26 setembro 2013

Dicionário da Elite Política Republicana (1889-1930)

Para os interessados em História do Brasil, a Fundação Getúlio Vargas criou há alguns anos um dicionário eletrônico da elite política da I República (1889-1930), que é mais ou menos complementar ao dicionário de elites relativas ao período posterior a 1930 (disponível aqui).

A iniciativa é interessante; ainda assim, é importante notar que ela deixa muito a desejar: inúmeros nomes da "elite política" da I República pura e simplesmente não aparecem nesse dicionário.

Dois exemplos absolutamente escandalosos de omissões: os apóstolos da Humanidade, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, que, com base na Igreja Positivista do Brasil, tanto fizeram em prol de uma cultura cívica republicana, do respeito aos trabalhadores, da dignidade da família, da separação entre Igreja e Estado.

Ausências desse gênero diminuem muito a relevância da iniciativa, em particular porque não há previsão de complemento no dicionário e não se aceitam verbetes complementares.

Não há dúvida alguma de que esse tipo de ausência reflete as decisões e as orientações teóricas e políticas tomadas por vários diretores do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdocda Fundação Getúlio Vargas. Em outras palavras, esse núcleo de pesquisa pura e simplesmente decretou que o Positivismo não desempenhou papel algum na história brasileira e que, caso alguém discorde desse decreto, tal papel deve ser desconsiderado. É evidente que isso se afasta bastante do que qualquer cidadão poderia chamar de prática científica e política "sadia".

Enfim: para os interessados, esse Dicionário da I República está disponível aqui: http://cpdoc.fgv.br/dicionario-primeira-republica.


Miguel Lemos (1854-1917)

Raimundo Teixeira Mendes (1855-1827)

23 setembro 2013

Do OLÉ: "Papa no Brasil: para onde foi a laicidade do Estado?"

Reproduzo abaixo postagem recente do Observatório da Laicidade na Educação (OLÉ), em que trata da recente visita do papa Francisco ao Brasil, por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (Católica) e das suas relações com a laicidade. 

É um relato minucioso - e, por isso, longo - do evento, indicando vários aspectos em que a laicidade foi francamente desrespeitada, por vezes da maneira mais acintosa e demagógica. 

O OLÉ é um dos poucos órgãos de pesquisa que valorizam a laicidade e assumem-na como um valor para a República, sem se curvar aos inúmeros sofismas contrários a ela - sofismas o mais das vezes produzidos por seus inimigos e repetidos por políticos e juristas interessados no Estado confessional (quando não teocrático).

O vínculo original da postagem encontra-se aqui.

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O PAPA NO BRASIL: PARA ONDE FOI A LAICIDADE DO ESTADO?

