31 março 2023

Live AOP: Carlos Eduardo Oliva: Laicidade e constitucionalidade inconstitucional do ensino religioso

No dia 30 de março de 2023 realizamos uma Live AOP com o professor, sociólogo e jurista Carlos Eduardo Oliva (UERJ-Colégio Pedro II), sobre a laicidade do Estado e a constitucionalidade inconstitucional do ensino religioso no Brasil.

Foi uma palestra muito interessante e muito agradável, que durou cerca de duas horas. O evento foi transmitido no canal Positivismo; foi também gravado e o vídeo está disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=eLHq89UdwJw.



 

29 março 2023

Comentários sobre a metafísica

No dia 3 de Arquimedes de 169 (28.3.2023) fizemos nossa prédica positiva. Na ocasião demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista (no caso, à sua sexta conferência, dedicada ao conjunto do dogma); em seguida, fizemos nosso sermão sobre o conceito de metafísica.

Antes da leitura comentada, lembramos que no dia 29 de março celebramos o aniversário de nascimento de David Carneiro, um dos maiores positivistas do Paraná e do Brasil (nascido em 1904). Além disso, lamentamos profundamente a violência ocorrida em 27 de março de 2023 em uma escola de São Paulo, em que a Professora Elizabeth Tenreiro foi brutalmente assassinada por um pré-adolescente profundamente perturbado.

As anotações sobre a metafísica que nos serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo. A prédica está disponível nos portais Apostolado Positivista (aqui: l1nk.dev/eVa7i) e Positivismo (aqui: l1nq.com/M1Xml); a exposição sobre a metafísica pode ser vista a partir de 1h 12".



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Comentários sobre a metafísica

 

-        A metafísica é um conceito bastante curioso em relação ao Positivismo: ele é secundário em termos intelectuais e políticos, mas, devido a uma série de fatores, acabou ganhando destaque

o   Uma indicação indireta mas eficiente dessa estranha relevância do conceito de metafísica: no meu blogue, o artigo “O Positivismo e o conceito de metafísica” corresponde a 7% das visitas (27.800/393.300), ocupando o primeiro lugar em artigos consultados; o segundo artigo mais lido (“Homem-Aranha positivista”) corresponde a cerca de 3,5% das visitas, ou seja, metade do primeiro lugar[1]

-        A metafísica tem certa relevância atual devido aos seguintes motivos:

o   Da parte do Positivismo: caráter metafísico da política contemporânea (individualismo, igualitarismo, academicismo, irracionalismo, militarismo, permanência do absoluto)

o   Da parte de fatores externos I: recuperação academicista de uma área chamada “metafísica” (ou “ontologia”)

o   Da parte de fatores externos II: confusão intencional entre as expressões “elaborações filosóficas abstratas” e “metafísica”

§  Essa confusão resulta em que a “metafísica” é entendida como sinônima de “filosofia”, de “especulações abstratas”, de “concepções de mundo”, de “moral”, de “epistemologia”

§  Exemplo clássico dessa confusão intencional: o título e o conteúdo de um livro famoso, As bases metafísicas da ciência moderna, de Edwin Burtt (de 1924, com edição brasileira de 1983)

o   Da parte de fatores externos III: crítica do Círculo de Viena à metafísica

§  Aparecem (ou reaparecem) aí o “problema da delimitação” e o “problema do empirismo”

-        Devido ao item anterior, antes de avançar para a exposição sobre o que o Positivismo entende por “metafísica”, é necessário deixar muito claro que, para o Positivismo, valem as seguintes concepções:

o   A filosofia é uma reflexão geral sobre a realidade humana, com caráter sintético

o   A Moral é tanto uma ciência quanto uma prática quanto uma “ética

o   A partir da historicidade humana, todas as concepções positivas têm base empírica; ainda que com freqüência sejam abstratas e passíveis de deduções, nossas concepções não são apriorísticas nem arbitrárias nem “voluntaristas”

-        Para o Positivismo, a metafísica é um conceito secundário, subordinado à teologia e mesmo à positividade:

o   Como sugeriu o equívoco sociólogo inglês Anthony Giddens, o conceito positivista de “metafísica” é metodológico e não substantivo: ele consiste em uma forma de entender (ou interpretar) a realidade

o   A metafísica consiste de modo geral na degradação da teologia, ocupando sempre um papel de transição entre alguma teologia e outro estado intelectual, seja uma outra teologia, seja a positividade

o   A metafísica, portanto, é tanto um elo (de maneira ampla: entre teologia e positividade) quanto teologia degradada

o   Sendo um elo, a metafísica compartilha características dos extremos cuja ligação realiza

