Para colaborar com os debates e as pesquisas sobre o tema - em particular porque há poucos debates, poucas pesquisas e porque não há nenhum texto sobre a história da laicidade em nosso país -, transcrevo abaixo as modestas notas que elaborei como roteiro para minha exposição.
* * *
História da laicidade no Brasil - apontamentos esquemáticos
(1)
Impropriedade do título da palestra: “história da laicidade” é exagerado; são
mais apontamentos sobre a história da
laicidade
(2) Uma
definição preliminar: a laicidade consiste em um Estado não seguir nenhuma
doutrina oficial, no sentido de que seus cidadãos não precisam perfilhar
nenhuma doutrina a fim de terem o status
político-jurídico de cidadãos; por outro lado, nenhuma igreja ou doutrina é
beneficiada pelo Estado
(3) Quatro
pólos sócio-políticos para análise e estudo:
- Estado
- Igreja Católica
- Sociedade civil
- Religiões acatólicas
- Por que
esses quatro pólos? Porque a laicidade não ocorre no vazio: é necessário que a
sociedade e os políticos apóiem-na e defendam-na
- À medida
que (i) há mais atores (em termos numéricos) e (ii) há mais atores dispostos a
defender a laicidade (como prática política e social), ela tem mais e mais
legitimidade e, portanto, ela vige mais, isto é, ela pode ser efetivamente
invocada como princípio ordenador da pólis
- É
necessário notar que muito da história da laicidade no Brasil passa pela
história das relações entre a ICAR e o Estado, seja temporalmente, seja
politicamente
(4) Em termos
básicos, a laicidade no Brasil tem duas grandes fases: antes e depois da
Proclamação da República (15 de novembro de 1889), ou do Decreto n. 119-A (7 de
janeiro de 1890), ou da Constituição de 1891 (Art. 11, inc. 1º)
- Antes de
1889-1891: catolicismo como religião de Estado (no regime do padroado)
- Após
1889-1891: laicidade no Brasil, com enormes variações ao longo do tempo
(5) Antes de
1889-1891: dois momentos: Colônia (1500-1822) e Império (1822-1889)
- Regime do
padroado: monarquia bragantina como protetora da Igreja por determinação papal;
Igreja como integrante da estrutura estatal, ou seja, padres como servidores
públicos
- Colônia: Igreja
como agente da colonização
- Império:
religião católica como religião oficial do Estado; liberdade religiosa desde
que privada, com cultos sem forma exterior de templos, sem críticas à religião
oficial e sem ofensa à moral e aos bons costumes
- Igreja como
controladora das instituições de ensino, dos registros de nascimento (batismo),
de morte, de casamento, dos cemitérios; controle do calendário de festividades;
consagração do regime
- Imigração luterana
e calvinista no Sul (RS, SC, RJ), de falantes de alemão
- Cerceamento
da Igreja pelo Estado com base no regalismo ao longo de todo o Império
(inclusive durante a regência una do Padre
Feijó)
- No II
Império: apoio do Imperador a vários protestantismos (vistos como promotores do
progresso); difusão do Positivismo; maçonaria
- 1873-1875:
questão religiosa: ultramontanismo versus
regalismo e maçonaria
-
Ultramontanismo: tendência reacionária da ICAR existente desde o fim do século
XVIII, consubstanciada na encíclica Quanta
Cura e seu anexo, a Syllabus
(1864)
- Existência
do catolicismo popular e do forte sincretismo religioso
(6) O período
1889-1891:
- A separação
entre Igreja e Estado era uma das maiores preocupações do movimento republicano
- Em 7 de
janeiro de 1890 expediu-se o Decreto 119-A, que realizou a separação entre
Igreja e Estado
- A
Constituição de 1891 reafirmou o Decreto 119-A, além de instituir o casamento
civil e prever os cemitérios leigos
- A laicidade
era respeitada como valor e como princípio, especialmente pelos republicanos
históricos, fosse no Rio de Janeiro, fosse nos estados; isso não quer dizer que
não houvesse desrespeitos práticos a ela
- Exemplo de respeito à laicidade: em
1925 Sebastião Leme sugeriu a Artur Bernardes, por ocasião da reforma
constitucional, que se incluísse na constituição que o catolicismo era a “religião
da população brasileira”
(7) Após
1889-1891: quatro fases: neocristandade e Era Vargas (1916-1945); república
populista (1946-1964); regime militar (1964-1985); Constituição de 1988 em
diante
(7.1)
Neocristandade e Era Vargas:
- O período
entre 1891 e 1916 foi usado para a reorganização burocrático-administrativa e
financeira da ICAR no Brasil, com a estadualização das dioceses, a aproximação
com as elites estaduais, o oferecimento de serviços pedagógicos às elites
- Em 1931,
quando da inauguração do Cristo Redentor, já Cardeal, Sebastião Leme disse a
Getúlio Vargas e a Osvaldo Aranha: “ou o Estado reconhece o deus do povo ou o
povo não reconhecerá o Estado”
- Ativismo
político: Liga Eleitoral Católica, Ação Católica Brasileira, Círculos Operários
- Na
Constituição de 1934 a palavra “deus” aparece no “Prefácio”, prevê-se o ensino