            A semana que o papa Francisco passou no Brasil (22-28/7/2013), bem como o período imediatamente anterior e posterior, propiciam uma ocasião privilegiada para se saber para onde vai a laicidade do Estado brasileiro. O que se fez e o que se deixou de fazer, o que se disse e o que se calou, o material e o simbólico, tudo isso recheou e revestiu a passagem do papa pelo Brasil.
            Para começar, não dá para não falar da Marcha para Jesus, promovida por igrejas evangélicas em várias cidades do país, de junho a agosto. Não foi, como parece à primeira vista, um desafio evangélico ao evento católico. Por mais que a rivalidade intra-campo religioso estivesse presente, o evento evangélico se realiza há duas décadas na capital paulista. E foi, de uma certa maneira, institucionalizada pela lei federal 12.025/2009, de iniciativa parlamentar e sancionada pelo presidente Lula, que instituiu o “Dia Nacional da Marcha para Jesus”, a ser comemorado, anualmente, no primeiro sábado subsequente aos 60 dias após o domingo da Páscoa. Não há dúvida que esse marco foi o contraponto da lei federal 6.802/1980, firmada pelo presidente general Figueiredo, que declarou feriado nacional o dia 12 de outubro “para o culto público e oficial a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil.” Portanto, se algum desses eventos foi marcado para perto do outro foi o católico, não o evangélico.
            Em São Paulo, a “Marcha para Jesus” foi realizada em 29/6/2013, pouco menos de um mês antes da Jornada Mundial da Juventude (Católica). Durou um dia inteiro, contou com cerca de 2 milhões de pessoas de diversas denominações, e teve a presença de vários pastores, entre os quais os altamente polêmicos Silas Malafaia e Marcos Feliciano. A tônica geral das faixas foi de defesa do conservadorismo político e ideológico, com ênfase no confronto com o “ativismo gay”. A imprensa escrita e televisada desmereceu o evento evangélico, focalizando seu caráter local, o número de participantes inferior ao previsto e a presença de líderes polêmicos ou conservadores.
            Em contraste, a presença do papa Francisco no Rio de Janeiro e em Aparecida (SP), foi um sucesso de público e de crítica. Em sua primeira viagem fora da Itália, quatro meses depois de eleito papa, Francisco veio para a 26ª Jornada Mundial da Juventude, evento itinerante da Igreja Católica, cujas duas edições anteriores foram sediadas na Austrália e na Espanha. No Rio de Janeiro, o papa foi aclamado por milhões de pessoas à beira do delírio coletivo; a JMJ recebeu cobertura generosa dos meios de comunicação de massa; os governos federal, estadual e municipal esmeraram-se em mostrar-se atenciosos e convergentes com as ideias da Igreja Católica; mãos de clérigos punidos ou contidos pela Santa Sé foram erguidas ao pontífice. Este, por sua vez, esteve à vontade, falou um portunhol desenvolto, empregou expressões populares e até concedeu entrevista exclusiva à maior rede brasileira de TV. Os evangélicos, adversários principais no campo religioso, mantiveram conveniente silêncio sobre o megaevento. Rapidamente foram esquecidos os vexames da má programação oficial em matéria de trânsito urbano e de transporte público. Problemas da organização da própria administração da Jornada foram imputados aos governos do Estado e do Município da capital, que, devotos e solícitos, os assumiram. O caso mais célebre foi o da escolha, pelos promotores da Jornada, de um distante terreno na zona rural para as celebrações de massa. A advertência da administração pública de que se tratava de área alagadiça foi desconsiderada pelos organizadores. As fortes chuvas que caíram no Rio tornaram a área um grande lamaçal, mas as celebrações foram prontamente transferidas para a praia de Copacabana, que serviu de cenário para a prática do pensamento mágico, aliás incentivada pelo próprio papa – a oferta pelo prefeito de uma dúzia de ovos para Santa Clara, isto é, para o convento das freiras clarissas – uma simpatia para o sol voltar a brilhar. Contrariando os meteorologistas do Instituto de Pesquisas Espaciais, a volta do sol no último dia da Jornada foi atribuída a mais um efeito da ordem sobrenatural sobre a caprichosa natureza carioca.
            Passemos ao tema que nos interessa: para onde foi a laicidade do Estado?
            Financiamento público a evento privado
            O orçamento do Instituto da Jornada Mundial da Juventude era de 350 milhões de reais, a ser coberto pelas inscrições dos participantes, por doações privadas e contratos de patrocinadores empresariais (Bradesco, Itaú, Santander, Ferrero, Nestlé, McDonald’s, Tam Viagens e Havas).
            A estimativa do jornal O Globo foi que o Poder Público gastaria, indiretamente, 118 a 120 milhões de reais, dos quais 62 milhões seriam despendidos pelo governo federal. Estariam incluídos nesta cifra os gastos com o avião da FAB que foi a Roma buscar os dois “papa-móveis” a serem utilizados pelo pontífice no Brasil, além dos voos nos helicópteros militares empregados no seu deslocamento no Rio de Janeiro e no tour a Aparecida.
            Nessa estimativa não foram computados os custos de transporte dos bilhetes de ônibus, barcas e metrô que a Prefeitura do Rio distribuiu a milhares de participantes inscritos. Nem os gastos com serviços médicos e de ambulâncias, que o Instituto JMJ repassou para a Prefeitura do Rio. Inicialmente esses gastos, no valor de 7,8 milhões de reais, seriam assumidos pelo Instituto da Jornada. Mas, diante da redução do número de inscritos internacionais e previsão de déficit, os organizadores convenceram o prefeito a assumi-los. Um processo licitatório de urgência foi aberto, logo contestado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, que, ainda antes do início do evento, abriu uma ação civil pública contra essa despesa adicional. O MP alegou que esse sobregasto estava fora do contrato anterior, além de haver vícios no processo e falhas procedimentais. O Tribunal não aceitou os argumentos do MP, a licitação foi feita e os ônus, assumidos pela Prefeitura.