§  Na passagem da teologia para a positividade, dependendo do caso em questão, a metafísica compartilha, por um lado, ou mais as abstrações fictícias e irracionais da teologia ou, por outro lado, mais o esforço racionalizante e empírico da positividade

§  Em certo sentido, portanto, é possível entender a metafísica como a secularização da teologia (mas secularização bastante equívoca)

o   Sendo teologia degradada:

§  A metafísica mantém o caráter absoluto da teologia, buscando entender o mundo por meio dos “porquês”, mas atribuindo as explicações, ou melhor, as vontades às puras abstrações, que passam a atuar como se tivessem vontade humana

§  Além disso, a metafísica assume um forte caráter crítico, destrutivo, dissolvente: seu objetivo é destruir, é degradar

§  A combinação das duas características acima – o absoluto e a criticidade sistemática – resultam que é possível verificarmos até mesmo a metafísica científica (ou, inversamente, a ciência metafísica), na forma do academicismo, do cientificismo e dos vícios opostos do materialismo e do espiritualismo

-        A metafísica adota as abstrações personificadas para explicar o mundo: no âmbito da Sociologia, exemplos fáceis são o “mercado” (ou “a mão invisível”), o “capitalismo”, o “patriarcado”

o   Como a metafísica emprega as abstrações, o que fica evidente é que ela surge a partir do desenvolvimento sistemático da abstração; em outras palavras, como o fetichismo é concreto, a metafísica é “pós-fetichista” e, portanto, surge propriamente a partir da teologia

o   A metafísica também pode ser entendida como a desregulação, ou a atividade desregulada, das abstrações, que perdem cada vez mais as relações com a realidade empírica

§  Juntamente com a atividade desregulada das abstrações, a metafísica também apresenta um forte caráter verborrágico

o   As características da natureza humana são mais desenvolvidas durante a teologia (como na tríplice transição ocidental, entre Grécia, Roma e Idade Média); entretanto, cabe à positividade a necessária e imperiosa tarefa simultânea de (1) regular e regularizar as relações entre essas características, (2) restabelecer a dignidade das concepções concretas e (3) regular e regularizar o emprego das abstrações

-        Em termos de história ocidental, o duplo movimento moderno, posterior à Idade Média, combinou a degradação metafísica da teologia e a construção positiva; esse duplo movimento resultou na grande crise de 1789 (a Revolução Francesa)

o   Desde então, o Ocidente já não vive mais sob a égide da teologia – apesar em particular da retrogradação desenvolvida e estimulada pelos Estados Unidos – mas os esforços e o impulso da positividade ainda não foram capazes de superar a dinâmica anárquica entre retrogradação e revoluções, bem como também não conseguiram superar o forte impulso metafísico estimulado pelo Ocidente, em particular após a I Guerra Mundial

-        A política contemporânea, portanto, é amplamente metafísica:

o   Não se trata apenas, por exemplo, da nefasta e atual política identitária, cujas características destruidoras, particularistas e irracionalistas são bastante conhecidas

o   A política contemporânea é metafísica devido aos seus valores profundos, às suas concepções e às suas práticas: seja com o identitarismo, seja com o individualismo, seja com a exaltação do egoísmo e da concepção egoístico-negativa da natureza humana, seja com seu radical impulso destruidor, seja com a concepção de que a vida em sociedade é eterno e permanente conflito (“política agonística”)

§  É evidente que a política contemporânea ser metafísica em geral não impede que muitos políticos sejam mais ou menos positivos

§  Mas, por outro lado, convém lembrar que a permanência e o aprofundamento da metafísica estimulam movimentos retrógrados

-        Para concluir estes comentários, duas citações:

o   Há uma piada corrente na internet, baseada em uma frase de Voltaire, que define da seguinte maneira virtualmente positivista a filosofia, a teologia, a metafísica e a ciência:

Filosofia é estar em um quarto escuro procurando um gato preto.

Metafísica é estar em um quarto escuro procurando um gato preto que não está ali.

Teologia é estar em um quarto escuro procurando um gato preto que não está ali, mas gritando “achei!”

Ciência é estar em um quarto escuro procurando um gato preto usando uma lanterna.

