12 julho 2020

Carla Zambelli usa o Positivismo para tentar cinco segundos de fama


No dia 5.7.2020 a Deputada Federal bolsonarista, de extrema direita, Carla Zambelli realizou um ataque vil e desprezível, completamente despropositado, contra o Positivismo, ou melhor, contra “os positivistas” (o original encontrando-se disponível aqui).

Este ataque é mais um que a extrema direita faz atualmente contra o Positivismo. Ele é mais uma peça de desinformação de um grupo que se fez e mantém-se graças ao uso sistemático da desinformação, da busca sistemática de inimigos e do uso sistemático de teorias da conspiração.

Essa postagem enseja pelo menos duas ordens de reflexões.

Por um lado, a sua falta de propósito específico salta aos olhos. Carla Zambelli é uma pessoa cuja carreira política desde o início está vinculada ao extremismo político, cuja marca mais evidente – além do extremismo, claro está – é a mais intensa ambição... mas é pura ambição, desejo pessoal de fama e poder, completamente destituída de objetivos sociais, de destinação coletiva. Ela - como muitas outras pessoas de seu círculo - personifica a noção de que o "poder corrompe", embora, bem vistas as coisas, talvez o problema não esteja propriamente no poder.

Assim, a postagem sobre os positivistas busca apenas pôr em evidência a deputada, de alguma forma e durante alguns instantes, em meio ao seu público cativo (a extrema direita, conspiratória, agressiva) e no ambiente que lhe é próprio (as redes sociais). Além disso, essa postagem, além disso, é fácil e simples, pois no fundo não se refere a nada (quem seriam esses tais “positivistas”? Qual sua atuação no governo?) e já foi objeto de referências de outros membros do atual governo (em particular de um dos filhos do Presidente da República); mas, com sua generalidade e vagueza, essa postagem consegue satisfazer os adeptos das teorias conspiratórias. Em suma, a deputada tenta empregar o Positivismo para obter cinco segundos de fama.

Por outro lado, essa postagem de Carla Zambelli, feita para pôr-se em evidência em meio à extrema direita, somente repete o que a esquerda (aí incluída a esquerda nas universidades) sempre fez e faz, também de maneira sistemática, contra o Positivismo.

No Brasil, o comportamento em face do Positivismo evidencia o quanto direita e esquerda com frequência são desprezíveis. Mais uma vez: direita e esquerda partidárias, mas também direita e esquerda acadêmicas. E, aliás, o Positivismo é o alvo preferencial não somente no Brasil, como também nos EUA e na Europa.

Deseja-se ver putrefação moral e intelectual? Basta ver-se o comportamento a respeito do Positivismo. Falta de generosidade, falta de respeito, falta de relativismo, falta de conhecimento histórico... esses e inúmeros outros defeitos morais e intelectuais abundam nos comentários da direita e da esquerda sobre o Positivismo. É tanta coisa que chega a ultrapassar o cansaço, alcançando o nojo e até a ânsia de vômito. (O único desagravo não-positivista contra a postagem antipositivista foi uma belíssima nota do Movimento de Resgate Nacional, Morena, que é um grupo de esquerda de inspiração trabalhista e disponível aqui.)

É desesperador. A postagem da deputada dá a exata medida da podridão moral de diversos ambientes políticos e intelectuais nosso país.