            Os dirigentes da Igreja Católica e mesmo do Estado brasileiro (a convergência é notável), argumentaram que o papa, além de líder religioso é chefe de Estado (a ambiguidade parece não surpreender ninguém). Por isso, deveria receber tratamento adequado ao seu status. A ninguém ocorreu lembrar que o governo brasileiro jamais mandou buscar o carro próprio de chefe de Estado que visitou o Brasil: nem Barak Obama nem o rei Juan Carlos I. Só para citar dois exemplos. Nem pagou a visita para nenhum deles fazer proselitismo por aqui. Sinal dos tempos: não podendo se basear somente na devoção ou no oportunismo dos políticos,  dirigentes da Igreja Católica tiveram de se valer de um inédito discurso economicista para justificar os gastos públicos com a Jornada. Foi isso que fez o arcebispo de São Paulo, Odilo Scherer. Ele disse que todo o gasto público seria feito no próprio país, iria gerar empregos e representaria uma “injeção de sangue na economia brasileira”. [O Globo, 16/7/2013, p. 18]
            De um ponto de vista puramente economicista, os resultados do evento podem dar razão ao arcebispo de São Paulo: mesmo que os gastos públicos tenham sido superiores aos 120 milhões previstos antes do evento, as estimativas é que foram injetados 1,8 bilhão de reais na economia do Rio de Janeiro (O Globo, 28/7/2013, Caderno Especial, p. 8-A). O ganho teria sido superior da Copa das Confederações de Futebol.
            Mas, se o mercado ganhou, o Estado perdeu – não só o Estado do Rio de Janeiro e de sua capital, mas todas as instâncias do Estado brasileiro. Perdeu substância na difícil construção da laicidade. Para um micro-economista, a laicidade não passa de um detalhe.
            Argumentos economicistas, como o que circulou na cabeça e na fala dos dirigentes religiosos e políticos, podem justificar muita coisa ruim, inclusive o turismo sexual, tão generoso no reforço da renda de milhares de miseráveis famílias nordestinas.
            Vassalagem das autoridades e suas mulheres
            Nelson Rodrigues dizia que o brasileiro tinha o “complexo de vira-lata”, de povo colonizado, tamanha era sua atitude servil diante dos estrangeiros. Se ele fosse vivo, talvez dissesse que os ocupantes de cargos públicos, no Brasil, têm “complexo de vassalos”, tamanho é seu gosto por reverenciar um monarca: curvar-se diante de um rei ou uma rainha, é sinal de vassalagem muito apreciado por nossas, digamos, elites. Pois o papa é um monarca, aliás absolutista, com a vantagem de ser também dirigente da religião dominante no Brasil. As atitudes de vassalagem para com ele teriam tríplice dimensão: sujeição diante do estrangeiro, do monarca e do chefe da Igreja dominante.
            Isso não é invenção recente. Em 1985, quando presidente da República, o atual senador José Sarney, ao visitar o papa João Paulo II no Vaticano, curvou-se e beijou-lhe a mão (ou anel). Quando o mesmo pontífice veio ao Brasil, em 1997, havia a expectativa sobre o que faria Fernando Henrique Cardoso. Ele apertou-lhe a mão, o mesmo fez sua mulher Ruth Cardoso. Ao visitar o Vaticano, em 2008, o presidente Lula apertou a mão do mesmo papa, mas sua mulher, Marisa, curvou-se e beijou-lhe a mão (ou anel). Desta feita, na recepção ao papa Francisco, a presidenta Dilma Rousseff comportou-se com dignidade. Apertou a mão do papa, mas recebeu dele beijos na face. O mesmo, no entanto, não fizeram outros dignatários do Estado brasileiro. Ministros de Estado, parlamentares e chefes militares aproveitaram a oportunidade de serem apresentados ao papa para exibir sua devoção pessoal. Em detrimento de suas posições oficiais, curvaram-se e beijaram contritos a mão (ou anel) do papa Francisco, diante das vistas de milhões de telespectadores. Suas mulheres foram ainda mais acintosas nos atos de vassalagem. O longo e intenso vínculo das mulheres com o Cristianismo, que se materializou na sujeição de seus corpos e de suas mentes, expressou-se, então, nas manifestações “espontâneas” de vassalagem ao papa. Mesmo que os maridos apenas apertassem a mão do pontífice, elas faziam mesuras, meio que se ajoelhavam e beijavam a pontifícia mão (ou anel). Não vai comentada a situação simétrica (autoridade mulher e cônjuge masculino) pela raridade, senão inexistência no evento.
            Movimentos sociais
            No 30 dias anteriores à visita do papa, as maiores cidades do país foram palco de intensas manifestações de rua, com os mais diversos objetivos. Começaram com protestos contra as tarifas de transporte coletivo e logo foram estendidas aos governos estaduais e municipais, ao Congresso Nacional e ao governo federal. De pacíficas, foram se tornando também violentas, com destruição de alguns símbolos do capitalismo, como agências bancárias e agências de automóveis. Os gastos públicos com a Copa das Confederações de Futebol foram alvo direto dos manifestantes, que pediam saúde e educação públicas “padrão FIFA”. A repressão policial foi intensa e funcionou como incentivo de mais e violentas manifestações.
            Esse clima foi projetado para a visita do papa, temendo-se que os manifestantes pudessem comprometer o andamento das celebrações religiosas e políticas durante a Jornada Mundial da Juventude. Mas esses temores se mostraram infundados. Os movimentos de rua evitaram hostilizar os participantes da JMJ, seus dirigentes e suas instituições, preferindo manter os alvos anteriores, especialmente o governador do Estado do Rio de Janeiro e instituições estatais e empresariais. Enquanto os manifestantes insistiam em sitiar em casa o governador Sérgio Cabral, silenciavam-se sobre os gastos públicos com a Jornada. Há analistas da conjuntura política atual que apontam a presença de grupos anarquistas nessas manifestações. Sobre isso, cabe perguntar se os anarquistas brasileiros redefiniram a tradição anticlerical de seus antecessores. Com seu silêncio obsequioso deram um apoio inestimável ao sucesso da JMJ.
            A grande exceção foi a “Marcha das Vadias”, de 27/7/2013, que reuniu mais de 5 mil pessoas em Copacabana, em protesto contra a violência de gênero e violência sexual.
            Surgida no Canadá, em 2011, em resposta ao “conselho” de um policial para as jovens de um campus universitário, de não se vestirem como “vadias”, para não serem estupradas, mulheres de vários países assumem sua sexualidade e proclamam que, independentemente da roupa ou falta dela, a culpa será sempre do estuprador, nunca da vítima.
