No dia 24 de Shakespeare de 169 (3.10.223) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua "Oitava conferência", dedicada à filosofia das ciências superiores (Sociologia e, ainda mais, a Moral).
No sermão abordamos o método subjetivo.
A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/3ABoP) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/OlSVZ). O sermão começa em 56' 30".
Abaixo reproduzimos as anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão.
* * *
Sobre o método subjetivo
-
A idéia do método subjetivo e sua aplicação
sistemática é uma das mais belas, impressionantes e importantes elaborações de Augusto Comte
o O
método subjetivo estava presente, mesmo que implicitamente, desde as primeiras
elaborações de nosso mestre, mas foi apenas com a criação da Religião da Humanidade
que foi possível elaborá-lo de maneira clara e consciente
o A
vinculação do método subjetivo com a Religião da Humanidade já sugere muitas de
suas características
-
A presente exposição terá um aspecto geral mais
intelectual que qualquer outra coisa; entretanto, é importante ter em mente que,
ao tratar-se do método subjetivo, a origem afetiva de todos os pensamentos deve
estar bem clara e subjacente
-
Para apresentar de maneira simples e direta,
podemos dizer que o método subjetivo consiste na afirmação da perspectiva
humana sobre todas as concepções e reflexões humanas; em outras palavras, ele
consiste na perspectiva subjetivista
o Esse
subjetivismo também pode ser entendido como a afirmação de um renovado antropocentrismo
o Além
disso, no caso específico do método subjetivo, tal subjetivismo deve ser
entendido como sendo social e não individual, a par da origem sociológica da
noção de Humanidade e, daí, da moral positiva
§ Caso
esse subjetivismo tivesse um caráter estritamente individual, recairíamos nos
mesmos problemas da moral e da inteligência teológicas, que são
individualistas, solipsistas e não percebem plenamente o caráter social do ser
humano
§ Embora
a subjetividade do método subjetivo tenha um caráter social, o método subjetivo
não desconsidera nem despreza a subjetividade individual
§ A
subjetividade individual é incorporada ao método subjetivo por meio das
propriedades específicas da ciência da Moral:
·
a Moral estuda diretamente os sentimentos
humanos, em particular nos indivíduos
·
a Moral é a ciência que sintetiza todas as
ciências anteriores, conforme eles manifestam-se nos indivíduos
·
a Moral é a ciência que realiza diretamente a
transição para as artes práticas, começando pela educação e pelo aconselhamento
individuais
-
O método subjetivo pode e deve ser entendido em
relação de complementaridade com o método objetivo
o Se
o método subjetivo consiste na aplicação dos parâmetros humanos a todas as
concepções, reflexões e atividades humanas, o método objetivo consiste no
entendimento da realidade a partir da própria realidade, isto é, a partir de
uma perspectiva objetiva
o O
método subjetivo é plenamente universal em sua aplicação, na medida em que se
refere a tudo o que é humano: essa universalidade (ou generalidade) é, por
definição, subjetiva; já o método objetivo é universalizável em termos
objetivos, mas essa universalidade depende dos fenômenos considerados
o Em
outras palavras, os métodos subjetivo e objetivo são complementares em sentidos
inversos, considerando os princípios de toda classificação: generalidade
crescente ou decrescente, objetiva ou subjetiva; particularidade decrescente ou
crescente, subjetiva ou objetiva
o Novamente:
enquanto por definição o método subjetivo é plenamente universal e
universalizável, o método objetivo varia em sua generalidade de acordo com o
fenômeno em questão
§ A
constituição do método objetivo segue a classificação das ciências, do mais
objetivamente geral e simples para o objetivamente mais específico e mais
complicado: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia,
Moral
§ Na
escala das ciências, a única ciência que é objetivamente plenamente universalizável
é a Matemática (na medida em que ela estuda os números, a extensão e o
movimento dos corpos); a partir dela, as demais ciências são mais específicas
-
Todas as concepções humanas sujeitam-se e devem
sujeitar-se ao método subjetivo (o que inclui as ciências); entretanto, para
que ele possa ter a sua adequada primazia, foi necessário antes corrigi-lo, por
meio do desenvolvimento do método objetivo e de sua aplicação à realidade
humana
o A
necessária correção do método subjetivo deve-se a diversos motivos conexos:
§ o
método subjetivo inicialmente é absoluto (e não relativo);
§ ele
inicialmente se pretende e afirma-se objetivo (embora seja sempre subjetivo);
§ ele
inicialmente se baseia em concepções individualistas (em vez de concepções
sociais);
§ ele
inicialmente pretende que o mundo é total e infinitamente plástico e obediente
às vontades caprichosas dos seres humanos e/ou de tipos semelhantes ou
inspirados no ser humano (em vez de obedecer a leis naturais)
o O