-        A música Hier encore (“Ainda ontem”), do cantor francês Charles Aznavour, apresenta os lamentos de um velho que se arrepende profundamente do tempo perdido em sua vida, especialmente em sua juventude: os vícios de que ele arrepende-se, na segunda e na terceira estrofe, parecem-me todos eles decorrentes de uma postura metafísica em face da vida:

 

Ainda Ontem[2]

Charles Aznavour

 

Ainda ontem eu tinha vinte anos

Acariciava o tempo e brincava com a vida

Como se brinca com o amor.

E vivia à noite

Sem contar meus dias, que fugiam no tempo,

Fiz tantos projetos que ficaram no ar,

Alimentei tantas esperanças que bateram as asas,

Que continuo perdido, sem saber aonde ir,

Com os olhos procurando o céu, mas com o coração posto na terra.

 

Ainda ontem eu tinha vinte anos

Desperdiçava o tempo, acreditando detê-lo

E, para retê-lo, e até ultrapassá-lo,

Só fiz correr e perdi o fôlego.

Ignorando o passado, conjugando no futuro,

Começava qualquer conversa com “Eu”.

E dava minha opinião, que pensava ser a melhor,

Para criticar o mundo com desenvoltura.

 

Ainda ontem eu tinha vinte anos

Mas perdi meu tempo a cometer loucuras

Que não deixam, no fundo, nada de realmente concreto

Além de algumas rugas na testa e medo do tédio.

Pois meus amores morreram antes de existir

Meus amigos partiram e não mais voltarão.

Por culpa minha, criei o vazio à minha volta

E desperdicei a vida e meus anos de juventude.

Do melhor e do pior, descartando o melhor,

Imobilizei meus sorrisos e congelei meu pranto.

Onde estão agora, agora, meus vinte anos?



[1] A medição, mesmo que aproximada, foi feita em 28.3.2023.

22 março 2023

Sobre a harmonia

No dia 24 de Aristóteles de 169 (21 de março de 2023) fizemos nossa prédica positiva. Demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua sexta conferência (dedicada ao conjunto do dogma); em seguida, nosso sermão abordou o ideal da harmonia. As anotações que serviram de base para a nossa exposição oral estão reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Apostolado Positivista (aqui: acesse.one/NW3xS) e Positivismo (aqui: encr.pw/PZoE3). O sermão sobre a harmonia está disponível a partir de 1h 59' 55".

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Anotações sobre a harmonia

 -        Um dos objetivos e um dos conceitos humanos mais importantes é a harmonia

o   Geralmente ela é tratada em termos individuais (no sentido, por exemplo, de serenidade e de autocontrole), mas é necessário notarmos com clareza e desde o início que ela é também, e mesmo antes, um objetivo e conceito social

-        A harmonia humana é delicada e exige muitos esforços e reforços, vindos de muitos lugares diferentes

-        Em uma primeira abordagem, o que seria a harmonia?

o   Ela consiste no equilíbrio dinâmico das várias partes da nossa natureza, em que cada uma das partes está satisfeita e colabora com a satisfação das demais

o   A harmonia também pode ser entendida como serenidade; mas, por outro lado, também pode ser entendida como alegria

-        Além do fato de que ela é antes social e depois individual, a delicadeza e a dificuldade de realização da harmonia está em que ela tem que ser entendida (e praticada) em termos dinâmicos, não estáticos

-        A concepção estática da harmonia considera que, (1) embora a vida tenha muito movimento, é (2) na ausência de movimento e (3) na ausência de interações que se obtém a harmonia

o   Geralmente a noção de “equilíbrio” associa-se à concepção estática

§  Em termos geométricos, esse equilíbrio, essa harmonia é entendido como um ponto isolado no espaço ou mesmo como uma barra de metal apoiada em algo e que, por estar em uma situação extremamente delicada, tem que ser mantida isolada de tudo e de todos

o   Isso resulta, então, em que todos deveriam ficar parados e isolados para mantermo-nos harmônicos

§  Esse isolamento parado constitui o quietismo (de que o ascetismo é uma variação)

§  Ao propor o isolamento parado, o quietismo corresponde a uma concepção individualista e, no limite, antissocial do ser humano

§  Em virtude dessas características, torna-se claro que o quietismo não é, de fato, uma solução real, ou seja, não é uma solução que possa ser generalizada para as sociedades e para todos os seres humanos e que possa ser mantido ao longo do tempo