            Justamente no dia em que a “Marcha das Vadias” foi programada para a praia de Copacabana, seria iniciada no mesmo local a “vigília de oração” da Jornada. Com acesso facilitado pela transferência de local, do lamaçal de Guaratiba para a charmosa e central Copacabana, previa-se a afluência de alguns milhões de pessoas, engrossando o número de participantes. A “Marcha” reuniu movimentos feministas e grupos teatrais, com esquetes sobre a temática da descriminalização do aborto, da diversidade sexual, o fundamentalismo religioso e o racismo. Unindo todos estava a crítica aos preceitos morais da Igreja Católica. Convergentes com esse posicionamento, estavam presentes as Católicas pelo Direito de Decidir, do Brasil e de outros países latino-americanos. Apesar de bem humorada, houve momentos tensos, quando um manifestante quebrou imagens religiosas e outros manejavam desrespeitosamente símbolos e imagens de devoção católicas. Agressões houve também da parte de participantes da JMJ, que insultaram os manifestantes e cuspiram neles.
            De todo modo, o acirramento do confronto foi evitado com o desvio da “Marcha” para Ipanema, onde ela dissolveu após um “beijaço”.
            Entre os cartazes levados pelos participantes da “Marcha das Vadias”, havia alguns que mencionavam o Estado Laico, sempre positivamente, embora a sátira não concorresse para a busca de aliados nos domínios religiosos.
            Uma prévia desse evento, mas de menor porte, ocorreu no dia do desembarque do papa no Rio de Janeiro e sua recepção no Palácio Guanabara. No Largo do Machado, a poucas quadras desse local, um grupo teatral e militantes LGBT desenvolveram esquetes e portaram cartazes em defesa da liberdade sexual, mas acabaram suplantados por manifestantes contra o governador, que ignoraram a dimensão confessionalista do evento que se desenrolava no Palácio.
            O papa e a laicidade do Estado
            Francisco evitou falar diretamente de temas sensíveis nas relações do Estado brasileiro com os dirigentes católicos, principalmente aborto e casamento gay. Ele preferiu não bater de frente com as políticas governamentais que contrariam as orientações do Vaticano e da CNBB, mas fez gestos nesse sentido, embora tímidos. Por exemplo, na última missa do evento, a equipe vaticana levou ao altar uma criança anencéfala, nascida graças à decisão dos pais, católicos. A lei brasileira faculta o aborto nesses casos. O gesto da equipe foi uma discreta “defesa da vida”, uma mensagem aos católicos da posição da sua Igreja nesses casos. De fato, houve uma mudança de estratégia no trato de questões polêmicas. Em visitas anteriores, João Paulo II e Bento XVI fizeram críticas explícitas a políticas públicas, coisa que nenhum chefe de Estado faz no país anfitrião. Mudança de estratégia mas permanência de posição. Foi o que se pôde perceber no “kit peregrino” distribuído aos jovens inscritos na Jornada, voluntários e jornalistas credenciados. Ele incluía um manual com a posição oficial da Igreja, a mesma dos papas anteriores em matéria de aborto, reprodução assistida, eutanásia, homossexualidade e estrutura familiar. Em cada um desses pontos, a orientação do Vaticano colide com a legislação brasileira.
            Em reunião fechada, só para autoridades e convidados, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o papa Francisco usou a expressão Estado laico, a única vez em sua visita:
             “A pacífica convivência entre religiões diversas se vê beneficiada pela laicidade do Estado que, sem assumir como própria qualquer posição confessional, respeita e valoriza a presença da dimensão religiosa na sociedade, favorecendo suas expressões concretas.” [O Globo, 28/7/2013, Caderno Especial, p. 1]
            Uma visão bem restrita essa, a de pensar o Estado laico em função da convivência entre as religiões, esquecendo que a atuação de cada uma delas tem de ser feita na forma da lei, portanto o Estado está acima delas na esfera política, e mais, existe uma quantidade crescente de pessoas sem religião. E o Rio de Janeiro é o estado em que essa parcela é a mais alta no Brasil, 16%, o dobro da média nacional. O Estado laico existe também para os sem religião, inclusive para os anti-religiosos.
            Mesmo com essa autorreferência religiosa, Francisco Carlos Teixeira, professor titular de História da UFRJ, disse que a declaração do papa “acabou dando mais argumentos para a aprovação de políticas públicas que contrariam dogmas da própria Igreja.” [O Globo,  29/7/2013, Caderno Especial, p. 4] Vejamos como o Estado brasileiro, principalmente o Poder Legislativo, em todos os níveis, vai lidar com essa contradição: marcha adiante ou marcha a ré?
            O Estado Laico na TV
            Dois programas de TV foram dedicados ao Estado Laico, um gravado antes da Jornada, outro logo depois. Merecem destaque pelo contraste com as manifestações ostensivamente devotas da mídia brasileira ao papa e às celebrações em que esteve presente. O primeiro foi o “Observatório da Imprensa”, tradicional programa produzido e apresentado por Alberto Dines na TV Brasil, estatal. Gravado em 9/7, foi ao ar em 23/7/2013, durante a JMJ, portanto. Os entrevistados foram o filósofo Roberto Romano, da Unicamp; Daniel Aarão Reis, da UFF; e Jean Wyllys, historiador e deputado federal (PSOL-RJ). Dines justificou o tema abordado pelo programa como a oportunidade oferecida pelo evento católico para avaliar o papel da mídia eletrônica, frequentemente transformada em púlpito das religiões dominantes, a católica e a evangélica. Apesar das diferenças entre os entrevistados, eles convergiram na defesa da laicidade do Estado como condição para a democracia no Brasil. A conclusão pode ser sintetizada nas palavras do próprio Dines, para quem qualquer fissura no edifício republicano tende a ser continuamente ampliada. É um risco que não vale a pena correr, sobretudo nos momentos tensos em que vivemos. [video de acesso livre  http://www.observatoriodaimprensa.com.br/videos/view/a_vinda_do_papa_e_o_estado_laico ]  O segundo programa foi de emissora privada: “Na Moral”, da TV Globo. Apresentado por Pedro Bial, ele focaliza a mudança de comportamentos e de preceitos morais, sem se prender a uma pauta absoluta de valores. No caso do programa do dia 1/8/2013, praticamente uma semana depois da partida do papa, o tema foi o choque entre as religiões, que absolutizam a moral