No dia 15 de março, durante a segunda sessão do Curso livre de política positiva, durante a exposição surgiu uma questão: considerando a importância da subjetividade, quais seriam as relações entre o Positivismo e a psicanálise? Essa questão, por mais interessante e sugestiva que seja, não poderia ser tratada durante o curso - seja porque ela ensejaria, necessariamente, muitas reflexões; seja porque, embora seja necessário falar sobre subjetividade, o curso em si é sobre política e não sobre psicologia; seja enfim porque eu mesmo não tenho condições de responder a essa questão.
Assim, pedi a meu amigo Hernani Gomes da Costa a grande gentileza de elaborar uma resposta; ele imediatamente começou a respondê-la, concluindo as suas anotações no dia 22 de março, uma semana depois, a tempo da terceira sessão do curso. Nessa terceira sessão eu não teria condições de ler a íntegra da resposta; por isso me limitei a apenas citar os quatro aspectos indicados inicialmente pelo Hernani; mas, com a autorização do autor, formatei o texto e publico-o agora, na forma abaixo.
Espero que gostem e que apreciem essas reflexões!
* * *
Positivismo e psicanálise - teorias e psicoterapia
Hernani Gomes da Costa
Introdução
Uma forma que me parece bastante fecunda de começar
a examinar a relação entre a psicanálise e o positivismo consiste em distinguir
logo de início a teoria psicanalítica de sua correspondente técnica
psicoterápica e, em seguida, comparar a primeira à Moral Teórica e a segunda à
Moral Prática. Embora o caráter metafísico da psicanálise deva oferecer, tanto
em um caso como mesmo no outro, um contraste marcante com o espírito positivo,
isso não nos deve demover de buscar entre essas duas grandes concepções da alma
humana o maior número possível de pontos de contato, pontos esses, aliás, que
devem poder formar toda uma base a partir da qual se poderá fazer a psicanálise
percorrer, ela própria, a lei dos três estados.
Moral
Teórica e teoria psicanalítica
Devo assinalar quatro grandes pontos de contato,
cujo conjunto, assim me parece, chega mesmo a suplantar todas as diferenças e
oposições que decerto existem entre essas duas formulações pioneiras; são elas:
1)
primado da emocionalidade sobre a racionalidade;
2)
identidade fundamental das leis naturais que
regulam os estados de saúde e de doença mental;
3)
plena caracterização do fenômeno mental como distinto dos (e irredutível aos) processos
químicos, biológicos e sociológicos que o acompanham e malgrado estejam-lhe
associados indissoluvelmente; por fim,
4)
valorização da vida onírica como legítima (e
segundo Freud como preferencial) via
de acesso ao conhecimento e ao aperfeiçoamento profundo de si.
Examinemos agora, um a um, a relevância desses
quatro pontos.
1)
Primado da emocionalidade sobre a racionalidade
A grande revolução esboçada por Franz Gall e
sistematizada por A. Comte sobre o psiquismo humano, segundo a qual se deveria
buscar sempre em motivações emocionais as mais fundas raízes dos nossos
pensamentos e das nossas ações, precisou esperar por Freud até se traduzir como
parte de uma efetiva busca pelo alívio dos nossos transtornos psicológicos. No
decorrer da evolução do movimento psicanalítico, não me consta que nenhuma de
suas inúmeras dissidências tenha jamais dado ensejo à mínima insurreição contra
essa tese, que representa, insistimos, uma semelhança essencial com a concepção
positiva da alma. Pelo contrário, esta manteve-se intacta resistindo a todas as
demais correntes que haveriam de formar-se na psicologia (mesmo fora da
psicanálise) e que no fundo limitaram-se apenas à resolução do problema de
identificar, dentre todo o inventário das nossas punções instintivas, a qual delas
deveria caber o primado de nossa dinâmica mental.
2)
Identidade fundamental das leis naturais que regulam os estados de saúde e de
doença mental
O segundo ponto que me parece convir apresentar
consiste no modo como tanto a teoria psicanalítica da alma quanto a comtiana
formulam a seu próprio modo a identidade comum que subjaz aos fenômenos
patológicos e aos que concernem à saúde. Prosseguindo ambas, nesse particular,
as bases lançadas por François Broussais, elas vieram estabelecer o continuum que, ligando um desses
extremos ao outro, permitem teoricamente que se conceba tanto a recondução da
mente da doença para à saúde, quanto sua recaída à doença, e permitem ainda
conceber essa dupla passagem como se constituindo, no fundo, de um só e mesmo
processo, apenas funcionando em dois sentidos opostos. Foi assim que se tornou
possível transpor o abismo em que jaziam ininteligíveis os mais grotescos
sintomas psicopatológicos, que doravante puderam ser rastreados até sua origem
mais remota e então compreendidos nos termos de uma intrincada deformação
daqueles mesmos processos que a mente elabora em seu estado são.