Fonte: https://mobile.twitter.com/CarlaZambelli38/status/1279832474432962560

03 julho 2020

Positivismo, teorias da conspiração e covid-19



No Brasil, a despeito das crescentes taxas de infecção e de morte pela covid-19, ainda há gente que nega a realidade do problema e, ao mesmo tempo, atribui as medidas de isolamento social e uso de máscara facial a mitos como os “comunistas” e o “globalismo”, estejam eles dispersos no Brasil por meio do “marxismo cultural”, estejam eles concentrados em malvadas instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Essa insistência é a face afirmativa de uma evidente teoria da conspiração: os problemas sociais e políticos ocorrem não devido à dinâmica da realidade, que em grandes linhas é rebelde ao controle humano, mas, justamente ao contrário, eles devem-se à ação intencional e coordenada de alguns poucos indivíduos, localizados em agências-chave e que, por isso, conseguem controlar a sociedade (e até o meio ambiente) como se possuíssem barbantes que controlam títeres. Aliás, nem é necessário que o grupo dos “poderosos” e “dominadores” ocupe de fato postos-chave em órgãos-chave; é até melhor que esses “poderosos” fiquem ocultos e que atuem nas sombras, às escondidas, de tal sorte que os ocupantes de cargos importantes seriam, eles mesmos, meros joguetes nas mãos desses poderosos. Os meios utilizados pelos “poderosos” para controlar seus títeres seriam igualmente secretos e ignorados pelo grande público; podemos apenas supor que devem incluir a subordinação servil, canina, dos dignitários aos “poderosos”; a constituição de redes secretas de amizades e compadrio, que atuariam como canais insuspeitos da transmissão de ordens; a chantagem; a corrupção.

Além disso, as teorias da conspiração levam até as últimas consequências a suspeita sistemática e total contra todos os aspectos públicos e visíveis da sociedade e da política, considerando que os argumentos expressos em discursos e documentos públicos são falsos ou, pelo menos, que eles simplesmente correspondem a idéias gerais utilizadas para o controle e a manipulação do que ingenuamente se chamaria de “grande público”. As “verdadeiras” idéias não seriam públicas e, por isso mesmo, sendo reservadas ao pequeno e secreto grupo dos “verdadeiros” “poderosos”, seriam egoístas, dissimuladoras, maléficas – em uma palavra, seriam “malvadas”.

Os adeptos das teorias da conspiração caracterizam-se, portanto, por uma dúvida não “sistemática” (como a preconizada pelo grande René Descartes), mas por uma dúvida patológica: nada é o que se diz, tudo é falso e manipulado. O curioso é que as únicas pessoas que “sabem” que tudo é assim são alguns indivíduos que, heroicamente, por acaso têm esse conhecimento todo. Não sou psicólogo, mas com certeza os adeptos das teorias da conspiração devem caracterizar-se por algum desvio de caráter, além de, evidentemente, desvios cognitivos.

O problema é que os adeptos das teorias da conspiração de verdade não “sabem” de nada; no máximo eles têm apenas um violento e invencível ceticismo generalizado. Por que eles não “sabem” de nada? Porque, além das suspeitas sistemáticas e das acusações de manipulação e conspiração, eles não são capazes de afirmar nada sobre nada. Seja devido à sua estrutura moral-intelectual (que rejeita a concepção e a prática da confiança generalizada, própria aos indivíduos sãos), seja devido à constituição específica de suas crenças, os adeptos das teorias da conspiração são incapazes de apresentar provas e fatos de suas afirmações. Em outras palavras, eles são sempre e necessariamente incapazes de ter, ou de produzir, conhecimentos científicos; eles têm apenas puras crenças.

Como há mais de 200 anos dizia Augusto Comte – o fundador da Sociologia, da Moral Positiva, da História das Ciências e da Religião da Humanidade –, a política moderna tem que ser uma política “positiva”, ou uma política “científica”. Com isso ele não queria dizer que a política deve ser feita, por exemplo, a partir de programas de computador, ou que os indivíduos devem agir como autômatos; bem ao contrário, a concepção positivista de política científica consiste em a política basear-se nos conhecimentos positivos (científicos), mas não se reduzir a eles; em outras palavras, realizando com clareza meridiana a separação entre a teoria (científica) e a prática (político-social). Nesses termos, as investigações sociais são distintas da ação política e cada uma dessas atividades tem suas próprias particularidades, que devem ser respeitadas mutuamente.

O objetivo da política positiva é abandonar a situação prévia à fundação da Sociologia, em que se desenvolvia o que Augusto Comte chamava de “política empírica”. “Empírico”, nessa expressão particular, não significa o conhecimento factual e teórico da realidade, mas a ação que se realiza às cegas, sem parâmetros sociais, políticos, técnicos e morais para guiá-la, mas apenas o entrechoque das paixões e dos interesses dos vários grupos sociais. A roupagem contemporânea da necessária política científica afirmada por Augusto Comte consiste largamente no que se chama de “políticas públicas”, que são ações realizadas e/ou coordenadas pelo Estado, com ou sem apoio ou auxílio da sociedade civil, com vistas a orientar o desenvolvimento social em direções julgadas necessárias e corretas. Essas políticas públicas, além disso, caracterizam-se por outro aspecto estabelecido pelo fundador do Positivismo: a publicidade de todas as decisões, a que se associa a moralidade delas.