e o Estado Laico, que além de manter uma moral secular, protege a diversidade cultural. Os debatedores foram Daniel Sottomaior, da ATEA, o padre católico Jorjão, o pastor Silas Malafaia e o babalaô Ivanir dos Santos. Descontando a modéstia argumentativa do padre católico, o debate se deu entre a dupla Daniel-Ivanir contra o pastor Malafaia, isolado em sua arrogância e intolerância. O sambista Arlindo Cruz, igualmente convidado, fez a contraparte musical, com um repertório apoiador do ecumenismo de fato do povo brasileiro. O apresentador Bial revelou uma face distinta da que aparece no programa Big Brother, ao empregar bem conceitos pouco familiares ao pessoal da mídia, como a distinção entre Estado Ateu e Estado Laico, com o que calou a ferocidade do pastor. [acesso para assinantes globo.com  http://globotv.globo.com/rede-globo/na-moral/t/para-assinantes/v/na-moral-programa-do-dia-01082013-na-integra/2730908/]   Se o “Observatório da Imprensa” foi explicitamente montado com vistas à Jornada Mundial da Juventude, “Na Moral” pode ser, sem dúvida alguma, explicado como resultado não intencionado do mesmo evento. Apenas um exercício de Comunicação Social: se somarmos a audiência de ambos os programas, eles podem ter atingido mais, tanto ou menos gente do que os participantes da Jornada?
            Tudo somado, o que se pode esperar do papa Francisco em matéria de posições laicas?
            A realização da Jornada Mundial da Juventude no Brasil não foi por acaso. Maior país católico do mundo, é justamente aqui que se dá a mais pronunciada redução do número relativo de adeptos do catolicismo, em proveito de confissões evangélicas, principalmente as pentecostais. A visita do papa valorizou o protagonismo dos católicos no âmbito de sua igreja e na evangelização, vale dizer, na competição no interior do campo religioso. Com efeito, se as diretrizes do pontífice forem traduzidas em atos, é de se esperar a mudança de uma atitude passiva da hierarquia e dos leigos católicos diante do crescimento dos evangélicos, para adotarem uma atitude ativa e militante de reconquista dos fieis perdidos para os pentecostais. A entrevista concedida pelo papa Francisco à TV Globo deixou clara essa disposição de cruzado. Evitou falar do Brasil, para o que foi convocado pelo entrevistador, mas citou um elucidativo caso argentino. Uma mulher do sul daquele país disse a um padre que visitava seu lugarejo, o primeiro depois de muitos anos, que ela e os demais católicos foram abandonados pela Igreja (isto é, pelo clero). Por isso, ela teve de aderir a uma confissão evangélica para poder “ouvir a palavra de Deus”. Mas a opção teve um custo alto, que foi ter de esconder no armário a imagem de Maria, apesar de sua devoção. Não foi à toa a menção a essa imagem, de especial devoção do papa, que fez questão de incluir uma passagem por Aparecida, não prevista por seu antecessor. O lugar de Maria, como sua imagem, são pontos de alto poder explosivo nas relações entre católicos e protestantes.
            Qual será o teor das mudanças anunciadas pelo papa Francisco, é coisa impossível de se saber, por enquanto. Os articulistas da imprensa brasileira foram unânimes em atribuir efetividade nas mudanças promovidas pelo novo papa na Igreja Católica. Em geral, falou-se das reformas internas na burocracia vaticana, que tem sido alvo de fortes críticas, especialmente em matéria de práticas financeiras e sexuais. Francisco parece disposto a eliminar as razões para tais críticas, mediante a adoção, pelo Banco do Vaticano, de padrões bancários vigentes na Itália e em outros países, de modo a evitar a lavagem de dinheiro. Parece disposto, também, a evitar o prosseguimento da proteção que a Igreja tem dado a padres, bispos e cardeais pedófilos. Ele chegou a dizer que, além de pecado, a pedofilia é um crime, portanto punível pelo Estado, algo inédito na linguagem vaticana. Em matéria doutrinária, todavia, nada foi dito que sugerisse grandes mudanças. Sobre o lugar da mulher na Igreja, ele apenas afirmou que é grande, mas nada de ordenação delas no sacerdócio, isso já estaria resolvido para sempre. Sobre os homossexuais, ele admitiu que a Igreja deve acolhê-los, se buscarem Deus, mas nada de apoiar suas práticas. Sobre os divorciados, reiterou que devem ser acolhidos e até receberem sacramentos, mas nunca se contraírem outro matrimônio.
            O que significam a linguagem simples, o calor humano, o despojamento do ouro e dos confortos vaticanos? Relutando em fazer coro com os articulistas da mídia brasileira, Stéphanie Le Bars publicou artigo em Le Monde (23/7/2013), intitulado “Os primeiros meses do papa Francisco: mudança de estilo ou verdadeira revolução?” A autora não tem dúvidas: ele é revolucionário diante de numerosas práticas vaticanas, mas sua doutrina geral é a mesma de seus antecessores, em matéria de moral sexual, celibato dos padres, do papel da mulher, de ética e bioética. Ela lembra que o papa é favorável a um “estatuto jurídico do embrião”, como certos parlamentares pretendem transformar em lei no Brasil. O artigo transcreve depoimento do cardeal alemão Walter Kasper, que disse ter Francisco mudado a maneira de ser papa, mas não mudará os conteúdos. No entanto, a articulista argumentou que essa  mudança de estilo é ameaçadora para muita gente na burocracia vaticana, de modo que uma oposição interna já se mobiliza para atrapalhar suas atividades. É justamente para se defender dela que se diz que mais ou tanto quanto o reforço do catolicismo no Brasil, o papa voltou para Roma politicamente fortalecido pelo apoio ostensivo de milhões de pessoas. Fazendo seu próprio balanço, Bruno Bimbi foi taxativo: Francisco é Bargoglio. (O Globo, 3/8/2013, Caderno Prosa e Verso, p. 4) Esse militante pelo casamento homoafetivo na Argentina lembra a trajetória política do cardeal Bargoglio contra aquela conquista social. “Ele não é um intelectual alemão, mas um político argentino, acostumado a almoçar com políticos e jantar com jornalistas e a fazer muito lobby, embora tenha condenado o fantasioso ‘lobby gay’.” (Idem, ibidem) Antes de entrar para a Companhia de Jesus, Bargoglio participou da Guarda de Ferro, organização de direita do peronismo. Por essa razão e por seus gestos populistas, ele tem sido apontado, na Argentina, como o primeiro papa peronista.