3)
O fenômeno mental como distinto dos processos inferiores
É sabido que a escola positivista encontrou
profunda resistência do materialismo junto ao mundo acadêmico em que, na menos pior
das hipóteses, apenas foi possível acompanhar – de um seguro distanciamento – as
concepções comtianas até os estritos limites sugeridos pelo Curso de Filosofia Positiva que faziam
então da Moral tão-só o capítulo final da Biologia e o preâmbulo à Sociologia (concebida
esta como a última e a mais alta ciência). De fato, em uma atmosfera em que predominavam
concepções como as de Carl Vogt (que afirmava ser o pensamento a secreção do
cérebro), declarar, como Comte o fez em sua fase religiosa, a identidade
própria do fenômeno moral em relação aos da neurofisiologia, inclusive a erguendo
acima da Sociologia, era algo que parecia ameaçar a tão sonhada unidade
objetiva da ciência materialista, com um retorno à tenebrosas concepções de um
espiritualismo teológico ou de um vitalismo metafísico não menos funesto. Esse
quadro só mudou a partir dos experimentos de Charcot (um dos mestres de Freud)
com pacientes histéricos cujas paralisias parciais exóticas conduziriam a
verdadeiros paradoxos se houvessem de ser anatomicamente compreendidas como
associáveis apenas a lesões neurológicas. Foram tais experimentos que
arrancaram Freud do materialismo vulgar, conduzindo-o a um caminho que, embora
não exatamente novo (uma vez que já havia sido apontado por A. Comte e trilhado
por seu discípulo Georges Audiffrent), havia, para todos os efeitos,
permanecido à margem do mundo acadêmico, sufocado até mesmo pelo littreísmo que
ainda hoje passa por ser o positivismo comtiano. Eis aí como foi que em mais
esse aspecto fundamental a psicanálise veio assemelhar-se ao positivismo já a
partir da própria consideração do fenômeno moral como detentor de um status próprio e superior, que,
conquanto subordinado a todos os demais, não se reduz a nenhum deles.
4)
Vida onírica como via de acesso ao conhecimento e ao aperfeiçoamento profundo
de si
Se, como Freud afirmou, a interpretação dos sonhos
é a via régia do inconsciente, então podemos dizer que Comte apresenta-se (no
cenário de uma então embrionária Psicologia) como um genuíno precursor não só
da psicanálise como do que hoje chamamos sonhos lúcidos. De fato, quanto a
isso, Comte escrevera no Catecismo
positivista – e, note-se, quase 50 anos antes da publicação dos dois
célebres volumes que abrem o século XX e aos quais Freud carinhosamente se
referia como “o meu livro de sonhos” – o seguinte: “pode-se esperar que a
teoria cerebral conduza finalmente a bem interpretar os sonhos e mesmo a
modificá-los, segundo o voto de toda a Antigüidade”. Se livrarmo-nos dos
preconceitos que pairam sobre o positivismo, poderemos compreender como foi
possível a Comte encetar tamanho adiantamento, uma vez que em uma síntese que sempre tendeu e pretendeu tornar-se
plenamente relativa e subjetiva, a valorização da vida onírica não poderia
senão corresponder a um dos corolários da própria valorização geral conferida a
essa faculdade complexa da imaginação – isto é, ao recurso lógico de elaborar imagens e de intensificá-las
deliberadamente. Tal faculdade vem, pois, com a nova síntese, reocupar natural
e necessariamente no conjunto da nossa natureza, (e assim também nas concepções
e práticas que a ela correspondem) o seu primitivo lugar de honra dignamente reconstituído,
tanto quanto em contrapartida deveu-o ser posta sob suspeita e desprezada por
um grosseiro academicismo materialista, que aliás perdura até hoje.
Acrescente-se a isso que, além da esperança depositada por A. Comte (e
compartilhada por Freud) na capacidade de bem interpretar os sonhos, também a
expectativa do fundador do positivismo na possibilidade moral representada pelo
dom complementar de modificá-los (assunto que, tanto quanto sei, jamais entrou
na pauta da obra freudiana) veio enfim realizar-se sob nossos olhos, mediante
técnicas do sonho lúcido sistematizadas apenas em meados dos anos 1970.