método subjetivo é espontâneo, na medida em que se trata da aplicação das
perspectivas humanas para tudo, incluindo as concepções sobre a realidade; essa
espontaneidade baseia-se nos sentimentos e na percepção imediata da existência
humana
o O
método objetivo também é espontâneo, mas sua espontaneidade é menor e mais
fraca, na medida em que ela baseia-se na realidade prática e exige a
intermediação da inteligência
o Há
assim um descompasso entre os dois métodos, em que o subjetivo surge antes do
objetivo e este demora mais para constituir-se
o Além
disso, considerando a lei dos três estados, a subjetividade inicial é teológica
(rigorosamente, ela começa fetíchica, mas depois se torna teológica)
§ Daí
a necessidade de correção do método subjetivo pelo método objetivo
§ Daí
a importância histórica e filosófica das ciências
·
Importa insistir e enfatizar: a longo prazo, a
importância das ciências consiste no esclarecimento e na correção do método
subjetivo; em comparação com isso, as outras aplicações da ciência (satisfação
da curiosidade, estabelecimento de bases para a tecnologia) são secundárias
o À
medida que o método objetivo avança sobre o conhecimento da realidade, vai
descobrindo como a realidade funciona e de que maneira o ser humano atua nessa
realidade; descobre também que o ser humano não é onipotente, não é onisciente;
que suas vontades têm que se submeter a relações constantes e invariáveis que
independem de sua vontade (é o dogma das leis naturais) etc.
o A
longa demora na constituição do método objetivo e sua igualmente demorada
oposição ao método subjetivo estimularam muitos dos vícios próprios ao método
objetivo:
§ seu
caráter dispersivo;
§ seu
extremado intelectualismo (em contraposição à afetividade e mesmo à atividade
prática);
§ seu
caráter analítico e detalhista (em contraposição às visões sintéticas e de
conjunto);
§ as
inúmeras derivas materialistas/reducionistas;
§ a
busca de uma síntese objetiva
§ desenvolvimento
da impressão de que a ciência é sempre e naturalmente oposta à filosofia e ao método
subjetivo
o Os
inúmeros e sérios vícios próprios ao método objetivo só podem ser corrigidos
por meio da aplicação do método subjetivo
§ Mas
como a renovação do método subjetivo depende do desenvolvimento do método
objetivo, desenvolve-se ao longo do tempo uma situação difícil, um verdadeiro
impasse
§ Na
medida em que o método subjetivo durante muito tempo é teológico, a oposição
entre ele e o método objetivo assume a forma da oposição (metafísica) entre a “fé
e razão”
§ A
única solução possível para esse impasse é por meio da correção e da renovação
do método subjetivo a partir de elementos do método objetivo, seguida da correção
do método objetivo pelo método subjetivo: esse duplo movimento só é possível na
síntese positiva
o Quando
o método objetivo alcança as ciências superiores, muitos dos principais
elementos renovadores do método objetivo já estão elaborados em termos gerais –
em particular o dogma das leis naturais
–, sendo possível então que o método subjetivo seja diretamente reelaborado e que
ele possa, afinal, afirmar seu império sobre toda a realidade humana
o O
resultado geral da correção do método subjetivo pelo método objetivo é, após a afirmação da subjetividade humana,
também a afirmação do relativismo de
todos os nossos conhecimentos
§ A
visão de conjunto também se afirma
quando o método objetivo adentra as ciências superiores
o A
partir do subjetivismo relativista, o método subjetivo torna-se plenamente apto
a realizar seu império sobre o mundo (incluindo a necessária correção dos
vícios próprios ao método objetivo)
-
Convém retomarmos uma afirmação que fizemos no
início desta exposição: o método subjetivo é a afirmação da perspectiva humana
sobre toda a realidade humana; ou seja, é um renovado antropocentrismo
o Muitos
pensadores consideram que todo antropocentrismo é sempre e necessariamente
particularista e excludente, especialmente sobre os seres vivos e o meio
ambiente
o À
parte o oximoro implícito em “antropocentrismo excludente”, o fato é que o
antropocentrismo próprio ao método subjetivo da Religião da Humanidade não nos autoriza a considerar que o ser
humano pode fazer o que quiser, em particular em termos dos seres vivos e do
meio ambiente e, ao contrário, que de modo geral temos que ter uma postura de cuidado
e respeito para com eles
o O
respeito positivista ao meio ambiente baseia-se tanto na concepção ampliada de
Humanidade (que inclui os animais domésticos) quanto os sentimentos afetivos e
o respeito para com os seres vivos em geral
§ O
compartilhamento da mesma estrutura cerebral entre seres humanos, animais
superiores e aves é outro motivo para o respeito positivista para com os seres
vivos
§ Além
disso, a partir de sua renovação com elementos do método objetivo, o método
subjetivo reconhece a subordinação do ser humano ao meio ambiente e, portanto,
a necessidade de cuidar das condições ecológicas, do equilíbrio dos ciclos
vitais etc.