            Desconversar diante dos temas mais candentes que opõem o catolicismo e as políticas públicas, de um lado; de outro, pedir para se “pôr mais água no feijão” e baixar os vidros do papa-móvel terão sido sinais de um bem sucedido esforço do populismo sul-americano na salvação de uma instituição religiosa em crise? Se esse estilo se mantiver e se consolidar, a laicidade do Estado terá de se haver com um adversário novo: ao invés de sisudos cardeais ou raivosos pastores, o Estado será interpelado também por eloquentes líderes religiosos de massa ao estilo do que a política brasileira conhece em todos os quadrantes: de um Jânio Quadro à direita até um Leonel Brizola à esquerda.

13 setembro 2013

Manifestações públicas, rostos cobertos e responsabilidades políticas

A Lei n. 6.528/2013 do estado do Rio de Janeiro, votada em 11.9.2013, que proíbe o uso de máscaras e adereços que impeçam a identificação visual dos indivíduos em manifestações públicas, devido à sua importância política, seja em termos teóricos, seja devido à sua repercussão nacional, conduziu-me a algumas reflexões, que exponho abaixo.

Estamos em um regime de liberdades e em uma república. Quem se manifesta tem que se responsabilizar pelo que se manifesta. Assim como a manifestação é pública, a responsabilização tem que ser pública. Tapar o rosto é impedir que se identifique o manifestante, ou seja, é permitir uma espécie de anonimato na manifestação política.

Assim como se exigiu - corretamente - que os parlamentares do Congresso Nacional tenham seus votos abertos, deve-se exigir que os manifestantes tenham seus rostos abertos. Na verdade, não faz sentido e não é aceitável que a sociedade que se representa a si mesma por meio de manifestações de rua queira responsabilizar-se menos por suas opiniões que os seus representantes, que ela (a sociedade) exigiu que se responsabilizassem por suas opiniões.

Não me parece justificável, de maneira alguma, o suposto privilégio de os manifestantes populares poderem esconder o rosto. Como comentei há pouco, isso é uma forma de anonimato, que é politicamente imoral em um regime de liberdades, mas, de qualquer maneira, torna-se ainda menos defensável e ainda mais incoerente agora que se obteve, após mais de 120 anos de República no Brasil, a publicidade dos votos dos parlamentares.

Não estamos nem em regime de exceção nem em regime de força: vivemos em uma "democracia". Os discursos contrários ao capitalismo, de inspiração marxista, servem apenas como cortina de fumaça para a necessidade da publicidade das ações políticas, ao sugerirem uma eterna perseguição. A perseguição, aliás, existe para aqueles que se negam a identificar-se e para aqueles que se valem precisamente do anonimato para a depredação e para o vandalismo: em outras palavras, ocorre perseguição para quem é contra a publicação e o pacifismo das manifestações, dois dos princípios basilares da política republicana.

Mesmo que, em tese, estivéssemos sob um regime de força, seria um regime de força bastante curioso, pois é um regime que tolera manifestações maciças e alastradas por todo o país, que paralisam vias públicas durante várias horas e ocupam órgãos públicos durante semanas. 

Mas em regimes de força a importância da identificação, isto é, da responsabilização é ainda maior: o sacrifício pessoal inspira e é capaz de mobilizar muito mais as mudanças sociais. As manifestações de massa contrárias ao regime militar de 1964 eram todas feitas com o rosto descoberto e não se pode esquecer o jovem chinês que em 1989 desafiou, também de rosto descoberto, os tanques na Praça da Paz Celestial.

12 setembro 2013

História da laicidade no Brasil - apontamentos esquemáticos

No dia 12 de setembro de 2013 participei de uma mesa-redonda na UFPR, promovida pela "Marcha pela Laicidade do Estado"; na ocasião tratei da história da laicidade do Brasil.

Para colaborar com os debates e as pesquisas sobre o tema - em particular porque há poucos debates, poucas pesquisas e porque não há nenhum texto sobre a história da laicidade em nosso país -, transcrevo abaixo as modestas notas que elaborei como roteiro para minha exposição.

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História da laicidade no Brasil - apontamentos esquemáticos


(1) Impropriedade do título da palestra: “história da laicidade” é exagerado; são mais apontamentos sobre a história da laicidade

(2) Uma definição preliminar: a laicidade consiste em um Estado não seguir nenhuma doutrina oficial, no sentido de que seus cidadãos não precisam perfilhar nenhuma doutrina a fim de terem o status político-jurídico de cidadãos; por outro lado, nenhuma igreja ou doutrina é beneficiada pelo Estado

(3) Quatro pólos sócio-políticos para análise e estudo:
- Estado
- Igreja Católica
- Sociedade civil
- Religiões acatólicas
- Por que esses quatro pólos? Porque a laicidade não ocorre no vazio: é necessário que a sociedade e os políticos apóiem-na e defendam-na
- À medida que (i) há mais atores (em termos numéricos) e (ii) há mais atores dispostos a defender a laicidade (como prática política e social), ela tem mais e mais legitimidade e, portanto, ela vige mais, isto é, ela pode ser efetivamente invocada como princípio ordenador da pólis
- É necessário notar que muito da história da laicidade no Brasil passa pela história das relações entre a ICAR e o Estado, seja temporalmente, seja politicamente

(4) Em termos básicos, a laicidade no Brasil tem duas grandes fases: antes e depois da Proclamação da República (15 de novembro de 1889), ou do Decreto n. 119-A (7 de janeiro de 1890), ou da Constituição de 1891 (Art. 11, inc. 1º)
- Antes de 1889-1891: catolicismo como religião de Estado (no regime do padroado)
- Após 1889-1891: laicidade no Brasil, com enormes variações ao longo do tempo

(5) Antes de 1889-1891: dois momentos: Colônia (1500-1822) e Império (1822-1889)
- Regime do padroado: monarquia bragantina como protetora da Igreja por determinação papal; Igreja como integrante da estrutura estatal, ou seja, padres como servidores públicos
- Colônia: Igreja como agente da colonização
- Império: religião católica como religião oficial do Estado; liberdade religiosa desde que privada, com cultos sem forma exterior de templos, sem críticas à religião oficial e sem ofensa à moral e aos bons costumes
- Igreja como controladora das instituições de ensino, dos registros de nascimento (batismo), de morte, de casamento, dos cemitérios; controle do calendário de festividades; consagração do regime
- Imigração luterana e calvinista no Sul (RS, SC, RJ), de falantes de alemão
- Cerceamento da Igreja pelo Estado com base no regalismo ao longo de todo o Império (inclusive durante a regência una do Padre Feijó)
- No II Império: apoio do Imperador a vários protestantismos (vistos como promotores do progresso); difusão do Positivismo; maçonaria
- 1873-1875: questão religiosa: ultramontanismo versus regalismo e maçonaria
- Ultramontanismo: tendência reacionária da ICAR existente desde o fim do século XVIII, consubstanciada na encíclica Quanta Cura e seu anexo, a Syllabus (1864)
- Existência do catolicismo popular e do forte sincretismo religioso