A proposta de política científica do Positivismo, portanto, rejeita liminarmente as teorias conspiratórias – seja porque exige o conhecimento da realidade cósmica, social e humana, seja porque ela deve ser feitas às claras (com a indicação expressa de quem são os seus responsáveis, quais as metas, quais os procedimentos adotados etc.), seja porque ela baseia-se sempre no assentimento e na confiança públicos.

Feitas essas considerações todas, podemos voltar às fatigantes suspeitas sistemáticas das teorias conspiratórias contra os procedimentos de isolamento social recomendadas para o combate à covid-19. Os adeptos das teorias da conspiração afirmam que a covid-19 não é tão perigosa quanto parece; que há um falseamento nos dados de infecção e de morte; que as medidas de isolamento social, de restrição de movimentação nos espaços públicos e de uso das máscaras faciais são no mínimo exageradas (quando não “totalitárias”); que todos esses erros e exageros são propositalmente difundidos pelos “comunistas”; que essas medidas estão a serviço do “globalismo”; que esse “globalismo” seria a versão para consumo internacional do que o “marxismo cultural” seria a versão para consumo interno; que instituições como a OMS são agentes do “comunismo globalista”.

Como observamos acima, todas essas suspeitas baseiam-se na rejeição sistemática da confiança pública. Entretanto, deixando de lado o aspecto moral, ou melhor, o aspecto psicopatológico dessa disposição, cabe avaliar se elas correspondem à realidade; em outras palavras, é necessário transformar as suspeitas (ou melhor, as certezas) acima em hipóteses de pesquisa. Os instrumentos intelectuais e físicos para realizar tais investigações existem há muito, muito tempo e a cada dia que passa são mais desenvolvidos e refinados; eles envolvem investigações biológicas, clínicas e epidemiológicas, por um lado, e históricas, antropológicas, políticas e sociológicas, por outro lado.

Vejamos:

-        quais as taxas “reais” de infecção do coronavírus-2 e de letalidade da covid-19?

-        Se os dados “reais” de infecção e letalidade são falseados, quem realiza tal falseamento e com quais objetivos?

-        Se os dados “reais” de infecção e letalidade são falseados, quais são os dados “reais” e como os obter?

-        Se os procedimentos recomendados para o combate à covid-19 são inadequados, quais seriam as alternativas? Adicionalmente: com base em quais estudos essas alternativas foram propostas e testadas?

-        Se os procedimentos recomendados para o combate à covid-19 são “totalitários”, quais seriam os procedimentos de combate que respeitariam as liberdades? Adicionalmente: como é que os países efetivamente totalitários estão lidando com a covid-19? Como é que os países não-totalitários estão lidando com a covid-19?

-        Se os problemas anteriores são difundidos pelos “comunistas”, quem seriam esses “comunistas”? Por quais meios? Com quais objetivos? Quais os seus valores? Onde eles reúnem-se? Desde quando o “comunismo” está em operação?

-        Se os problemas anteriores estão a serviço do “globalismo”: qual a relação do “globalismo” com o “comunismo”? Quem seriam os defensores e os promotores do “globalismo”? Desde quando o “globalismo” está em operação? Por que o “globalismo” seria a versão internacional do que o “marxismo cultural” seria a versão nacional? Como o “globalismo” é capaz de ser “comunista” mas enganar todos, urbi et orbi, travestindo-se de “capitalista”? Como e por que os “verdadeiros” “capitalistas” deixam-se enganar pelo “globalismo”?

-        Se as instituições internacionais estão a serviço do “globalismo”: por que somente a OMS aparece como “globalista”? Quem são, efetivamente, os aderentes e os promotores do globalismo nas instituições internacionais, começando pela OMS mas incluindo necessariamente aí a ONU, a OEA, o FMI, o BIRD, o BID, a OTAN, a OPEP etc.?