-        A concepção dinâmica, em contraposição, considera que a harmonia obtém-se (1) em meio ao movimento e (2) graças aos movimentos da vida

o   Nesse caso, pode-se falar, embora de maneira um pouco inadequada, de “equilíbrio dinâmico”

§  Esse equilíbrio é entendido como u’a margem, um espaço dentro do qual variamos diariamente e também ao longo da vida

§  Os próprios limites variam ao longo do tempo

o   A concepção dinâmica incorpora os movimentos e pressupõe que é graças às interações com o mundo e, principalmente, graças às interações sociais que se desenvolve o equilíbrio

o   Há, portanto, a afirmação do caráter relacional e, em particular, do caráter social do ser humano

o   A rejeição do quietismo na concepção dinâmica não significa que, às vezes, não sejam necessários o relativo isolamento e a introspecção

-        A concepção dinâmica da harmonia, como afirma o caráter social do ser humano, estabelece que a harmonia tem que se dar tanto para o indivíduo quanto para a sociedade

o   Mais do que isso: a harmonia social surge como poderosa influência para a harmonia individual

-        A falta de harmonia pode ser entendida como a ausência de acordo entre as várias disposições individuais entre si e também a ausência de acordo entre as disposições do ser humano com o mundo e a sociedade

o   Do que estamos expondo fica muito claro que esse problema é realmente gigantesco; o quietismo foi uma solução tentada ao longo da história e aparentemente eficaz, mas que se comprovou que, no fundo, é somente um escapismo antissocial

-        A solução para o problema da harmonia deve consistir em buscar algum princípio que, ao mesmo tempo, estabeleça a harmonia individual e a harmonia coletiva

o   A partir de reflexões morais de caráter histórico e sobre as relações entre o ser humano e o mundo, Augusto Comte percebeu que a única solução possível para a harmonia é a subordinação do egoísmo ao altruísmo, via Humanidade

o   A subordinação do egoísmo ao altruísmo permite a disciplina e a regulação dos egoísmos, em termos individuais e coletivos

o   Além disso, o caráter social do ser humano atua como um poderoso auxílio nesse sentido, ao impor limites para os egoísmos individuais e ao estimular condutas altruístas

§  As sociedades positivas tendem, cada vez mais, para a realização desses ideais e dessas concepções

§  Ao mesmo tempo, a realização desses ideais e valores implica também que os indivíduos incorporem-nos como ideais e valores pessoais e, dessa forma, que os assumam e pratiquem

§  Em outras palavras, a busca e a realização da harmonia é tanto uma situação de fato (ela realiza-se cotidianamente) quanto uma prescrição (ela deve ser buscada)

o   Tal solução envolve o conjunto da existência humana: envolve e satisfaz os sentimentos, requer e disciplina o uso da inteligência, tem fins práticos; disciplina os indivíduos e organiza a vida coletiva

o   Daí a importância central da concepção e do ideal de “Humanidade”

-        Vale a pena repetir: o problema da harmonia é enorme e delicado

o   As indicações acima representam a única solução possível; mas, ao mesmo tempo, temos que admitir que elas apresentam um caráter geral e abstrato

o   A cada momento, tanto os indivíduos quanto as sociedades devem realizar ao máximo todos os esforços possíveis para aplicar esses princípios, conforme as situações concretas que todos e cada um vivem

o   É importante lembrar que a orientação altruísta do egoísmo não significa a negação do egoísmo: em outras palavras, os interesses e os pendores pessoais e coletivos devem ser entendidos como legítimos, sendo aceitos e respeitados

o   Assim, em cada interação social, em cada proposta elaborada, em cada ação realizada deve-se tentar aplicar esse princípio: o processo contínuo de aperfeiçoamento individual e coletivo, na forma da orientação altruísta do egoísmo, resulta em esforços educativos e religiosos

o   A imensidão e a dificuldade do problema exigem que todos os recursos e os esforços destinados a colaborar com a harmonia individual e coletiva devem ser empregados ao máximo, o tempo todo: como sabemos, essa é a definição positiva da moralidade

§  Inversamente, o que afasta esses recursos e esforços desses objetivos deve ser entendido como imoral

-        A Religião da Humanidade é um grande sistema que reconhece, disciplina e orienta os nossos vários recursos para a busca e a realização da harmonia humana

o   Como sabemos, a concepção central, que unifica e coordena todos esses esforços, é a Humanidade

o   No que se refere à harmonia, todas essas várias concepções foram resumidas por Augusto Comte nas fórmulas “agir por afeição e pensar para agir” e “viver para outrem”

15 março 2023

Anotações sobre a laicidade

No dia 17 de Aristóteles de 169 (14 de março de 2023) fizemos nossa prédica positiva. Em um primeiro momento, demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua sexta conferência, dedicada ao conjunto do dogma; em particular, abordamos a lei estática do entendimento.

