COMEMORAÇÃO
ANUAL
DA
MORTE DE
AUGUSTO COMTE
24 DE
GUTENBERG DE 69
(5 DE
SETEMBRO DE 1857)
Tu duca, tu signore, e
tu maestro[2].
(Dante, Inferno, Canto II.)
A Igreja Positivista celebra hoje a entrada do seu glorioso Fundador na imortalidade subjetiva.
Aos 24 de Gutenberg de 69 Augusto Comte era surpreendido pela morte em meio de sua tarefa ingente. Morria na pobreza, quase na obscuridade, rodeado apenas por um pequeno número de discípulos fiéis e só conhecido, fora deste grêmio, por aqueles que ele opulentara com as migalhas de seu gênio, e que ocultavam cuidadosamente a origem de tão súbita riqueza. Muitos deles pagaram-lhe as lições com o insulto, com a calúnia e com a traição...
Essa vida que terminava inopinadamente aos 59 anos fora toda consagrada com uma competência excepcional de coração, de inteligência e de caráter à solução do problema religioso.
Dar à sociedade futura uma religião científica, sem mistérios, sem absurdos, baseada na totalidade dos conhecimentos positivos e tendo por alvo supremo o maior aperfeiçoamento do homem, tal foi o fim que se propôs o grande Pensador.
O problema impunha-se com o peso de todo o passado. Resolvê-lo era reatar de novo o fio das idades e congraçar outra vez o homem com o homem. E por este modo a religião depois de ter sido espontânea no período fetichista, inspirada na fase politeica, revelada durante a concentração monoteísta, tornava-se, enfim, demonstrada. Diis extinctis, Deoque, successit Humanitas[3].
A profecia de José de Maistre estava realizada. Aparecera o homem prodigioso que devia terminar a obra demolidora do século XVIII, reunindo em si as afinidades da ciência e da religião.
Este empreendimento Augusto Comte o levou a cabo com um saber e uma grandeza moral inexcedíveis.
Foi um sábio e um santo.
A sua instrução aristotélica abraçava todas as ciências existentes no seu tempo, desde a Matemática até a Biologia. Criou mais uma, a Sociologia e lançou os fundamentos da Moral.
A sua abnegação não teve superior. Perseguido pelos corifeus da ciência oficial, viu-se despojado com a máxima iniqüidade das modestas ocupações que exercia, e aceitou a miséria com a serenidade do justo.
O pão chegou a faltar-lhe. Um dia a sua criada, testemunha comovida de tão dolorosa situação, lançou-se-lhe aos pés e rogou-lhe com lágrimas que aceitasse o pequeno auxílio de suas economias para não ver o seu amo morrer à fome!
O coração da humilde proletária compreendera o heroísmo desse homem, tão firme com os poderosos e tão bom para com os fracos e os pequenos.
Finalmente, um amor puro e imenso, assombro e escândalo da grosseria contemporânea, o elevou, sob o santo impulso de Clotilde de Vaux, às alturas ideais do mais sublime entusiasmo.
Aristóteles pela inteligência, São Paulo pelo coração, Júnio Bruto pelo caráter, tal foi o fundador da Religião da Humanidade.
Os Pósteros saberão comemorar melhor do que nós essa incomparável existência, para cuja apoteose concorreram todos os esplendores da arte regenerada por um novo culto e alimentada por uma comunhão espiritual até hoje desconhecida.
Do seio da paz universal irromperão os hinos sagrados em louvor do Divino Mestre. Todas as raças, todas as pátrias, todas as famílias, congraçadas por uma crença comum, instruídas do Passado, seguras do Porvir, recordarão unânimes os grandes serviços do egrégio Fundador.
Por enquanto cumpre ainda vencer. Os frêmitos da luta perturbam a expansão religiosa do dia de hoje. Um dia de festa é para nós um dia de trégua apenas. Amanhã será necessário continuar o apostolado, convencer, persuadir, repelir a calúnia e sofrer a injúria.
Não importa. As profecias científicas não mentem e os sinais certos da vitória já estão por toda parte.
Com os olhos fitos nessa unidade religiosa do futuro, Jerusalém espiritual e cidade celeste, sonhadas pelas grandes almas de Israel e do Catolicismo, satisfação real as aspirações prematuras dos generosos utopistas, termo da miséria e da guerra, advento da fraternidade universal, recordemos hoje os exemplos legados pelo indefeso Lidador e façamos votos de imitar a sua constância inabalável e a sua sublime dedicação pelos destinos da Humanidade.
Miguel Lemos,
Diretor da Igreja
Positivista do Brasil.
[1] Transcrevemos a edição de 1936, mantendo a pontuação, mas atualizando a ortografia. A publicação original é de 96 (1884) e constitui o n. 21 do catálogo da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil. Uma versão em francês foi incluída em uma publicação de 5 de setembro de 1951, em homenagem aos 2.000 anos da cidade de Paris; essa publicação foi reeditada em 1957, por ocasião do centenário da morte de Augusto Comte; correspondendo ao n. 548 do catálogo da Igreja Positivista, teve por título “Paris – publication commémorative de son bimillénaire – deuxième édition au centenaire de la mort d’Auguste Comte”.
[2] Em italiano no original: “Você é duque, você é senhor e você é mestre”.
[3] Em latim no original: “Mortos os deuses, e deus, sucedeu-lhes a Humanidade”.
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