-        Por fim, mas de maneira central: se tudo isso é apenas fachada para os “verdadeiros” poderosos: nominalmente, quem são esses “verdadeiros” poderosos? Por quais meios eles agem? Quais os seus interesses? Como se dá a relação entre os “verdadeiros” poderosos e os títeres que aparecem em público?

-        Se os “verdadeiros” poderosos não se apresentam em público, como é que os adeptos das teorias conspiracionistas chegaram a conhecê-los e a seus projetos?

-        Se os “verdadeiros” poderosos não se apresentam em público e controlam os agentes públicos como títeres, qual a efetiva relevância desses agentes públicos? Não seriam tais agentes públicos, mesmo os adeptos das teorias conspiratórias, simples títeres dos “verdadeiros” poderosos?

A investigação das hipóteses acima não é algo simples nem fácil; por isso, muitas respostas podem ser obtidas por meios indiretos (por meio de variáveis proxy), o que torna as respostas menos satisfatórias e, portanto, deveria tornar as próprias assunções conspiracionistas mais suaves. Mas o que importa notar, de qualquer maneira, é que ao transformar as assunções conspiracionistas em hipóteses a serem testadas, a completa vagueza das conspirações tem que, necessariamente, ceder lugar para descrições concretas e feitas com objetividade, em todo o universo sob análise (isto é, todos os países do mundo), a partir da aplicação coerente e sistemática de procedimentos que sejam sujeitos à avaliação pública.

Por outro lado, embora não seja tão evidente à primeira vista, o fato é que a investigação das hipóteses acima constitui apenas o passo inicial da pesquisa; o passo seguinte consiste em que se deve avaliar se a realidade criticada pelos conspiracionistas seria de fato inferior ao que eles subrepticiamente defendem em seu lugar; em outras palavras, trata-se de uma avaliação moral das críticas dos conspiracionistas. Para ficarmos em um exemplo simples, fácil e fundamental: se o “globalismo” é prejudicial, por acaso a revalorização do nacionalismo unilateralista seria benéfica? A chamada globalização, em curso acelerado desde os anos 1990, aumentou a interdependência de todos os países uns com os outros: mesmo que fosse possível reverter esse processo (o que dificilmente seria factível), será que ele beneficiaria as pessoas? Problemas transnacionais como as mudanças climáticas, as migrações internacionais, os fluxos financeiros especulativos e – é impossível não nos referirmos a isto – a pandemia podem efetivamente ser tratados isoladamente pelas centenas de países do mundo, cada qual com seus recursos limitados, com a sobreposição brutal de atividades e a total falta de coordenação? Além disso, é claro que também fica em aberto a questão sobre quem seria beneficiado pela reversão do mundo integrado à colcha de retalhos nacionalista: por certo que em um primeiro momento alguns países seriam bastante beneficiados (em particular os grandes países, isto é, as nações mais ricas), mas esse benefício com certeza declinaria com o passar do tempo e, no final das contas, o conjunto da Humanidade sairia perdendo, devido à difusão da miséria e do sofrimento. Questões e raciocínios semelhantes podem e devem ser aplicados a todas as suspeições conspiracionistas indicadas acima; os seus resultados morais devem ser igualmente desastrosos.

Estas longas reflexões servem apenas para evidenciar o quanto as teorias da conspiração são intelectual e moralmente defeituosas; na verdade, elas são verdadeiras patologias morais. Enquanto escrevemos, o mundo está literalmente em meio à pandemia de covid-19; as teorias conspiratórias não somente não fazem nada para ajudar a combater essa pandemia, como pioram ativamente o ambiente social e moral e minam, também ativamente, os esforços envidados mundo afora para resolver essa gravíssima crise.

Augusto Comte definia a palavra “positivo” como tendo sete sentidos: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático; o conjunto desses atributos constitui o verdadeiro espírito positivo. Tanto as teorias da conspiração como as crises vinculadas à covid-19 (moral, sanitária, política e econômica) somente podem ser solucionadas com espírito positivo.