(6) O período 1889-1891:
- A separação entre Igreja e Estado era uma das maiores preocupações do movimento republicano
- Em 7 de janeiro de 1890 expediu-se o Decreto 119-A, que realizou a separação entre Igreja e Estado
- A Constituição de 1891 reafirmou o Decreto 119-A, além de instituir o casamento civil e prever os cemitérios leigos
- A laicidade era respeitada como valor e como princípio, especialmente pelos republicanos históricos, fosse no Rio de Janeiro, fosse nos estados; isso não quer dizer que não houvesse desrespeitos práticos a ela
- Exemplo de respeito à laicidade: em 1925 Sebastião Leme sugeriu a Artur Bernardes, por ocasião da reforma constitucional, que se incluísse na constituição que o catolicismo era a “religião da população brasileira”

(7) Após 1889-1891: quatro fases: neocristandade e Era Vargas (1916-1945); república populista (1946-1964); regime militar (1964-1985); Constituição de 1988 em diante

(7.1) Neocristandade e Era Vargas:
- O período entre 1891 e 1916 foi usado para a reorganização burocrático-administrativa e financeira da ICAR no Brasil, com a estadualização das dioceses, a aproximação com as elites estaduais, o oferecimento de serviços pedagógicos às elites
- Em 1931, quando da inauguração do Cristo Redentor, já Cardeal, Sebastião Leme disse a Getúlio Vargas e a Osvaldo Aranha: “ou o Estado reconhece o deus do povo ou o povo não reconhecerá o Estado”
- Ativismo político: Liga Eleitoral Católica, Ação Católica Brasileira, Círculos Operários
- Na Constituição de 1934 a palavra “deus” aparece no “Prefácio”, prevê-se o ensino religioso facultativo no horário escolar e prevê-se a colaboração Igreja-Estado no “interesse público”
- com exceção da palavra “deus” (que não aparecerá em 1937), todas as demais previsões reaparecerão nas outras constituições
- Desenvolve-se um forte processo de recatolicização das elites; afirma-se o mito da “nação cristã”
- Criminalização dos cultos afrobrasileiros e do espiritismo; intolerância aos protestantismos

(7.2) República populista:
- Constituição de 1946: reafirmação da liberdade religiosa e da laicidade do Estado, ressalvada a colaboração em nome do “interesse público”; aulas de religião no horário regular; capelões
- Enfraquecimento da ICAR, com perda de força do projeto elitista da neocristandade
- aumento da concorrência dos protestantismos e dos marxismos
- aumento do pluralismo religioso e ideológico na sociedade
- Persistência do mito da “nação cristã”: “Brasil como país cristão contra o comunismo ateu”
- Politização dos católicos, retraimento dos protestantes
- Secularização e esquerdização da intelectualidade
- 1952: criação da CNBB, como órgão dos católicos “progressistas”
- 1961-1965: Concílio Vaticano II à em tese, uma reversão do viés ultramontano das bulas Quanta Cura e Syllabus (1865)
- ICAR como “terceira via” à anticomunista, em todo caso

(7.3) Regime militar:
- Apoio inicial da ICAR ao regime: com base no anticomunismo, Paulo Evaristo Arns ofereceu apoio espiritual a Olímpio Mourão Filho em 31.3.1964
- Em seguida, distanciou-se do regime e passou a condenar as violências e as torturas, tornando-se forte crítico do regime à como um todo a ICAR tornou-se opositora do regime
- Como alternativa de legitimação, os militares procuraram apoio dos protestantes, que, a partir da década de 1970, passaram a receber benefícios do Estado e a serem prestigiados por ele à politização dos protestantes, em particular dos evangélicos
- Apoio da ICAR à transição democrática à afastamento em relação ao Estado
- Em 1986: inscrição nas cédulas “deus seja louvado”
- Em 1989: apoio da ICAR a Lula; rejeição dos evangélicos a Lula e apoio maciço a Collor

(7.4) Da Constituição de 1988 em diante:
- Situação por assim dizer paradoxal: por um lado, fortalecimento da sociedade civil, em um sentido que é secular e laico; por outro lado, uma “confessionalização” da política, que vem desde os anos 1980 (ou melhor, desde sempre)
- Deve-se notar, em todo caso, que parte da sociedade civil organizada surgida desde os anos 1980 foi apoiada pela ICAR, o que impõe sérios obstáculos à laicidade
- Constituição de 1988: reafirmação da liberdade religiosa e da laicidade do Estado, ressalvada a colaboração em nome do “interesse público”; aulas de religião no horário regular; capelões
- LDB de 1996: aula de ensino religioso sem gastos públicos; lei de 1997: aula pago pelo Estado
- Pluralismo social fortíssimo à ativismo social muito marcado à defesa da liberdade de pensamento
- Afirmação dos cultos afrobrasileiros; crescimento do espiritismo; crescimento do ateísmo e do agnosticismo; crescimento dos evangélicos
- Plataforma política dos evangélicos: agressiva e prioritariamente religiosa, especialmente em alguns estados, como no Rio de Janeiro
- Se a ICAR não fala mais em “nação cristã” (em seu benefício), ela realiza freqüentes alianças com os evangélicos em temas de seu interesse
- “Confessionalização” das eleições: “crente vota em crente”; “vote no evangelho”; “vote para Jesus”; contra o aborto etc. etc.
- Ambigüidade de Lula: eleito pelo PT (partido do catolicismo “progressista”), desde 1992 prestigia a Igreja Universal do Reino de Deus e seu dono
- 2008: Concordata entre Brasil e Vaticano
- busca de uma trava externa para a política interna
- reafirmando privilégios, criando novos privilégios, garantindo o ensino da religião católica nas escolas públicas, o pagamento do laudêmio, a existência de capelanias
- foi aprovada no Congresso Nacional em troca de uma “Lei Geral das Religiões” (versão estendida e evangélica da Concordata), mas que até o momento não se realizou
- Eleições presidenciais de 2010: a Concordata não foi discutida mas temas “religiosos” invadiram o debate do segundo turno (entre Dilma e Serra), como aborto, kit gay e casamento gay
- 2012-2013: PEC-99 e Estatuto do Nascituro à exemplos de coalizões entre católicos e evangélicos (“bancada do crucifixo”), que vão contra a laicidade