Em seguida, na parte do sermão positivo, apresentamos algumas reflexões sobre a laicidade do Estado: as anotações que serviram de base para essa exposição estão reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Apostolado Positivista (aqui: acesse.one/Laicidade1) e Positivismo (aqui: encr.pw/Laicidade2). O sermão sobre a laicidade pode ser visto a partir de 41' 50".

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Anotações sobre a “laicidade do Estado”

 

-        Um dos temas mais importantes de qualquer organização política moderna é a chamada “laicidade do Estado”

o   Vale notar que, apesar de sua importância literalmente fundamental, ela é rotineira e generalizadamente negligenciada, seja pela teoria política, seja pelos políticos práticos

o   Essa negligência não me parece casual, pois a laicidade impõe uma auto-restrição que quase ninguém está disposto a assumir (na teoria e/ou na prática)

-        O Positivismo desde o início bate-se pelo que se chama de “laicidade do Estado”

o   Para o Positivismo, o que se chama de “laicidade do Estado” é um dos princípios fundamentais de qualquer organização política – isso para não dizer que é o princípio fundamental

o   Entretanto, para o Positivismo, o que se chama vulgarmente de laicidade é entendido como uma aplicação específica do princípio da separação entre os dois poderes

-        Quais são, então, os dois poderes?

o   Poder Temporal: responsável pela manutenção da ordem material das sociedades; baseia-se na força física; modifica externamente (objetivamente) a conduta dos indivíduos

o   Poder Espiritual: responsável pela formação e manutenção das opiniões, das idéias e dos valores; baseia-se na confiança e no aconselhamento; modifica internamente (subjetivamente) a conduta dos indivíduos

-        Historicamente os dois poderes estiveram unidos, ainda que com a subordinação de um ao outro

o   Na Idade Média houve um primeiro esboço de separação entre os dois poderes, com a separação entre o Imperador e o Papa

§  Essa separação foi proposta, no âmbito da teologia católica, por São João Crisóstomo (séc. IV)

§  O episódio da “ida a Canossa” (Henrique IV vs. Gregório VII, em 1077) indica tanto a separação entre os dois poderes quanto a subordinação moral do poder Temporal

o   As fés absolutas aproximam-se das ordens indiscutíveis; assim, o absoluto filosófico está próximo do autoritarismo político (e/ou do militarismo)

§  Inversamente, a fé relativa aceita e promove a ativa reflexão filosófica, social e política

§  Vale notar que países que têm retrocedido para o autoritarismo são países que, não por acaso, têm negado a laicidade (seus valores e suas práticas)

o   Na modernidade os dois poderes devem manter-se separados; a separação entre os dois poderes baseia-se em uma série de considerações morais, intelectuais e políticas inter-relacionadas entre si:

§  O fundamento de cada um dos poderes é diferente: o poder Temporal baseia-se na força física (ou seja, na violência), enquanto o poder Espiritual baseia-se na confiança e no convencimento

§  Cada indivíduo deve escolher suas crenças com liberdade e autonomia e não ser constrangido oficialmente para isso

§  Uma crença que usa o poder Temporal para estabelecer-se torna-se degradada, reconhecendo implicitamente que não tem forças para difundir-se sozinha

§  Um Estado que impõe uma crença determinada ao mesmo tempo indica que carece de legitimidade e estimula a hipocrisia pública

§  Os atributos próprios a cada um dos poderes são diferentes: o orgulho para o poder Temporal, a vaidade para o poder Espiritual

§  As perspectivas de cada um dos poderes são diferentes:

·         O poder Temporal visa a mudar materialmente a sociedade, concentrando-se no presente (solidariedade), em operações parciais e sendo objeto de disputas francamente egoísticas;

·         O poder Espiritual visa a mudar afetiva e intelectualmente a sociedade, afirmando a continuidade humana ao longo da história, estimulando as visões de conjunto e buscando estimular o altruísmo e regular o egoísmo

§  Com base na separação dos dois poderes, o Positivismo garante a legitimidade do Estado, a dignidade espiritual e rejeita que problemas morais sejam solucionados pela via temporal (somente pela via espiritual, ou seja, pelo aconselhamento e pela educação)