02 julho 2020

Réplica a S. Schwartzmann: Positivismo e falsa analogia das crises de 1904 e 2020

O texto abaixo é uma réplica a um artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo no dia 12.6.2020, de autoria do sociólogo Simon Schwartzmann. Embora, como observo abaixo, o artigo original tenha feito inúmeras sugestões extremamente maliciosas contra o Positivismo e os positivistas e, portanto, uma réplica tenha-se mostrado necessária, o jornal paulistano recusou-se a publicar essa minha réplica. Assim, publico-a no espaço que me é permitido, a despeito do inflamado discurso do conservador jornal paulistano a respeito do "pluralismo", da "democracia" e do "debate de idéias".

Além disso, como também observo abaixo, o Positivismo é habitualmente empregado como o bode expiatório preferencial por todos os grupos político-intelectuais que querem encontrar algum responsável pelos problemas nacionais. Esse comportamento é intelectualmente desonesto e politicamente irresponsável, sem contar que, na quase totalidade das vezes, é historicamente mentiroso. Já passou da hora de os autodenominados "intelectuais" brasileiros abandonarem esse hábito infantil, de amadurecerem e de passarem a valorizar as inúmeras, enormes e profundas contribuições do Positivismo para o país, para o Ocidente e para o mundo.

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Positivismo e falsa analogia das crises de 1904 e 2020

Desde o início do governo Bolsonaro, devido à renovada importância que os militares assumiram no poder Executivo federal, o Positivismo voltou à baila. Entretanto, esse retorno do Positivismo dá-se mais por referências oblíquas e insinuações que por alguma influência direta e, mais importante, por alguma influência efetiva. Em outras palavras, o Positivismo serve como bode expiatório, como uma justificativa ad hoc para todos os incontáveis e injustificáveis erros, problemas e desvios que o governo apresenta. O mais notável é que esse papel atribuído ao Positivismo é mobilizado tanto pelo próprio governo e por seus apoiadores – basta ver as virulentas e assustadoras referências feitas por filhos do Presidente da República, pelo seu guru-astrólogo e pela grande imprensa conservadora – quanto por setores “liberais” e mesmo oposicionistas: no que se refere ao governo e aos conservadores, já tive ocasião de publicar uma refutação mínima (na Gazeta do Povo e no Monitor Mercantil); agora o sociólogo Simon Schwartzman retoma a tradição do liberalismo conservador brasileiro para, com argumentos que parecem inspirados no realismo mágico, atribuir ao Positivismo vícios da política nacional.

No artigo “A revolta da vacina”, publicado em O Estado de S. Paulo de 12.6.2020, Schwartzman afirma que a atual politização da crise sanitária encontra um precedente na Revolta da Vacina de 1904; supostamente em ambos os episódios notam-se políticos radicalizados afirmando a falta de eficácia de medidas sanitárias recomendadas pelas autoridades públicas, estimulando a resistência do comum do povo a essas medidas, com o apoio de militares. Embora décadas atrás Schwartzman tenha feito algumas pesquisas de história da ciência no Brasil, ele limita-se a citar literatura de segunda e terceira mão para reiteradamente afirmar que o Positivismo como doutrina e os positivistas como agentes teriam apoiado os radicais do início da I República – os “jacobinos” – na Revolta; essa insistência em referir-se ao Positivismo tem o claro e evidente efeito de sugerir que essa mesma doutrina inspiraria ainda hoje o radicalismo conservador da extrema direita. Vamos aos fatos, então.

Em primeiro lugar, o procedimento de Schwartzman é sofístico. O atual governo é ao mesmo tempo ultraconservador (com sua apologia da “tradição” e da monarquia (sociedade de castas, escravismo, nacionalismo estreito), mas contra todas as tradições republicanas efetivamente afirmadas pelo Positivismo (pacifismo, tolerância, fraternidade universal, racionalidade científica, civilismo, respeito ao meio ambiente, aos índios, às minorias, às liberdades de pensamento e de expressão)) e revolucionário (com o combate ativo e militante contra os “progressistas”, o “globalismo”, o “marxismo cultural”); assim, Schwartzman é incapaz, por ser impossível, de provar qualquer influência do Positivismo no governo Bolsonaro. Dessa forma, o sociólogo mineiro sugere um paralelo entre duas situações históricas; essa mera sugestão atua como “prova” de seu argumento. Ele não demonstra; ela faz uma afirmação e deixa para o leitor o trabalho de tirar as consequências, que, todavia, permanecem sem qualquer base empírica. Vale notar que esse mesmo procedimento está na base de todas as teorias da conspiração – que, como tristemente se sabe, têm enorme relevância política nos dias atuais.

