15 agosto 2019

Abolição e política identitária na Ciência Hoje para Crianças

Nos últimos anos, a “discussão” sobre a abolição da escravidão no Brasil tem tomado alguns rumos inesperados mas, ao mesmo tempo, nefastos.

Antes de mais nada, é evidente (ou deveria ser evidente) que a valorização dos movimentos negros (escravos, livres ou libertos) na campanha pela abolição da escravidão é algo corretíssimo e tem que ser valorizado; todavia, isso não pode, de maneira nenhuma, corresponder a negar-se o papel desempenhado nessa campanha por outros brasileiros, que, na falta de melhor expressão, chamaríamos de “brancos” (quer fossem populares, quer fossem da elite, quer fossem de classe média).

O que importa notar, nesse sentido, é que a campanha pela abolição foi um movimento verdadeiramente nacional, no duplo sentido de que (1) ocorreu de Norte a Sul (e de Leste a Oeste) do país e, principalmente, (2) mobilizou todas as classes sociais, todos os grupos sociais. Nesse sentido, vale lembrar que a lei da abolição, antes de ser sancionada pela Princesa Isabel, fora aprovada pelo parlamento brasileiro: essa aprovação indica o quanto a sociedade como um todo mobilizara-se previamente, forçando o parlamento a aceitar o projeto.

É fundamental insistirmos em que consiste em um mito a idéia de que Princesa Isabel teria sido a “redentora”, isto é, de que a abolição teria ocorrido graças à pura vontade unilateral da regente do Império brasileiro. Aliás, esse mito foi criado já em 1888, para tentar valorizar a monarquia decadente e também para tentar legitimar um eventual terceiro reinado dos Órleans e Braganças, a ser assumido pelo casal composto pela Princesa Isabel e seu marido, o francês Conde d’Eu.

Mas se é correto desmistificar a atuação “redentora” da Princesa Isabel, assim como é importante valorizar a atuação dos movimentos negros na campanha abolicionista, por outro lado é importante não negar a atuação de toda a sociedade brasileira da época. Nesse sentido, por exemplo, vale notar que partes do próprio “movimento negro” afirmaram desde 1888 elementos do mito da “redentora”: afinal, após o 13 de maio constituiu-se sob o comando de José do Patrocínio (um dos antigos campeões negros da causa abolicionista) a “Guarda Negra”, que servia para defender a monarquia escravocrata contra a república e os republicanos, sem temer o emprego de espancamentos, linchamentos etc. Esse triste fato não costuma ser lembrado – mesmo nos dias de hoje! – nem pelos reacionários que defendem a monarquia nem pelo movimento negro.

Há outro motivo, mais profundo, para preocupação com os rumos atuais sobre os “debates” a respeito da campanha abolicionista: trata-se de que muito da historiografia revisionista das últimas duas décadas tem um fortíssimo caráter de política identitária. Ora, a política identitária baseia-se nas “identidades de grupo”, isto é, naqueles elementos que cada grupo social considera como exclusivos seus e que, portanto, separam esses grupos do conjunto da sociedade e dos demais grupos.

Referi-me a “muito da historiografia”, ou seja, muitos historiadores, mas também muitos cientistas sociais atuais adotam esses parâmetros identitários para fazerem suas análises, que se caracterizam cada vez mais pela brutal dicotomia que separa de maneira seca e dura “brancos” de “negros”, sem categorias intermediárias (os mulatos) mas com um fortíssimo elemento moral (em que, evidentemente, os “brancos” por definição não prestam). (Esse procedimento tem sido adotado por cientistas sociais independentemente da sua “raça”.)

Isso tem ocorrido graças à importação, completamente acrítica e despudorada, feita pelo movimento negro brasileiro dos esquemas mentais e sociais próprios ao racismo dos Estados Unidos e das estratégias sociopolíticas adotadas pelo movimento negro estadunidense – com todos os vícios que isso acarreta, em particular a reprodução ocorrida aqui do racismo e do divisionismo existentes lá. Sinal simples e escandaloso disso é a afirmação de que “miscigenação é genocídio” em faixas e cartazes que integrantes do movimento negro brasileiro exibem com orgulho em manifestações públicas, ainda que com isso apenas (e infelizmente) reproduzam aqui e a favor dos negros a nefanda regra da “gota única de sangue” (“one drop rule”), vigente nos EUA e que fundamenta sociologicamente o racismo lá.

Não posso deixar de observar que, muito diferente disso tudo, resultando em ações e práticas muito diversas, com efeitos sociais e políticos amplos (também diversos), foi a atuação dos positivistas. Os positivistas brasileiros celebravam no dia 13 de Maio a união da raças no Brasil, com a colaboração de cada uma delas para o progresso nacional; aliás, os positivistas brasileiros foram alguns dos mais ardorosos defensores da abolição da escravidão imediata e sem compensação financeira para os donos de escravos: aliás, nos grêmios positivistas, ser dono de escravo causava a expulsão sumária. Não é por acaso que, entre 1890 e 1930, o 13 de Maio era feriado nacional (e muita gente, mesmo nos dias de hoje, ainda se lembra disso): proposto pelos positivistas logo no início da República, esse feriado celebrava a fraternidade nacional nos termos indicados acima – mas muito diferentes da apologia reacionária que cultuava a “redentora” e também muito diferente da política identitária, segregacionista e não raro racista do dia da “consciência negra”.

Faço essas extensas considerações porque a revista Ciência Hoje para Crianças (CHC), em sua edição n. 299, de maio de 2019, dedicou o número a tratar da abolição da escravidão, dando ênfase aos negros envolvidos no movimento. Como observei antes, essa ênfase é histórica e politicamente necessária, mas ela não pode conduzir a negar o papel desempenhado pelo conjunto da sociedade brasileira – que, aliás, atuou como um conjunto – nessa campanha. Em particular, nesse número da CHC, a matéria “13 de Maio ainda seria data para celebrar?” (disponível aqui: http://chc.org.br/artigo/13-de-maio/) deixa entrever os problemas que comentei acima. É bastante claro o quão problemático, quando não desastroso, que, em nome de uma proposta bem intencionada, mas errada no final das contas, uma revista de divulgação científica leve adiante a “correção política” (que é a tradução correta do “politicamente correto”) e a política identitária sob a forma de conteúdo “educativo” para crianças.

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