o Considerando
o método subjetivo em relação às três fases da carreira de Augusto Comte,
podemos sugerir o seguinte:
§ Sistema de filosofia positiva (1830-1842):
consolidação do método objetivo nas ciências inferiores, estabelecimento do método
objetivo nas ciências superiores, em particular na Sociologia e em rudimentos
da Moral; elaboração implícita do método subjetivo em bases positivas
§ Sistema de política positiva (1851-1854):
elaboração direta do método subjetivo em bases positivas, com a elaboração da
Religião da Humanidade
§ Síntese subjetiva (1856): desenvolvimento,
aprofundamento e aplicação do método subjetivo ao conjunto da realidade humana
-
Como observamos no início, o que expusemos até
agora sobre o método subjetivo tem um caráter mais intelectual que qualquer
outra coisa; entretanto, o reconhecimento de que o ser humano é acima de tudo
afetivo tem conseqüências também sobre o método subjetivo, que deve incluir,
necessariamente, aspectos e concepções afetivas
o O
procedimento específico adotado por Augusto Comte para a plena inclusão da
afetividade no método subjetivo é a incorporação do fetichismo inicial ao
positivismo final, no que alguns pesquisadores chamaram de “neofetichismo”
o O
resultado disso é que, com isso, o método subjetivo torna-se uma forma de
pensar plenamente afetiva (e, inversamente, uma forma de sentir com
conseqüências intelectuais)
§ Na
verdade, sempre pensamos a partir da inspiração afetiva; o que o método
subjetivo faz é reconhecer, estimular, sistematizar e aplicar essa relação
o Temos
aí, por um lado, a instituição da Trindade Positiva: Grão-Meio (o Espaço),
Grão-Fetiche (a Terra) e Grão-Ser (a Humanidade)
o Por
outro lado, temos também a lógica positiva: “O concurso normal dos sentimentos,
das imagens e dos sinais, para inspirar-nos as concepções que convêm às nossas
necessidades morais, intelectuais e físicas”
o Além
disso, no final de sua vida Augusto Comte propôs que a lei dos três estados deve
ser entendida como uma lei dos quatro
estados
§ Essa
lei dos quatro estados estabelece que o estado positivo pode e deve dividir-se
em estado científico e estado positivo, em que o estado científico mantém o
aspecto analítico e potencialmente absolutista da ciência e o estado positivo
caracteriza-se pela síntese relativa
§ Comentário
pessoal do meu amigo Hernani Gomes da Costa logo após eu terminar a exposição acima,
em 3.10.2023:
§ “Você veio confirmar inteiramente uma
suspeita que eu vinha desenvolvendo há muito tempo no sentido de apresentar de
um modo diferente a lei dos três estados, considerando-a não mais APENAS por
referência exclusiva às suas produções externas, isto é, aos respectivos
SISTEMAS teológicos, metafísicos e positivo, mas tendo em vista o processo
interno de sua gênese. Isso significa, em outros termos, considerar todas as
combinações possíveis dos dois binômios subjetivo-objetivo e relativo-absoluto.
Feita essa nova APRESENTAÇÃO, fica bem claro
em que consiste o dito ‘quarto estado’.
O estado subjetivo e absoluto corresponderia
ao teologismo, incluindo mesmo aí o fetichismo, o estado objetivo e absoluto
corresponderia à metafísica espiritualista, o estado objetivo e relativo, à
metafísica materialista, e por fim o estado subjetivo e
relativo, ao positivismo.”