Mas, em segundo lugar, é claro que a atuação dos positivistas na I República e, de modo particular, na Revolta da Vacina está muito mal contada por Schwartzman. Em 1904 o médico Oswaldo Cruz decidiu combater a febre amarela, empregando o que era então uma técnica inovadora: a inoculação de patógenos enfraquecidos por meio de injeções, a fim de gerarem-se anticorpos contra a doença. Ora, esse procedimento da vacina foi estabelecido ao longo do século XX como correto e necessário; todavia, no início do século XX isso não estava firmemente estabelecido como adequado e seguro e – isto é o principal – os procedimentos adotados por Oswaldo Cruz eram anti-higiênicos e profundamente autoritários. As exitosas campanhas de vacinação levadas a cabo no Brasil pelo menos desde a década de 1980 buscam conscientizar a população da necessidade da vacinação; em outras palavras, tais campanhas postulam o caráter voluntário da vacinação: respeita-se a livre decisão individual e familiar. Ao mesmo tempo, a aplicação das vacinas é cercada por inúmeros protocolos higiênicos, incluindo aí a assepsia da pele (no caso da inoculação da vacina via injeções) e o descarte de seringas e agulhas descartáveis.

Nada disso estava presente na campanha de 1904: as agulhas e as seringas eram reutilizadas (e sem assepsia entre uma aplicação e outra) e, mais importante, os agentes sanitários forçavam os cidadãos a serem vacinados, injetando à força as agulhas em seus corpos, invadindo casas e violentando as pessoas para submeterem-se aos seus desígnios; evidentemente, essa violência era particularmente empregada contra a população pobre – que, ao fim e ao cabo, acabou revoltando-se contra invasões, espancamentos, a disseminação de doenças e a aplicação de um procedimento cuja eficácia estava então longe de estar estabelecida (e que, nas condições específicas daquela “campanha”, era efetivamente muito discutível). Não é por acaso que o vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil e autor da bandeira nacional republicana, Raimundo Teixeira Mendes, chamava toda essa lamentável situação de “despotismo sanitário”. Dessa forma, os positivistas foram, sim, favoráveis à revolta popular contra a vacina; entretanto, ao contrário do que Schwartzman consegue apenas “sugerir”, não se tratava de uma postura anticientífica e de radicalismo anti-intelectualista, mas de um profundo respeito à dignidade humana, à inviolabilidade dos corpos e dos domicílios e às liberdades de pensamento e expressão. Em outras palavras, os positivistas defendiam todos os valores mais caros ao liberalismo – aliás, justamente ao liberalismo que supostamente Schwartzman defende –; da mesma forma, os positivistas opunham-se ao que se chama hoje em dia de “tecnocracia” e de “cientificismo”, ao contrário do que Schwartzman parece defender em seu artigo.

O sociólogo mineiro dá a entender que todos os que se opunham à campanha de vacinação de Oswaldo Cruz eram (1) positivistas e (2) políticos demagógicos que politizavam e radicalizavam sentimentos populares irracionais contra a vacina. Essas duas presunções são exageradas e estapafúrdias. É aceitável considerar que houvesse demagogos explorando a insatisfação popular; a política da I República era infelizmente e por vezes dada a disputas agressivas; entretanto, como vimos, quem se opunha à campanha da vacinação estava longe de ser necessariamente irracional, anticientífico, favorável a guerras civis. Entre os republicanos radicais, os “jacobinos”, havia efetivamente alguns que se identificavam com e como positivistas; todavia, o próprio Teixeira Mendes afirmava que a política republicana deve ser pacífica e, assim, condenava tanto a violência governamental do despotismo sanitário quanto a explosão popular e a exploração demagógica dela. Vale notar que todos esses argumentos são públicos e, embora um tanto restritos, são facilmente acessíveis para qualquer pesquisador minimamente preparado, como supomos ser Schwartzman, cuja carreira tem muitas décadas de duração.

