusta observação
feita pelo rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista, em
artigo no jornal O Estado de S. Paulo
de 9 de maio de 2020, em que atribui ao “Positivismo científico” a motivação e
a justificativa para atrocidades sociais variadas (aliás, note-se: atrocidades
apenas sugeridas, mas não nomeadas). Logo um rabino, sacerdote de uma religião
que tanto preza o conhecimento e que, como poucos povos e culturas, sofreu os
efeitos da perseguição e da desinformação!