Moral
Prática e técnica psicoterápica psicanalítica
Se na primeira parte de nosso exame foi simples
identificar alguns pontos de contato significativos entre as teorias comtiana e
freudiana da alma, a presente segunda parte, referente à atuação direta de
ambas sobre a subjetividade humana, vem oferecer ao contrário um contraste
radical que as torna, a meu ver, antagônicas; o que aliás sugere imediatamente
a questão de saber se, afinal, existiria hoje alguma outra linha pedagógica e
psicoterápica que melhor se assemelhasse à moral prática conforme concebida por
Comte. Examinaremos também esse último ponto. Convém notar, porém, que a morte
prematura de Comte representou a catástrofe que privou a Humanidade do que
seriam os demais três volumes que se seguiriam ao tratado matemático (único
publicado) que forma o primeiro tomo da sua Síntese
Subjetiva. Seria justamente no segundo e no terceiro tomo dessa tetralogia
há tanto tempo anunciada que Comte trataria de constituir a Moral Teórica e a
Moral Prática (ou, como diríamos hoje, a Psicologia e a psicoterapia/pedagogia
positivas, respectivamente). Assim, tudo quanto dispõe aquele que deseja
debruçar-se hoje sobre tal problema encontra-se disperso heterogeneamente ao
longo da obra comtiana, apenas sob forma de indicações mais ou menos
incidentais e sumárias. Só o que nos resta fazer, pois, é conjecturar tomando
tais bases – sugestivas porém necessariamente incompletas (somadas, é claro, a
tudo o mais que a Humanidade conseguiu realizar convergentemente em termos de
especulação e de investigação psicológica, psicoterápica e pedagógica) e, a
partir daí, inferir (e mesmo assim apenas como mera plausibilidade) como
haveriam de constituir-se as suas morais Teórica e Prática. Limitar-nos-emos
apenas a indicar o que nos parece esse novo caminho que Comte começava a
vislumbrar (e cuja mais precisa caracterização só pôde ser apresentada já em
seu leito de morte como em um último ensinamento) e que, se percorrido, guiá-lo-ia
– assim nos parece – a uma inteira e nova possibilidade de interação e de
compreensão interpessoal, a qual, por sua vez, corresponde, a nada menos que à
própria chegada da comunicação humana como um todo ao seu estado positivo.
Para melhor examinar o contraste efetivo entre o
modo de operar da psicanálise e da Moral Prática, conviria examinar a proposta
desta, indicada já por sua posição mesma na escala enciclopédica. O conceito
que emerge de tal posição, e que me parece o mais caracterizador do seu
espírito geral, traduz-se na sua condição única (e que apenas aí é possível) de
uma plena concretude em que toda abstração torna-se a um tempo tão impossível
quanto indesejável. Se à Moral Teórica apenas coube investigar e inventariar o
que há de comum a cada individualidade, é à Moral Prática que cabe, ao invés,
desenvolver os esforços no sentido de estabelecer as atitudes do que poderíamos
chamar de “ciência da excepcionalidade”. Ocupando uma posição singularmente
privilegiada na escala dos saberes, fronteiriça às demais artes práticas cujos
seis restantes elementos formarão uma hierarquia que descerá sucessivamente da
política até as artes ligadas à matemática, a Moral Prática caracteriza-se, de
fato, pelo trabalho contínuo de deter-se tão-só em cada indivíduo no seu aqui e agora, ou seja na concentração
total de nossa emocionalidade e de nossa atenção em uma determinada pessoa
concreta, que se apresenta de fato a nós em um determinado lugar e tempo
concreto e que, dessa forma, momento a momento vem revelar-se na qualidade da
subjetividade singular e incomparável (ou antes a-comparável) que é. Os
elementos únicos para uma tal compreensão não podem, pois, deixar de consistir
exclusivamente naquilo que essa própria pessoa concreta venha revelar por meio da
sua comunicação verbal ou não verbal conosco e que por nós possa ser assimilada
e a ela devolvida como forma de confirmar, por tal pessoa mesma, se (ou em que
medida) fomos capazes de alcançar o sentido subjetivo do que nos comunicou.
Outrossim, esse nosso esforço por seu turno não carece de nenhum construto
teórico, resumindo-se antes na consequência natural de um gesto único que
consiste, ao contrário, em despirmo-nos cada vez mais de quaisquer
abstracionismos (mesmo os oferecidos pela própria Moral Teórica) bem como de
hipóteses, pressupostos, expectativas, juízos de valor etc. que possamos acaso
formular sobre alguém e por mais plausíveis ou necessários que nos pareçam. É
assim, pois, que tudo de quanto dispomos como instrumento para alcançar essa
compreensão é a nossa própria emoção e atenção, inteira e integralmente
voltadas e votadas a quem de fato apresenta-se a nós, no desejo imenso e
intenso de captar assim a totalidade do significado subjetivo real do que nos é
oferecido na interação – também única – dessa pessoa conosco. Em uma palavra,
só o que nos resta como instrumento efetivo para tal compreensão humana somos
nós mesmos, com nossas próprias faculdades naturais de empatia, de congruência
e de receptividade positiva e incondicional.