religioso facultativo no horário escolar e prevê-se a colaboração Igreja-Estado
no “interesse público”
- com exceção da palavra “deus” (que não
aparecerá em 1937), todas as demais previsões reaparecerão nas outras
constituições
-
Desenvolve-se um forte processo de recatolicização das elites; afirma-se o mito
da “nação cristã”
-
Criminalização dos cultos afrobrasileiros e do espiritismo; intolerância aos
protestantismos
(7.2)
República populista:
-
Constituição de 1946: reafirmação da liberdade religiosa e da laicidade do
Estado, ressalvada a colaboração em nome do “interesse público”; aulas de
religião no horário regular; capelões
-
Enfraquecimento da ICAR, com perda de força do projeto elitista da
neocristandade
- aumento da concorrência dos
protestantismos e dos marxismos
- aumento do pluralismo religioso e
ideológico na sociedade
-
Persistência do mito da “nação cristã”: “Brasil como país cristão contra o
comunismo ateu”
- Politização
dos católicos, retraimento dos protestantes
-
Secularização e esquerdização da intelectualidade
- 1952:
criação da CNBB, como órgão dos católicos “progressistas”
- 1961-1965:
Concílio Vaticano II à em tese, uma
reversão do viés ultramontano das bulas Quanta
Cura e Syllabus (1865)
- ICAR como “terceira
via” à
anticomunista, em todo caso
(7.3) Regime
militar:
- Apoio
inicial da ICAR ao regime: com base no anticomunismo, Paulo Evaristo Arns
ofereceu apoio espiritual a Olímpio Mourão Filho em 31.3.1964
- Em seguida,
distanciou-se do regime e passou a condenar as violências e as torturas,
tornando-se forte crítico do regime à como um todo a ICAR
tornou-se opositora do regime
- Como
alternativa de legitimação, os militares procuraram apoio dos protestantes,
que, a partir da década de 1970, passaram a receber benefícios do Estado e a
serem prestigiados por ele à politização dos protestantes, em particular dos
evangélicos
- Apoio da
ICAR à transição democrática à afastamento em relação ao Estado
- Em 1986:
inscrição nas cédulas “deus seja louvado”
- Em 1989:
apoio da ICAR a Lula; rejeição dos evangélicos a Lula e apoio maciço a Collor
(7.4) Da
Constituição de 1988 em diante:
- Situação
por assim dizer paradoxal: por um lado, fortalecimento da sociedade civil, em
um sentido que é secular e laico; por outro lado, uma “confessionalização” da
política, que vem desde os anos 1980 (ou melhor, desde sempre)
- Deve-se notar, em todo caso, que parte
da sociedade civil organizada surgida desde os anos 1980 foi apoiada pela ICAR,
o que impõe sérios obstáculos à laicidade
-
Constituição de 1988: reafirmação da liberdade religiosa e da laicidade do
Estado, ressalvada a colaboração em nome do “interesse público”; aulas de
religião no horário regular; capelões
- LDB de
1996: aula de ensino religioso sem gastos públicos; lei de 1997: aula pago pelo
Estado
- Pluralismo
social fortíssimo à ativismo social muito marcado à
defesa da liberdade de pensamento
- Afirmação
dos cultos afrobrasileiros; crescimento do espiritismo; crescimento do ateísmo
e do agnosticismo; crescimento dos evangélicos
- Plataforma
política dos evangélicos: agressiva e prioritariamente religiosa, especialmente
em alguns estados, como no Rio de Janeiro
- Se a ICAR
não fala mais em “nação cristã” (em seu benefício), ela realiza freqüentes
alianças com os evangélicos em temas de seu interesse
- “Confessionalização”
das eleições: “crente vota em crente”; “vote no evangelho”; “vote para Jesus”;
contra o aborto etc. etc.
- Ambigüidade
de Lula: eleito pelo PT (partido do catolicismo “progressista”), desde 1992
prestigia a Igreja Universal do Reino de Deus e seu dono
- 2008:
Concordata entre Brasil e Vaticano
- busca de uma trava externa para a
política interna
- reafirmando privilégios, criando novos
privilégios, garantindo o ensino da religião católica nas escolas públicas, o
pagamento do laudêmio, a existência de capelanias
- foi aprovada no Congresso Nacional em
troca de uma “Lei Geral das Religiões” (versão estendida e evangélica da
Concordata), mas que até o momento não se realizou
- Eleições
presidenciais de 2010: a Concordata não foi discutida mas temas “religiosos”
invadiram o debate do segundo turno (entre Dilma e Serra), como aborto, kit gay e casamento gay
- 2012-2013:
PEC-99 e Estatuto do Nascituro à exemplos de coalizões entre católicos e evangélicos
(“bancada do crucifixo”), que vão contra a laicidade
Constituições
que se referem a deus: 1824 (“santíssima trindade”), 1934, 1946, 1967, 1988
Constituições
que não se referem a deus: 1891, 1937
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Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
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LACERDA, G. B. 2009. Laicidade(s)
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