Constituições que se referem a deus: 1824 (“santíssima trindade”), 1934, 1946, 1967, 1988
Constituições que não se referem a deus: 1891, 1937

Referências bibliográficas mínimas
BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. CASA CIVIL. SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. s/d-a. Constituições anteriores. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/constituicoes-anteriores-1. Acesso em: 11.set.2013.
BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. CASA CIVIL. SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. s/d-a. Constituições da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 11.set.2013.
CUNHA, L. A. 2007. Sintonia oscilante: religião, moral e civismo no Brasil – 1931-1997. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 131, p. 285-302, ago.
CUNHA, L. A. 2009. A educação na Concordata Brasil-Vaticano. Educação e Sociedade, Campinas, v. 30, n. 106, p. 263-280, abr.
DELLA CAVA, R. 1975. Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete monografias recentes sobre o catolicismo brasileiro, 1916/1964. Estudos Cebrap, n. 12, p. 5-52, abr.-jun. Disponível em: http://www.cebrap.org.br/v1/upload/biblioteca_virtual/igreja_e_estado_no_brasil.pdf. Acesso em: 11.set.2013.
LACERDA, G. B. 2008. Problemas do Estado laico brasileiro: a Universidade (Confessional) Federal do Paraná. Disponível em: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com.br/2008/10/problemas-do-estado-laico-brasileiro.html. Acesso em: 11.set.2013.
LACERDA, G. B. 2009. Laicidade(s) e república(s): as liberdades face à religião e ao Estado. Artigo apresentado no 33º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, ocorrido em Caxambu (Minas Gerais). Digit. Disponível em: http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=2204&Itemid=229. Acesso em: 11.set.2013.
MARIANO, R. 2002. Secularização do Estado, liberdades e pluralismo religioso. Disponível em: http://www.naya.org.ar/congreso2002/ponencias/ricardo_mariano.htm. Acesso em: 11.9.2013.
MICELI, S. 2011. A elite eclesiástica brasileira (1890-1930). 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.

SCAMPINI, J. 1978. A liberdade religiosa nas constituições brasileiras. Petrópolis: Vozes.

06 setembro 2013

No aniversário de morte de Augusto Comte


No dia 5 de setembro comemora-se o aniversário de falecimento de Augusto Comte (1798-1857), o grande fundador do Positivismo e da Religião da Humanidade. Isso exige pelo menos duas ordens de considerações: sobre comemorar a morte e sobre a Religião da Humanidade.
Fará sentido comemorar a morte? Por certo que não celebramos o fato de alguém morrer; o desaparecimento de uma pessoa costuma ser motivo de profunda tristeza, tanto para aqueles que o cercam quanto aqueles que o admiram e respeitam. Mas a morte faz parte do ciclo da vida; embora não saibamos disso ao nascer, à medida que crescemos e amadurecemos, vamos descobrindo que nossa vida é finita e que importa torná-la significativa; na verdade, bem vistas as coisas, muito do amadurecimento consiste nessa lenta constatação e resignação.
Ao mesmo tempo, não vivemos sozinhos: nem para nós, nem por nós; vivemos em sociedade e apenas em sociedade – em família, entre amigos, em clubes, em escolas, entre livros – é que podemos ser felizes. Se amadurecer significa, em parte, resignar-se que um dia morreremos (ou morrerei), em parte significa também perceber que a felicidade consiste em viver entre e para os demais, isto é, sendo altruísta, cooperando, melhorando as condições de vida da sociedade, desenvolvendo novas tecnologias, sugerindo novas idéias, participando da vida em sociedade – ou, simplesmente, realizando o trabalho humilde do cotidiano.
Assim como vivemos e somos felizes entre e para os demais, nossa vida permanece entre os demais: quando morremos, a memória de nossas ações perdura; com freqüência, podemos dizer que até aumenta, pois as imperfeições dos nossos defeitos vão esvanecendo-se e nossas qualidades vão destacando-se.
Nesses termos, não comemoramos a morte: comemoramos uma vida plena de sentido, dedicada aos demais; celebramos a memória de alguém e, com isso, embora objetivamente esse alguém não exista mais, subjetivamente ele – ou ela – encontra-se entre nós.
Augusto Comte foi o fundador da Religião da Humanidade, isto é, do grande sistema que afirma o ser humano, o altruísmo e a ação social, política, industrial e ambiental esclarecida e cuidadosa. A religião para Comte consiste nas diversas formas que o ser humano elabora, ao longo do tempo, para entender e regular sua realidade cósmica, social e individual; dessa forma, como o ser humano em sua totalidade já foi um dia fetichista e muitas populações ainda são monoteístas, ele tende cada vez mais a ser plenamente positivo, ou seja, a reconhecer apenas as verdades relativas, a recusar o absoluto, a afirmar apenas o humano, a celebrar a liberdade, a buscar a paz e o amor.
É por esses motivos – e muitos outros mais – que neste dia 5 de setembro faço esta pequena mas sincera homenagem a esse grande homem, Augusto Comte.