Embora haja um certo consenso de que a psicanálise
não é mais, hoje, o que foi nos tempos de Freud, parece-me inegável que ela
tenha recebido da Medicina a herança de uma certa postura profissional típica,
herança esta de que seus profissionais, em geral, ainda não se dispuseram a
abrir mão. Refiro-me a um posicionamento no qual o psicanalista apresenta-se
como um especialista, como um “doutor
de almas”, ou – o que é ainda pior – como um “fulano-de-tal-ólogo”. Ela parte
do pressuposto de que existem verdades universais e necessárias sobre os
mecanismos mais profundos responsáveis pelo padecimento moral do ser humano,
verdades que precisariam ser eficientemente identificadas nos sintomas que o “paciente”
manifesta e em seguida “tratadas” pelo psicanalista. A palavra do psicanalista
substitui, no caso, o bisturi; o divã substitui a mesa de cirurgia; as sessões
são o equivalente a uma operação; o trauma é a causa do sintoma e a catarse, a
extrusão do mal. Bem se vê que em uma ambiência como essa a relação deve
pautar-se na suposta dependência quase total em que o “paciente” encontra-se na
sua relação com o psicanalista. É essa dependência que faz o paciente requer
uma ajuda impessoal cujas propostas e solicitações são tão específicas que
ninguém mais – nem parentes, nem amigos, nem médicos, nem sacerdotes e nem ele
próprio, paciente – teria como oferecer e à qual ele apenas vem contribuir na
qualidade de um colaborador involuntário no desenvolvimento da teoria e no
aprimoramento da técnica, oferecendo a ambas novos insumos de “material” a
compor ilustrações adicionais que enriquecerão a psicanálise, confirmando,
complementando ou, vez por outra, infirmando a verdade de seus pressupostos e a
eficácia de seus procedimentos.
Uma evidência sensível do teorismo psicanalítico
revela-se muito particularmente na barreira iniciática imposta pelo Estado na
ocasião mesma do ingresso do recém-formado psicólogo em sua vida profissional:
o gigantesco aparato teórico da psicanálise adjunto ao seu correspondente
repositório terminológico (que já formou, diga-se, grossos léxicos) prestam-se
– como talvez os de nenhuma outra linha de psicoterapia – a oferecer quase todo
o conteúdo das questões de múltipla escolha presentes nas provas de concursos
públicos para os cargos de psicólogo. Nada em Psicologia consegue ser tão farto
e nada consegue ajustar-se tão bem e ser tão precisamente caracterizável
(quando se trata de comportar um inequívoco “assinale a única resposta correta”)
do que a psicanálise.
Comte, em seu leito de morte, afirmara, porém, como
consistindo em um verdadeiro vício lógico enraizado na Medicina a prática de
aplicar princípios gerais a casos particulares. Jung, discípulo dissidente de
Freud, chegaria mesmo a dizer: “conheçam-se todas as teorias, dominem-se todas
as técnicas, mas ao estarmos diante de outra alma humana, sejamos apenas outra
alma humana”. Ora, pergunta-se então: como ficaria (e em que consistiria) uma Psicologia,
uma Psicoterapia e uma Pedagogia que procurassem rastrear as mais longínquas
consequências de tal vício lógico, tentando o mais que possível evitá-las e
contorná-las? Como dissemos inicialmente, na obra comtiana apenas poderemos
encontrar sobre isso sentenças esparsas e incidentais. Esse tema tão capital (e
que, desgraçadamente, em virtude de apenas dois anos de vida que o destino não
concedeu ao fundador do positivismo) não pôde ter nenhuma apresentação direta e
sistemática, conquanto representasse desde há muito o próprio coroamento de
toda a doutrina. Contudo, pensamos que, apesar disso, o oferecido aqui, se
largamente desenvolvido, possa servir como a primeira base de um esboço de
tentativa no sentido de compreender o que foi aquela antiga e esquecida
proposta, assim como de estabelecer algum critério por meio do qual seja
possível investigar se existe hoje alguma linha de Psicologia naturalmente mais
próxima dela. Penso que a resposta a essa última questão seja afirmativa e que
tal linha esteja cabalmente representada nas chamadas abordagem centrada na pessoa (ACP) e na pedagogia centrada no aluno, de Carl Rogers.