Para concluir: a conjuntura político-sanitária de 2020 é muito, muito diferente da de 1904. As campanhas de vacinação respeitam a dignidade humana e são higienicamente adequadas; a racionalidade científica subjacente a elas está bem estabelecida. Assim, ao contrário do que ocorreu em 1904, a politização sistemática de uma crise sanitária é, sim, demagógica, mesmo quando realizada pelo governo; mas, assim como em 1904, o governo e os liberais opõem-se aos positivistas, ao “Ordem e Progresso”, em seus desígnios. É difícil não considerar que as coisas estão bastante erradas.

30 junho 2020

Celebração do sétimo mês dos calendários positivistas


Roteiro da exposição sobre o sétimo mês dos calendários positivistas

 


Parte I – Mês concreto: Carlos Magno



Carlos Magno


 

-        7º mês do calendário positivista concreto

o   Considerando o ano júlio-gregoriano de 2020 (ano bissexto), o mês de Carlos Magno começa em 17 de junho e termina em 14 de julho

o   O sétimo mês representa o feudalismo

§  É o segundo mês da transição católico-feudal, entre a Antigüidade teocrático-greco-romana e a modernidade

·         O outro mês dessa transição, anterior, é o de São Paulo (o catolicismo)

·         Frederic Harrison observa que é necessário encarar esses dois meses como dois aspectos de uma unidade sociológico-histórica, a civilização católico-feudal

o   Na tríplice transição ocidental, a civilização católico-feudal representa a cultura afetiva após os desenvolvimentos intelectual grego e prático romano

§  O feudalismo, portanto, representa a disciplina prática dos sentimentos

o   A civilização católico-feudal realizou seis grandes mudanças entre aproximadamente 400 e 1300:

1)      Purificar e disciplinar as mais ferozes paixões humanas (especialmente a crueldade, o orgulho e a luxúria) (principalmente o catolicismo)

2)      Em conseqüência do aspecto anterior: a elevação da posição da mulher (principalmente o catolicismo)

3)      Proteção dos pobres, dignificação da gentileza, elevação da natureza humana e da humanidade (principalmente o catolicismo)

4)      Supressão do papel da guerra universal e transformação das guerras de conquista em guerras de defesa (principalmente o feudalismo)

5)      Estabelecimento de governos locais verdadeiros (com deveres recíprocos entre o local e o central), em vez da submissão a um governo centralizado (principalmente o feudalismo)

6)      Supressão da escravidão e estabelecimento do trabalho livre (principalmente o feudalismo)

§  Essas mudanças ocorreram de maneira muito imperfeita e até fracassaram em vários casos; mas essa longa fase foi realmente de transição e de mudança entre a situação anterior e as novas tendências

o    O mês e as semanas correspondem ao seguinte:

§  Carlos Magno – ele mesmo foi imperialista (ou seja, praticou a guerra conquistadora), mas suas ações permitiram a constituição efetiva da feudalidade, dos governos locais e a associação com a igreja; assim, suas ações foram tão grandes e tão importantes que, conforme Harrison, seu tipo impõe-se para o mês do feudalismo

§  Alfredo – a defesa ocidental contra as invasões estrangeiras (e também a criação de instituições nacionais)

§  Godofredo – o cavalheirismo expresso nas Cruzadas

§  Inocêncio III – a ação plenamente temporal da Igreja e tentativas de reforma

§  S. Luís – o poder temporal moralizado (em outras palavras, os reis santos)

Parte II – Mês abstrato: fetichismo

 

-        O sétimo mês do calendário positivista abstrato celebra o fetichismo

o   O fetichismo é a primeira fase das fases sociológicas históricas (dinâmicas) preparatórias; as demais são: o politeísmo e o monoteísmo

§  O fetichismo foi progressivamente valorizado por Augusto Comte; na Política positiva e na Síntese subjetiva ele afirmou a necessidade de incorporar o fetichismo ao Positivismo (o “neofetichismo”) para tornar o Positivismo mais racional e mais afetivo