-        De um ponto de vista político, a separação dos dois poderes resulta em que os indivíduos têm a mais completa liberdade para formarem e/ou mudarem as suas próprias opiniões

o   Evidentemente, como já indicamos, qualquer opinião baseia-se sempre na confiança depositada pelo crente em um órgão espiritual qualquer

o   De maneira concreta, a separação entre os dois poderes realiza-se na forma da “laicidade do Estado” e é completada por três liberdades fundamentais: (1) de consciência, (2) de expressão e (3) de associação

-        Do exposto acima, torna-se claro que a laicidade do Estado não é:

o   Não é o estabelecimento de Estado ateu

o   Não é o estabelecimento de Estado pluriconfessional

o   Não é anticlericalismo

-        Há alguns detalhes adicionais sobre as diversas fases da transição derradeira, para Augusto Comte, em particular a ausência de qualquer financiamento teórico (igrejas teológicas, universidades metafísicas e mesmo a igreja positiva)

-        Na teoria política mais recente (não por acaso especificamente francesa), a laicidade do Estado é afirmada em termos de cidadania:

o   A atual teoria política francesa da laicidade baseia-se na obra de Condorcet, que, antes de Augusto Comte, foi o maior teórico francês do tema

o   A laicidade assegura que, para a cidadania, requer-se apenas o respeito às leis do país

o   Inversamente, com a laicidade não se requer a adesão a nenhuma doutrina específica (e, conseqüentemente, nem a filiação a nenhuma organização específica)

o   No que se refere ao serviço público, isso gera uma ética específica: tudo aquilo que tem a participação do Estado, direta ou indireta, tem que se manter neutro em termos doutrinários

-        Há diferenças entre laicidade e tolerância:

o   Para o que nos interessa, a tolerância é a aceitação, mais ou menos ampla, da parte dos governantes em relação às crenças dos cidadãos que não comungam da doutrina oficial de Estado (a liberdade de crença é uma concessão do Estado e/ou do governante e, como concessão, pode ser mantida ou suprimida)

o   A laicidade é a afirmação da cidadania apenas no respeito às leis e não depende da boa vontade do Estado e/ou do governante (a liberdade de crença é o fundamento das liberdades públicas e da cidadania)

-        Laicidade de princípio e laicidade de compromisso:

o   Laicidade de princípio: é estabelecida considerando que ela é o fundamento das liberdades e da cidadania; ela fundamenta efetivamente uma organização social e política

o   Laicidade de compromisso: estabelece-se a laicidade porque nenhuma seita específica tem poder suficiente para impor-se sobre o conjunto da população; é claro que ela é instável

-        No Brasil a laicidade foi estabelecida plenamente apenas em 1890 e até 1931

o   Não por acaso, a laicidade na I República foi estabelecida graças à ativa e difundida propaganda do Positivismo

o   Antes de 1890 e após 1931 o país viveu momentos de religião oficial (colônia, império), religião semioficial e Estado para-pluriconfessional (após 1931, até hoje)

-        No Brasil atual a “discussão” sobre laicidade apresenta-se da seguinte forma:

o   A direita é claramente contra a laicidade ou é cinicamente alheia a ela

o   A esquerda oscila entre a rejeição e o alheamento (como a direita) ou – no caso da esquerda identitária – adota uma visão pobre e instrumentalista da laicidade para justificar o anticlericalismo tópico

o   Há serviços públicos realmente universais e ligados apenas à cidadania (SUS), mas há serviços públicos que exigem a adesão explícita a um determinado credo oficial (vestibulares de IFES)

o   A Constituição Federal de 1988 é extremamente contraditória:

§  Afirma a ausência de apoio, subvenção ou embaraço público às religiões (Art. 19, I)

§  Proclama a Constituição “em nome de deus” (Preâmbulo) e afirma a colaboração do Estado com igrejas em nome do interesse público (Art. 19, I)

o   Os doutrinadores jurídicos justificam essa aberração político-intelectual por meio das categorias (igualmente aberrantes) “Estado colaborador” ou “laicidade atenuada”

§  Vale notar que a laicidade não é uma questão de quantidade, mas de qualidade; ela seria uma categoria discreta (sim/não, presente/ausente) e não uma categoria contínua (mais/menos)

§  Assim, nenhuma dessas categorias jurídico-políticas a posteriori realmente faz sentido