Torna-se uma tarefa das mais melindrosas e
arriscadas fazer derivar todo um conjunto de práticas de uma única indicação
extrema tomada como fundamental, mas, a menos que nos arrisquemos a algo assim,
não estaremos realmente em condições de avançar. As linhas psicoterápicas podem
ser grosso modo divididas em três
grandes grupos segundo a base que tomaram para o acesso à subjetividade humana:
de natureza predominantemente prática (behaviorismo, orgonoterapia, rolfing, rebirthing, terapia do grito primal
etc.), intelectual (psicanálise e suas dissidências, gestalt, terapia cognitivo-comportamental, filosofia clínica etc.)
ou afetiva (abordagem centrada na pessoa, terapia existencialista, psicodrama
etc.).
Essa decomposição mais ou menos assente nos meios
acadêmicos forma um critério adicional que favorece o nosso trabalho, o qual
passa a incidir de preferência sobre o último desses três grupos, tão bem a
propósito caracterizado pela denominação de psicoterapias humanistas.
Assim como Comte precisou livrar-se até mesmo de
determinadas especulações e ambições científicas para atingir a plenitude do
estado positivo, Rogers também precisou fazê-lo para alcançar a cristalinidade
da visão do outro como a de uma total
alteridade mutável instante a instante. Em uma analogia com a Matemática,
podemos dizer que a diferença entre a abordagem centrada na pessoa e as demais
formas diretivas e abstratas de acesso à subjetividade assemelha-se à que
existe entre a idéia de somatório
quando comparada à de integral. Da
mesma forma – e explorando ainda mais a analogia com a Matemática –, a
diferença entre a pessoa conforme
concebida nas demais terapias e na ACP assemelha-se à diferença fundamental
entre o conjunto dos números reais, em que é cabível a relação “maior do que” e
“menor do que”, e o conjunto dos números imaginários, em que esse componente
quantitativo deixa de fazer sentido, malgrado seus elementos característicos
consistam de entidades aritméticas tão bem definíveis como aquelas encontráveis
no conjunto dos números reais[1].
Finalizando, devemos dizer que, embora os conceitos
de doença, alta, cura, sintoma, inconsciente, trauma, diagnóstico, tratamento,
terapia, neurose, psicose, obsessão, compulsão, id, ego, superego, paciente
etc. etc. etc. não encontrem absolutamente lugar na abordagem centrada na
pessoa, isso não significa que ela rejeite, a bem dizer, o fato reconhecido de
que psicólogos de outras linhas tenham dito haver identificado (segundo seus
próprios construtos – e designado segundo seu próprio jargão) muito do que
efetivamente acontece no interior de uma sessão da ACP, quer na condição
fenômenos a eles familiares, quer mesmo na condição de consistirem estes nas
mesmas exatas e genuínas ocorrências que historicamente atestaram desde o
início, a realidade de cada uma suas próprias e inúmeras teorias. A rejeição a
esses conceitos obedece, no caso, a uma outra ordem de considerações e de
atitudes distinta do que seria uma simples rejeição teórica. Trata-se aqui de
evitar a todo custo o abstracionismo, considerando, por exemplo, que por mais
bem descritos que possam vir a tornar-se conceitos como os de neurose, tão
exaustivamente tratados, tais descrições jamais poderiam equivaler – em termos
de informação real – ao que a própria
pessoa que busca ajuda teria a dizer sobre si mesma, assim como jamais equivalerão
ao que uma pessoa que busca compreender a outrem possa obter de sua própria
empatia, quando se compara isso a qualquer suposto conhecimento a priori que estivesse fora do contato
direto e íntimo com ela, pela intermediação dos mais experientes e argutos
intérpretes.
Nota
pessoal: Caro Gustavo, eis aí em síntese o meu prometido
texto. Penso haver chegado a um resultado mais ou menos satisfatório nessa
minha primeira tentativa sistemática de situar a psicanálise no contexto das
concepções positivas, sobretudo considerando-se o tempo que tive disponível,
bem como a necessidade de encurtá-lo tanto quanto convém a uma simples
resposta. Precisamos desenvolver esse tema, inclusive no sentido de colher da própria psicanálise alguns conceitos
mais tardios que eventualmente a aproximem mais da Moral Teórica e Prática.
[1] Melhor seria dizer “conjunto dos números complexos”, de que o conjunto dos imaginários é apenas uma parte , ou seja, aquele em que, na expressão geral “A+Bi”, A é igual a zero.
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