§  O fetichismo corresponde à síntese subjetiva absoluta, ou seja, é a concepção geral do ser humano e do mundo (síntese), criada e assumida como originada e relativa ao ser humano (subjetiva) mas buscando as causas e não as leis (absoluta)

§  A incorporação do fetichismo ao Positivismo permite ao Positivismo suprir os lapsos afetivos que a concepção das leis naturais não permite satisfazer

·         Essa incorporação consiste em supor ­– de maneira assumidamente ficcional – que os corpos animados são dotados de vida e de afetos

·         No dia-a-dia, o neofetichismo consiste (1) em venerarmos os objetos de uso contínuo, especialmente aqueles que nos trazem recordações altruístas e (2) em agradecermos (nunca pedirmos!) aos objetos manufaturados os serviços que eles prestam

§  Um outro aspecto do neofetichismo consiste na instituição da Trindade Positiva: ao lado do Grão-Ser (a Humanidade), o neofetichismo institui o Grão-Meio (o Espaço) e, principalmente, o Grão-Fetiche (a Terra)

·         O Grão-Ser é dotado de afetividade, de atividade e de inteligência (e, assim, de intencionalidade)

·         O Grão-Fetiche é dotado de afetividade e de atividade

·         O Grão-Meio é dotado de afetividade

§  A Trindade Positiva sistematiza a lógica positiva, ou o método subjetivo, que consiste em afirmar a preeminência dos sentimentos sobre a racionalidade humana

·         A fórmula que sintetiza a lógica positiva é o “agir por afeição e pensar para agir”

o   Nos belos versos de Teixeira Mendes:

Cansamo-nos de agir
E até de pensar cansamos;
Só não cansamos de amar
E nem de dizer que amamos

·         Os meios utilizados pela lógica positiva são: os sentimentos (que orientam e conferem intensidade); as imagens (que permitem observar o conjunto dos fenômenos e dos seres); os sinais (que conferem precisão e permitem operar as relações lógicas de indução e dedução)

o   São quatro as modalidades determinadas por nosso mestre no fetichismo:

1)      O espontâneo nômade à Festa dos Animais

2)      O espontâneo sedentário à Festa do Fogo

3)      O sistemático sacerdotal àFesta do Sol

4)      O sistemático militar à Festa do Ferro

o   O fetichismo também é lembrado em um dos nomes dos dias das semanas, nas línguas neolatinas (com exceção do português) e anglossaxãs: é o “lunedia” (lunes em espanhol; lundi em francês), isto é, a segunda-feira, que celebra a Lua; em inglês há o Sunday (domingo), que celebra o Sol

Parte III – Comemorações de aniversários


Teixeira Mendes

Ex-libris de Teixeira Mendes: "Amar, crer e seguir"

Enterro de Teixeira Mendes

Enterro de Teixeira Mendes

Enterro de Teixeira Mendes


Júlio de Castilhos

Túmulo de Júlio de Castilhos


Queda da Bastilha


Danton

Danton

 

-        Em termos de aniversários, comemoramos neste mês as seguintes figuras:

o   Em 12 de Carlos Magno (28 de junho):

§  Morte de Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927)

o   Em 13 de Carlos Magno (29 de junho)

§  Nascimento de Júlio Prates de Castilhos (1860-1903)

o   Em 28 de Carlos Magno (14 de julho)

§  Eclosão da Revolução Francesa (1789-1798) – crise final da revolução moderna e que afirma a necessidade da regeneração dada pelo Positivismo



Referências bibliográficas


François Mignet: História da Revolução Francesa (2 v.)



Raimundo Teixeira Mendes: As últimas concepções de Augusto Comte

João Pernetta: Os dois apóstolos (2 v.)

David Carneiro: História da Humanidade através dos seus grandes tipos, v. 5

Ivan Lins: História do Positivismo no Brasil

Paulo Carneiro (org.): Idéias políticas de Júlio de Castilhos

Sérgio da Costa Franco: Júlio de Castilhos e sua época

Mozart Pereira Soares: O Positivismo no Brasil: 200 anos de Augusto Comte

Ângelo Torres: Calendário Filosófico